Corrupção no transporte
O jornalista Bryan Gibel veio de Berkeley para
investigar a corrupção no metrô de São Paulo. Foi ele quem publicou pela
primeira vez a carta e entrevistou o ex-executivo que revelou o
escândalo
por Agência Pública
—
Fluente em português, o jornalista
veio ao Brasil quando um professor falou sobre investigar um escândalo
de corrupção, envolvendo centenas de milhares de dólares
Em um dia frio e nublado em São Paulo, entrei em um escritório bagunçado, escondido nos meandros da Assembléia Legislativa, e me vi diante do ex-executivo da Siemens que há mais de um mês eu tentava localizar. Dois anos antes, esse homem de identidade sigilosa havia entregue a deputados do PT documentos que descreviam minuciosamente como dois dos maiores conglomerados europeus – a francesa Alstom e a alemã Siemens – tinham distribuído propinas por mais de uma década para conseguir contratos de construção e operação das linhas de metrô e do sistema de trens da região metropolitana de São Paulo. Os documentos tinham sido enviados pelo PT, em agosto de 2008, ao Ministério Público de São Paulo, que já participava de uma investigação sobre a Alstom a convite de autoridades suíças.
Em um dia frio e nublado em São Paulo, entrei em um escritório bagunçado, escondido nos meandros da Assembléia Legislativa, e me vi diante do ex-executivo da Siemens que há mais de um mês eu tentava localizar. Dois anos antes, esse homem de identidade sigilosa havia entregue a deputados do PT documentos que descreviam minuciosamente como dois dos maiores conglomerados europeus – a francesa Alstom e a alemã Siemens – tinham distribuído propinas por mais de uma década para conseguir contratos de construção e operação das linhas de metrô e do sistema de trens da região metropolitana de São Paulo. Os documentos tinham sido enviados pelo PT, em agosto de 2008, ao Ministério Público de São Paulo, que já participava de uma investigação sobre a Alstom a convite de autoridades suíças.
Depois que me apresentei, ele disse que eu era o primeiro repórter
com quem falava sobre Alstom e Siemens, e que me daria a entrevista com a
condição de manter o anonimato, porque temia por sua segurança. Também
me entregou cópias de duas cartas escritas por ele, relatando, em
detalhes, como Siemens, Alstom e outras companhias multinacionais no
Brasil haviam pago propinas e formado cartéis ilegais para ganhar
contratos públicos de milhões de dólares em São Paulo e Brasília.
Contratos e documentos sustentavam a denúncia, e nomeavam os políticos e
funcionários públicos que, segundo ele, tinham recebido dinheiro –
havia até informações bancárias sobre os pagamentos ilícitos.
Hoje, passados mais de 3 anos, aquele encontro ganhou um novo significado. Em maio deste ano, as investigações sobre corrupção que até então envolviam a Alstom culminaram em um grande escândalo no Brasil depois que, em troca de imunidade, a Siemens e seus executivos passaram a colaborar com o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, dando depoimentos e entregando documentos que indicam que a Siemens e mais de 20 pessoas pagaram propinas e formaram cartéis ilegais para ganhar contratos do governos do Estado de São Paulo e do Distrito Federal de quase R$ 2 bilhões.
As cartas e documentos que o ex-executivo da Siemens me entregou em São Paulo retratavam esse quadro de distribuição de propinas e corrupção em larga escala no setor metroferroviário brasileiro. Muito do que está sendo dito no CADE já havia sido relatado por aquele ex-executivo à direção da Siemens, assim como a conexão com o escândalo da Alstom, investigado desde 2008, e que no mesmo agosto deste ano, resultou no indiciamento de dez pessoas, entre elas dois ex-secretários de Estado do PSDB de São Paulo.
Investigando a corrupção, a mais de 6 mil milhas de casa
O caminho que acabou por me levar a essa valiosa fonte havia começado 10 meses antes, no campus da Universidade da Califórnia em Berkeley, a mais de 6 mil milhas de São Paulo. Fluente em português, fiquei empolgado quando um professor me falou sobre seu interesse em investigar um escândalo de corrupção no Brasil, envolvendo centenas de milhares de dólares.
Desde 2008, a Justiça e a polícia na Suíça, França e, de forma mais pontual, na Inglaterra e nos Estados Unidos, tinham aberto investigações sobre o esquema de propinas da Alstom ao redor do mundo. Parte das investigações feitas na Suíça envolviam o Brasil e, depois de avisados pelos suíços, membros do Ministério Público de São Paulo também começaram a apurar pagamentos suspeitos feitos pela companhia, associados a contratos para fabricar, instalar trens, sistemas de sinalização e vagões do metrô na região metropolitana.
Depois de uma semana de pesquisa e conversa com jornalistas brasileiros, decidi procurar os membros do PT na Assembléia, que há dois anos tentavam abrir uma CPI para investigar o caso, bloqueada pela maioria governista (o PSDB, partido do atual governador paulista, está há 18 anos no poder no Estado).
Nem telefonei antes. Preferi me apresentar pessoalmente e peguei o metrô, embarcando em um vagão novinho com o logotipo da Alstom em todas as janelas. Tive que fazer duas baldeações e andar 1 km para pegar um ônibus para a Assembléia, o que resultou em uma viagem de duas horas. O que não é uma experiência rara para os usuários do precário sistema de transporte público de São Paulo.
Encontrei a assessora de comunicação do PT no hall do imponente prédio da Assembléia. Tomamos um café juntos e eu perguntei sobre o caso Alstom. Ela disse que seria melhor conversar com um dos deputados, o que teria que ser agendado, mas, enquanto isso, disse, ela poderia me entregar a cópia de um dossiê organizado pelo PT sobre o caso. Recebi o calhamaço com centenas de páginas de documentos presos por grampos. Não tive nem que tirar xerox.
O dossiê incluía contratos, relatórios policiais, dados estatísticos e uma coleção de matérias publicadas na imprensa brasileira. As informações indicavam que, entre 1989 e 2007, a Alstom e suas consorciadas ganharam pelo menos 139 contratos no valor de R$ 7,6 bilhões do governo do Estado de São Paulo. Quase todos os contratos eram referentes ao metrô de São Paulo e à Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Do total, quase R$ 1,4 bilhão se referiam a contratos considerados irregulares pelo Tribunal de Contas, de acordo com o dossiê.
Parte das informações já eram de conhecimento público. Em maio de 2008, a polícia suíça marcou uma reunião com membros do Ministério Público de São Paulo para falar sobre pagamentos de US$ 6,8 milhões que teriam sido usados como propinas para ganhar um contrato de US$ 45 milhões do metrô, de acordo com matéria do Wall Street Journal. Entre os documentos obtidos pelo repórter, alguns se referiam a aditivos de R$ 110 milhões, de 1998, que prolongavam a validade de um contrato assinado 15 anos antes.
Um memorando timbrado de 1997 a respeito desse contrato dizia bastante sobre o esquema. Nele, Bernard Metz, então executivo da Alstom informava a um colega que companhia pagaria 7,5% de propina pelo contrato a um indivíduo com as iniciais R.M. “É um pagamento para o governo local”, Metz escreveu em francês. “Está sendo negociado por um ex-secretário do governador”.
De acordo com as investigações policiais, esse ex-secretário era Robson Marinho, chefe de gabinete do governo Covas entre 1995 e 1997. Marinho, que depois se tornou conselheiro do Tribunal de Contas Estadual, o órgão de auditoria das contas públicas de São Paulo, muitas vezes deu o voto decisivo para aprovar a legalidade de contratos da Alstom hoje investigados. Ele chegou a admitir que assistiu a Copa do Mundo de 1998 em Paris às custas da Alstom – embora seja um homem próspero, dono de uma ilha no Rio de Janeiro e de um prédio de oito andares em um bairro nobre em São Paulo.
Em junho de 2009, as autoridades suíças bloquearam uma conta de Marinho sob suspeita de que tivesse sido usada pela Alstom para pagar propinas via depósitos offshore. No mês seguinte, o Ministério Público de São Paulo fez o mesmo com as contas bancárias de Marinho e de mais 18 suspeitos.
Outros documentos que obtive em São Paulo revelavam mais sobre o esquema atribuído a Alstom. Em depoimento juramentado ao MPE, em 2008, Romeu Pinto Júnior, suspeito de lavagem de dinheiro, disse que um ex-executivo da Alstom chamado Philip Jaffre, já falecido, havia montado várias companhias offshore no Uruguai e nas Ilhas Virgens para fazer circular secretamente os recursos da companhia que seriam pagos a políticos brasileiros. Os políticos recebiam em dinheiro, em encontros em restaurantes.
Em depoimento da mesma época, outro suspeito de lavagem de dinheiro, Luís Filipe Malhão e Sousa, disse ter usado várias empresas para distribuir as propinas da Alstom e lavado dinheiro através de vários bancos em Nova York. Mais de um milhão de dólares foram transferidos pelas empresas de Sousa nessas transações entre 1998 e 2002.
Em agosto de 2008, segundo documentos oficiais, pelo menos dez contratos da Alstom estavam sendo investigados pelo Ministério Público de São Paulo. Mas as tentativas do PT de abrir uma CPI continuavam sem obter os votos necessários na Assembléia.
Boa hora para um encontro rápido de muitas consequências
Enquanto rastreava o ex-executivo da Siemens, fui muitas vezes a Assembléia para conversar com deputados e assessores legislativos sobre os documentos compilados no dossiê. Em uma dessas visitas, ao entrar no departamento de pesquisas do PT, escondido em um canto da Assembléia, um homem magro, com alguns cabelos grisalhos disfarçando a careca, me disse, entusiasmado, que eu tinha chegado em boa hora. “Tem alguém aqui que eu quero que você conheça”. E saiu. Voltou pouco depois para me conduzir até uma sala de reuniões com uma mesa grande. Ali estava sentado um homem de olhar intenso, que me observava silenciosamente.
Depois de breves apresentações, ficou claro que o homem com quem eu estava falando era o ex-executivo da Siemens que eu procurava, com informações de primeira mão sobre a Alstom, Siemens e outras empresas que atuam no setor metroferroviário de São Paulo.
Contei-lhe o que já havia descoberto em minhas investigações sobre as acusações à Alstom. Do outro lado da mesa, ele me olhou e assentiu com a cabeça. Após uma conversa rápida, off the record, ele me disse: “Infelizmente você me pegou em um momento ruim, tenho que ir embora”. Antes de sair, porém, ele pegou uma pilha de papéis grampeados e me entregou. “Você é uma das pouquíssimas pessoas a ver isso”, disse. “Acho que vai achar interessante.” Pedi, mas não obtive seu contato e ele saiu rapidamente da sala, dizendo que eu poderia achá-lo através de meus conhecidos na Assembléia. Peguei um táxi e corri para casa para olhar os documentos.
Duas cartas e muitas revelações sobre o que se tornaria um escândalo
O primeiro era uma carta escrita em inglês endereçada ao Dr. Hans-Otto Jordan, em Nuremberg, Alemanha, em junho de 2008. Jordan, eu saberia depois, era o ombudsman da Siemens – um advogado contratado pela companhia para ouvir os empregados que quisessem fazer denúncias sobre práticas inapropriadas de negócios na companhia.
Na carta de oito páginas, o ex-executivo fornecia informações e documentos que compunham o que ele chamava “As práticas ilegais do presente e do passado da Siemens no Brasil”. E focava três contratos do setor de transportes metropolitanos com o cuidado de destacar que o mesmo esquema também era muito utilizado pelas divisões de equipamentos médicos e de energia da Siemens.
A primeira coisa que me chamou a atenção na carta foi o nível de detalhes sobre os casos relatados. Para cada contrato discutido, a fonte nomeava as companhias envolvidas, dizia os valores e a quem as propinas haviam sido pagas, nomeando os funcionários de alto escalão do governo de São Paulo e do Distrito Federal que receberam o suborno. Dois dos três contratos denunciados eram acordos para expandir o sistema metropolitano de trens. O primeiro era um contrato de 288 milhões de dólares, assinado em 2000, para ligar uma linha de trem – a G da CPTM – à linha 5 do metrô, a linha lilás, com apenas cinco paradas, que vai do Largo Treze ao Capão Redondo, no extremo da zona Sul de São Paulo.
Quase dois terços desse dinheiro vinha do governo de São Paulo; o resto tinha sido financiado pelo BID de acordo com os registros oficiais. Esse contrato, anexo à carta do executivo, tinha sido dividido entre várias companhias, incluindo a Alstom, a Siemens, a Daimler Chysler, a grande companhia espanhola CAF e vários pequenos parceiros e subcontratados.
Para garantir o contrato, a Alstom havia costurado um acordo com as outras companhias para oferecer preço inferior ao dos concorrentes na licitação da nova linha de metrô, segundo o ex-executivo. Depois, dividiriam o bolo. Cada uma das empresas pagaria uma parte das propinas aos funcionários do governo estadual, correspondentes a 7,5% do valor do contrato, segundo a carta.
Siemens e Alstom camuflavam o dinheiro das propinas através de duas companhias no Uruguai – Leraway Consulting e Gantown Consulting-, e duas brasileiras, Procint e Constech, de propriedade de Arthur e Sergio Teixeira, segundo a carta. Os recursos eram então transferidos para o Brasil onde as propinas eram pagas em dinheiro vivo. Os documentos dos contratos com as firmas uruguaias, assinados pela Siemens em Munique em abril de 2000, também foram anexados.
O próximo grupo de documentos se referia a contratos com o governo estadual para fabricar e colocar em operação dez trens comprados pela CPTM. Em 1997, a Siemens ganhou um contrato no valor de 103 milhões de marcos alemães para vender dez trens para a CPTM. Pelo acordo, a companhia dividiria o contrato com a empresa japonesa Mitsui, que se encarregaria do suporte e treinamento técnico; mas o papel verdadeiro da Mitsui, segundo a denúncia, era o de pagar propinas para os funcionários da CPTM, sempre de acordo com a carta do ex-executivo. “O contrato era apenas uma ‘cortina de fumaça’ para ocultar sua função real, que era subornar o cliente”, ele escreveu.
Cinco anos depois, a Siemens assinou mais um contrato com a CPTM para operar e manter os vagões vendidos em 1997. A companhia obteve o negócio subcontratando a empresa brasileira MGE Transportes, então dirigida por Ronaldo Moriyama, conhecido por “sua atitude agressiva e arriscada” ao subornar funcionários do governo para obter contratos, escreveu o ex-executivo, que chegou a nomear os que teriam recebido as propinas da MGE. “Muitos diretores do Metrô de SP e da CPTM estão na folha de pagamentos dele (Moriyama) há anos”, dizia a carta. “Os mais conhecidos eram: Décio Tambelli (ex-diretor de operações do Metrô), Jose Luiz Lavorente (ex-diretor de operações da CPTM) e Nelson Scaglione (Gerente de Manutenção do Metrô de SP ).”
O ex-executivo também detalhou o esquema de propinas da Alstom no Metrô em Brasília que, segundo a carta, funcionava há anos. Para garantir os contratos, a companhia pagava R$ 700 mil de propina por mês ao ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, e diretores do metrô, escreveu o ex-executivo. Quando a Siemens substituiu a Alstom no mesmo contrato, o governador Roriz não se incomodou, “desde que o vencedor da concorrência continue a pagar a ‘taxa’” dizia a carta. No final, o ex-executivo diz que o suborno continuava sendo uma prática da Siemens no Brasil, acrescentando: “Essa atitude conta com as bençãos do principal executivo da companhia no Brasil”.
Uma segunda carta endereçada ao Ministério Público
Uma segunda carta, essa escrita em português, em 2010, foi me entregue pelo ex-executivo. Depois eu descobriria que essa carta – dirigida a “Prezados Senhores – tinha sido remetida ao Ministério Público Estadual pela bancada do PT na Assembléia em fevereiro de 2011, com mais um pedido formal de investigação – o que vinha sendo feito pelo partido desde 2008.
Nela, o ex-executivo detalhava ainda mais o esquema de propinas da Siemens e o papel da MGE, subcontratada pela Siemens para executar o contrato de manutenção da CTPM, vencido em 2002, no valor de R$ 34 milhões. O verdadeiro propósito da parceria, dizia a carta, era canalizar propinas para os diretores da CPTM e para políticos do PSDB e do PFL (atual DEM) em São Paulo.
Durante os cinco anos de vigor do contrato, a Siemens transferiu à MGE mais de R$ 3 milhões para serem usados nas propinas, fingindo pagar por serviços que nunca foram realizados, de acordo com a fonte. O dinheiro era depositado nas contas pessoais dos diretores da MGE e pagos para o já citado José Luiz Lavorente, então diretor da CPTM. Segundo a carta, Lavorente guardava o seu quinhão e distribuía o restante a políticos de São Paulo. A MGE ficava com 23% do dinheiro das propinas, e a Siemens obtinha um grande lucro, superfaturando em até 30% os contratos da CPTM, segundo a carta. O mesmo arranjo era utilizado pela Siemens para ganhar licitações de contratos lucrativos com o Metrô de São Paulo e de Brasília, de acordo com o ex-executivo.
Mais uma vez as denúncias eram acompanhadas de documentos, dessa vez informes detalhados de pagamentos da Siemens à MGE de 2002 to 2006, com números de cheques e datas das transações para pagar as propinas. “O papel principal da MGE nos contratos com a Siemens Ltda. (Brasil) foi e continua sendo o pagamento de propina a diretores da CPTM, Metro SP e Metro DF (Brasilia)”, escrevia a fonte. “O cruzamento dos saques efetuadas pela MGE com os pagamentos efetuados pela Siemens a esta empresa pode provar o esquema milionário de corrupção patrocinado pela Siemens e MGE na CPTM, no Metro de SP e no Metro do DF.”
Por fim a tão sonhada entrevista
O potencial de impacto dessas informações era quase impensável. Antes de ir embora do Brasil, decidia que faria todo o possível para me manter em contato com essa fonte.
Mas isso não era nada fácil, como percebi nas semanas seguintes em que fui diversas vezes à Assembléia para tentar um novo encontro com o ex-executivo. Até que um dia, uma semana antes do dia marcado para o meu vôo de volta à Califórnia, dei de cara com o homem que havia me apresentado ao ex-executivo no mesmo departamento de pesquisas do PT.
“Que bom te ver”, ele me disse, sorrindo. “Falei com o seu contato ontem. Ele vai estar em São Paulo na quinta-feira e pode te encontrar às 6 da tarde”. Meu vôo partiria na manhã seguinte às 9h30 da manhã. “Vou chegar 15 minutos antes”, respondi.
Naquela noite quase não dormi. Arrumei a mala, escaneei meu cérebro em busca de cada detalhe que eu deveria perguntar e acabei indo para a cama de madrugada. No dia seguinte, na hora marcada, encontrei o ex-executivo na mesma sala que o vi pela primeira vez. Ele acenou e me disse “Olá, de novo”. Conversamos sobre os documentos e perguntei se poderia gravar a entrevista. Ele concordou, com a condição de manter o anonimato.
Durante os próximos 45 minutos, ele me deu a primeira e única entrevista já concedida sobre o esquema de propinas e de combinação de preço nas licitações que ele disse ter presenciado pessoalmente. Sempre que um contrato grande do setor metroferroviário é fatiado entre diversas empresas no Brasil, as práticas ilegais são comuns, ele disse.
“Existe sempre um acordo entre elas, uma divisão e um sobrepreço, ou seja, um cartel. Quando tem cartel, tem pagamento, obviamente”, explicou. “Está acontecendo agora (2010) no caso das reformas do metro. Também na manutenção dos trens da CPTM,” afirmou. Mais adiante ele diria que as subsidiárias brasileiras da Alstom e da Siemens mudaram alguns métodos de pagamentos de propinas depois das investigações na Europa.
“Antigamente ia para as contas na Suíça, para as offshores no Uruguai, mas ficou muito difícil fazer este tipo de pagamento de propina diretamente,” disse. “É por isto que, em geral, eles sempre levam um subcontratado. Imagina, uma Alstom, por exemplo, com uma fábrica aqui no Brasil. Porque precisaria subcontratar alguém para fazer um serviço? Não precisa. No fundo, o que acontece? Aqui precisa de alguém para fazer o trabalho sujo.”
Ele disse que o dinheiro das propinas permitiam às empresas ganhar contratos por preços absurdos e engordar os cofres dos partidos políticos no poder em São Paulo e no Distrito Federal. “Os intermediários ficam com uma parte, e a outra parte vai para os políticos,” disse. “Os políticos solicitam, induzem, vamos dizer assim. Eles querem contribuições para as campanhas, mas a maior parte fica para eles pessoalmente”.
No final da conversa, consegui perguntar uma coisa que estava na minha cabeça desde que li a carta enviada por ele ao ombudsman da Siemens em 2008. Como a Siemens havia respondido às acusações?
Um parênteses: Em dezembro de 2008, seis meses depois do executivo ter mandado sua carta anônima ao ombudsman, a Siemens havia se declarado culpada ao Departamento de Justiça americano por violações do “Foreign Corrupt Practices Act”, que proíbe as companhias com negócios nos Estados Unidos de pagar propinas em outros países. Como parte de um acordo com a corte americana, a Siemens admitiu ter pago mais de 800 milhões de dólares em propinas ao redor do mundo. No mesmo período, fechou um acordo semelhante com as autoridades alemãs, pagando uma multa total de 1,6 milhão de dólares. O Brasil, no entanto, não foi mencionado nesse esquema.
Voltando a entrevista em São Paulo: o ex-executivo disse que nunca recebeu qualquer sinal de que a Siemens tivesse ido atrás das informações fornecidas na sua carta, apesar das promessas da companhia de reestruturar suas práticas para acabar com a corrupção.
“A Siemens abafou o caso no auge da crise, no momento em que diziam querer limpar tudo. Foi como se nunca tivesse acontecido. Ninguém falou nada, ninguém foi mandado embora. A coisa aconteceu como se fosse tudo normal,” contou o ex-executivo.
“Por algum motivo, o Brasil sempre ficou intocado. A minha interpretação é que eles sabem que isso tem que continuar, e não querem fazer muito barulho, porque eles sabem que se não continuar, eles vão ter menos contratos. E isto é verdade.”
Mais uma vez pedi o contato dele quando a entrevista terminou, e mais uma vez ele me disse que eu teria que procurá-lo através dos nossos conhecidos na Assembléia. E mais uma vez, ele saiu apressado do escritório, desaparecendo no burburinho da metópole.
De volta à Califórnia
Depois de algumas semanas organizando o material coletado no Brasil, contatei o Departamento de Justiça dos Estados Unidos para saber se, durante as negociações daquele acordo, o Brasil realmente não havia sido citado. Foram semanas de telefonemas até conseguir falar com um porta-voz, que disse que o Departamento não comentaria esse assunto.
Diante do aparente beco sem saída, recorri ao professor que tinha me colocado na história das propinas no Brasil, Lowell Bergman, jornalista premiado com o Pulitzer e diretor do programa de Jornalismo Investigativo da UC Berkeley. Alguns anos antes, quando ele preparava um especial de televisão sobre propinas pagas por companhias no exterior para ganhar concorrências fora dos Estados Unidos, tinha conseguido uma fonte no Departamento de Justiça que havia trabalhado no acordo das propinas com a Siemens.
Mas a fonte disse que não havia menção da Siemens sobre subornos no Brasil e Bergman e eu decidimos confirmar se realmente o ex-executivo brasileiro havia mandado a tal carta para a Siemens na Alemanha. Depois de muita conversa em off com uma fonte da Siemens, ouvi que a companhia tinha realmente recebido a carta em 2008. Mas, como a informação não podia ser confirmada, eu tinha que verificar na própria companhia.
Em fevereiro de 2011, entrei em contato com a assessoria de imprensa da sede da Siemens por email e comecei a ligar para Munique tarde da noite, para compensar as nove horas de diferença de fuso horário. Eu havia feito perguntas bem específicas no meu email: A Siemens tinha informado as autoridades nos Estados Unidos e na Alemanha sobre as denúncias de propinas no Brasil feitas em uma carta enviada ao ombudsman em junho de 2008? Se sim, quando? A companhia tinha remetido a carta para as autoridades?A Siemens tinha aberto um procedimento interno para investigar o assunto? Se sim, quando?
No mês seguinte, o assessor de imprensa respondeu ao email: “Como parte da cooperação em andamento com as autoridades americanas, a Siemens informou ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos e à Comissão de Valores Mobiliários (Securities and Exchange Commission) sobre as denúncias anônimas que foram submetidas por carta ao ombudsman”, escreveu o porta-voz no email.
Quanto às outras questões, foram respondidas em termos muito genéricos: “Como a Siemens não comenta investigações ou processos investigativos, está impossibilitada de comentar as ações específicas ou investigações independentes assumidas pela Siemens em resposta às denúncias,” escreveu, para concluir: “Em relação aos esforços globais de monitoramento da Siemens, incluindo o Brasil, tomou medidas inéditas de autocorreção e limpeza que foram reconhecidas pelos órgãos dos Estados Unidos como ‘extraordinárias’ e ‘as melhores do gênero’. Nós levamos a sério nosso compromisso com altos padrões éticos e temos uma política de ‘tolerância zero’ com desvios”.
Em outubro de 2011, a companhia demitiu o presidente das operações brasileiras, Adilson Primo, que ocupava o cargo há tempos, afirmando que “uma investigação interna revelou, recentemente, uma grave violação às diretrizes da Siemens na subsidiárias brasileira antes de 2007”. Reportagens ligaram a demissão à descoberta de uma conta privada com cerca de 6 milhões de euros de recursos da Siemens. Um porta-voz disse que a saída de Primo não tinha relação com a carta do denunciante.
Meses depois, em uma apresentação da companhia em janeiro de 2012, a Siemens confirmou que estava sob investigação do Ministério Público em Brasília. Em maio de 2013, o escândalo estourou no CADE.
Grande parte da informação que veio da delação da Siemens ao CADE, corrobora as alegações do ex-executivo. Emails e outros documentos indicam que a companhia associada a outras empresas operava como um cartel para ganhar contratos do governo por preços superfaturados entre 1998 e 2007. Esses contratos faziam parte dos acordos entre Siemens e Alstom para fabricar, manter e instalar trens em São Paulo e Brasília. Os três contratos citados pelo ex-excutivo estão sob investigação, incluindo o da Linha G de trem e lilás de metrô. Até a porcentagem de faturamento – 30% – que consta dos documentos entregues pela Siemens ao CADE, segundo o Estadão, é a mesma. Ao todo, dez promotores vão conduzir 45 inquéritos para investigar atividades suspeitas da Alstom, Siemens e outras em contratos que somam R$ 1,9 bilhão apenas no Estado de São Paulo.
No começo desse mês de agosto, a revista IstoÉ, em uma grande reportagem sobre o escândalo, revelou indícios de que o dinheiro das propinas da Alstom e da Siemens no setor metroferroviário de São Paulo ajudou a eleger os quatro últimos governadores de São Paulo. Muitos dos que foram acusados de receber propinas na reportagem da revista eram os mesmo citados pelas cartas do ex-executivo, incluindo o ex-diretor de operações da CPTM, José Luiz Lavorente, e o ex-diretor de operações do Metro de São Paulo, Décio Tambelli.
Novas revelações devem surgir da colaboração da Siemens com os investigadores brasileiros. Mas, os fatos têm mostrado que as acusações do ex-executivo têm fundamento. Ainda assim, Paulo Stark, chefe da subsidiária brasileira da Siemens, afirmou, em depoimento, que “desde 2007”, tem um “sistema de monitoramento para detectar, prevenir e remediar práticas ilícitas que possam ter sido adotadas, encorajadas ou toleradas por empregados ou executivos em qualquer lugar do mundo”.
Felizmente, a carta que me foi entregue pelo ex-executivo da Siemens acaba de ser publicada no Brasil – ela estava disponível, assim como a íntegra do meu trabalho no site da Universidade de Berkeley. E as multinacinacionais do setor metroferroviário terão ainda mais a explicar aos conselheiros do CADE.
publicado originalmente em Agência Pública
Hoje, passados mais de 3 anos, aquele encontro ganhou um novo significado. Em maio deste ano, as investigações sobre corrupção que até então envolviam a Alstom culminaram em um grande escândalo no Brasil depois que, em troca de imunidade, a Siemens e seus executivos passaram a colaborar com o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão vinculado ao Ministério da Justiça, dando depoimentos e entregando documentos que indicam que a Siemens e mais de 20 pessoas pagaram propinas e formaram cartéis ilegais para ganhar contratos do governos do Estado de São Paulo e do Distrito Federal de quase R$ 2 bilhões.
As cartas e documentos que o ex-executivo da Siemens me entregou em São Paulo retratavam esse quadro de distribuição de propinas e corrupção em larga escala no setor metroferroviário brasileiro. Muito do que está sendo dito no CADE já havia sido relatado por aquele ex-executivo à direção da Siemens, assim como a conexão com o escândalo da Alstom, investigado desde 2008, e que no mesmo agosto deste ano, resultou no indiciamento de dez pessoas, entre elas dois ex-secretários de Estado do PSDB de São Paulo.
Investigando a corrupção, a mais de 6 mil milhas de casa
O caminho que acabou por me levar a essa valiosa fonte havia começado 10 meses antes, no campus da Universidade da Califórnia em Berkeley, a mais de 6 mil milhas de São Paulo. Fluente em português, fiquei empolgado quando um professor me falou sobre seu interesse em investigar um escândalo de corrupção no Brasil, envolvendo centenas de milhares de dólares.
Desde 2008, a Justiça e a polícia na Suíça, França e, de forma mais pontual, na Inglaterra e nos Estados Unidos, tinham aberto investigações sobre o esquema de propinas da Alstom ao redor do mundo. Parte das investigações feitas na Suíça envolviam o Brasil e, depois de avisados pelos suíços, membros do Ministério Público de São Paulo também começaram a apurar pagamentos suspeitos feitos pela companhia, associados a contratos para fabricar, instalar trens, sistemas de sinalização e vagões do metrô na região metropolitana.
Depois de uma semana de pesquisa e conversa com jornalistas brasileiros, decidi procurar os membros do PT na Assembléia, que há dois anos tentavam abrir uma CPI para investigar o caso, bloqueada pela maioria governista (o PSDB, partido do atual governador paulista, está há 18 anos no poder no Estado).
Nem telefonei antes. Preferi me apresentar pessoalmente e peguei o metrô, embarcando em um vagão novinho com o logotipo da Alstom em todas as janelas. Tive que fazer duas baldeações e andar 1 km para pegar um ônibus para a Assembléia, o que resultou em uma viagem de duas horas. O que não é uma experiência rara para os usuários do precário sistema de transporte público de São Paulo.
Encontrei a assessora de comunicação do PT no hall do imponente prédio da Assembléia. Tomamos um café juntos e eu perguntei sobre o caso Alstom. Ela disse que seria melhor conversar com um dos deputados, o que teria que ser agendado, mas, enquanto isso, disse, ela poderia me entregar a cópia de um dossiê organizado pelo PT sobre o caso. Recebi o calhamaço com centenas de páginas de documentos presos por grampos. Não tive nem que tirar xerox.
O dossiê incluía contratos, relatórios policiais, dados estatísticos e uma coleção de matérias publicadas na imprensa brasileira. As informações indicavam que, entre 1989 e 2007, a Alstom e suas consorciadas ganharam pelo menos 139 contratos no valor de R$ 7,6 bilhões do governo do Estado de São Paulo. Quase todos os contratos eram referentes ao metrô de São Paulo e à Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Do total, quase R$ 1,4 bilhão se referiam a contratos considerados irregulares pelo Tribunal de Contas, de acordo com o dossiê.
Parte das informações já eram de conhecimento público. Em maio de 2008, a polícia suíça marcou uma reunião com membros do Ministério Público de São Paulo para falar sobre pagamentos de US$ 6,8 milhões que teriam sido usados como propinas para ganhar um contrato de US$ 45 milhões do metrô, de acordo com matéria do Wall Street Journal. Entre os documentos obtidos pelo repórter, alguns se referiam a aditivos de R$ 110 milhões, de 1998, que prolongavam a validade de um contrato assinado 15 anos antes.
Um memorando timbrado de 1997 a respeito desse contrato dizia bastante sobre o esquema. Nele, Bernard Metz, então executivo da Alstom informava a um colega que companhia pagaria 7,5% de propina pelo contrato a um indivíduo com as iniciais R.M. “É um pagamento para o governo local”, Metz escreveu em francês. “Está sendo negociado por um ex-secretário do governador”.
De acordo com as investigações policiais, esse ex-secretário era Robson Marinho, chefe de gabinete do governo Covas entre 1995 e 1997. Marinho, que depois se tornou conselheiro do Tribunal de Contas Estadual, o órgão de auditoria das contas públicas de São Paulo, muitas vezes deu o voto decisivo para aprovar a legalidade de contratos da Alstom hoje investigados. Ele chegou a admitir que assistiu a Copa do Mundo de 1998 em Paris às custas da Alstom – embora seja um homem próspero, dono de uma ilha no Rio de Janeiro e de um prédio de oito andares em um bairro nobre em São Paulo.
Em junho de 2009, as autoridades suíças bloquearam uma conta de Marinho sob suspeita de que tivesse sido usada pela Alstom para pagar propinas via depósitos offshore. No mês seguinte, o Ministério Público de São Paulo fez o mesmo com as contas bancárias de Marinho e de mais 18 suspeitos.
Outros documentos que obtive em São Paulo revelavam mais sobre o esquema atribuído a Alstom. Em depoimento juramentado ao MPE, em 2008, Romeu Pinto Júnior, suspeito de lavagem de dinheiro, disse que um ex-executivo da Alstom chamado Philip Jaffre, já falecido, havia montado várias companhias offshore no Uruguai e nas Ilhas Virgens para fazer circular secretamente os recursos da companhia que seriam pagos a políticos brasileiros. Os políticos recebiam em dinheiro, em encontros em restaurantes.
Em depoimento da mesma época, outro suspeito de lavagem de dinheiro, Luís Filipe Malhão e Sousa, disse ter usado várias empresas para distribuir as propinas da Alstom e lavado dinheiro através de vários bancos em Nova York. Mais de um milhão de dólares foram transferidos pelas empresas de Sousa nessas transações entre 1998 e 2002.
Em agosto de 2008, segundo documentos oficiais, pelo menos dez contratos da Alstom estavam sendo investigados pelo Ministério Público de São Paulo. Mas as tentativas do PT de abrir uma CPI continuavam sem obter os votos necessários na Assembléia.
Boa hora para um encontro rápido de muitas consequências
Enquanto rastreava o ex-executivo da Siemens, fui muitas vezes a Assembléia para conversar com deputados e assessores legislativos sobre os documentos compilados no dossiê. Em uma dessas visitas, ao entrar no departamento de pesquisas do PT, escondido em um canto da Assembléia, um homem magro, com alguns cabelos grisalhos disfarçando a careca, me disse, entusiasmado, que eu tinha chegado em boa hora. “Tem alguém aqui que eu quero que você conheça”. E saiu. Voltou pouco depois para me conduzir até uma sala de reuniões com uma mesa grande. Ali estava sentado um homem de olhar intenso, que me observava silenciosamente.
Depois de breves apresentações, ficou claro que o homem com quem eu estava falando era o ex-executivo da Siemens que eu procurava, com informações de primeira mão sobre a Alstom, Siemens e outras empresas que atuam no setor metroferroviário de São Paulo.
Contei-lhe o que já havia descoberto em minhas investigações sobre as acusações à Alstom. Do outro lado da mesa, ele me olhou e assentiu com a cabeça. Após uma conversa rápida, off the record, ele me disse: “Infelizmente você me pegou em um momento ruim, tenho que ir embora”. Antes de sair, porém, ele pegou uma pilha de papéis grampeados e me entregou. “Você é uma das pouquíssimas pessoas a ver isso”, disse. “Acho que vai achar interessante.” Pedi, mas não obtive seu contato e ele saiu rapidamente da sala, dizendo que eu poderia achá-lo através de meus conhecidos na Assembléia. Peguei um táxi e corri para casa para olhar os documentos.
Duas cartas e muitas revelações sobre o que se tornaria um escândalo
O primeiro era uma carta escrita em inglês endereçada ao Dr. Hans-Otto Jordan, em Nuremberg, Alemanha, em junho de 2008. Jordan, eu saberia depois, era o ombudsman da Siemens – um advogado contratado pela companhia para ouvir os empregados que quisessem fazer denúncias sobre práticas inapropriadas de negócios na companhia.
Na carta de oito páginas, o ex-executivo fornecia informações e documentos que compunham o que ele chamava “As práticas ilegais do presente e do passado da Siemens no Brasil”. E focava três contratos do setor de transportes metropolitanos com o cuidado de destacar que o mesmo esquema também era muito utilizado pelas divisões de equipamentos médicos e de energia da Siemens.
A primeira coisa que me chamou a atenção na carta foi o nível de detalhes sobre os casos relatados. Para cada contrato discutido, a fonte nomeava as companhias envolvidas, dizia os valores e a quem as propinas haviam sido pagas, nomeando os funcionários de alto escalão do governo de São Paulo e do Distrito Federal que receberam o suborno. Dois dos três contratos denunciados eram acordos para expandir o sistema metropolitano de trens. O primeiro era um contrato de 288 milhões de dólares, assinado em 2000, para ligar uma linha de trem – a G da CPTM – à linha 5 do metrô, a linha lilás, com apenas cinco paradas, que vai do Largo Treze ao Capão Redondo, no extremo da zona Sul de São Paulo.
Quase dois terços desse dinheiro vinha do governo de São Paulo; o resto tinha sido financiado pelo BID de acordo com os registros oficiais. Esse contrato, anexo à carta do executivo, tinha sido dividido entre várias companhias, incluindo a Alstom, a Siemens, a Daimler Chysler, a grande companhia espanhola CAF e vários pequenos parceiros e subcontratados.
Para garantir o contrato, a Alstom havia costurado um acordo com as outras companhias para oferecer preço inferior ao dos concorrentes na licitação da nova linha de metrô, segundo o ex-executivo. Depois, dividiriam o bolo. Cada uma das empresas pagaria uma parte das propinas aos funcionários do governo estadual, correspondentes a 7,5% do valor do contrato, segundo a carta.
Siemens e Alstom camuflavam o dinheiro das propinas através de duas companhias no Uruguai – Leraway Consulting e Gantown Consulting-, e duas brasileiras, Procint e Constech, de propriedade de Arthur e Sergio Teixeira, segundo a carta. Os recursos eram então transferidos para o Brasil onde as propinas eram pagas em dinheiro vivo. Os documentos dos contratos com as firmas uruguaias, assinados pela Siemens em Munique em abril de 2000, também foram anexados.
O próximo grupo de documentos se referia a contratos com o governo estadual para fabricar e colocar em operação dez trens comprados pela CPTM. Em 1997, a Siemens ganhou um contrato no valor de 103 milhões de marcos alemães para vender dez trens para a CPTM. Pelo acordo, a companhia dividiria o contrato com a empresa japonesa Mitsui, que se encarregaria do suporte e treinamento técnico; mas o papel verdadeiro da Mitsui, segundo a denúncia, era o de pagar propinas para os funcionários da CPTM, sempre de acordo com a carta do ex-executivo. “O contrato era apenas uma ‘cortina de fumaça’ para ocultar sua função real, que era subornar o cliente”, ele escreveu.
Cinco anos depois, a Siemens assinou mais um contrato com a CPTM para operar e manter os vagões vendidos em 1997. A companhia obteve o negócio subcontratando a empresa brasileira MGE Transportes, então dirigida por Ronaldo Moriyama, conhecido por “sua atitude agressiva e arriscada” ao subornar funcionários do governo para obter contratos, escreveu o ex-executivo, que chegou a nomear os que teriam recebido as propinas da MGE. “Muitos diretores do Metrô de SP e da CPTM estão na folha de pagamentos dele (Moriyama) há anos”, dizia a carta. “Os mais conhecidos eram: Décio Tambelli (ex-diretor de operações do Metrô), Jose Luiz Lavorente (ex-diretor de operações da CPTM) e Nelson Scaglione (Gerente de Manutenção do Metrô de SP ).”
O ex-executivo também detalhou o esquema de propinas da Alstom no Metrô em Brasília que, segundo a carta, funcionava há anos. Para garantir os contratos, a companhia pagava R$ 700 mil de propina por mês ao ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, e diretores do metrô, escreveu o ex-executivo. Quando a Siemens substituiu a Alstom no mesmo contrato, o governador Roriz não se incomodou, “desde que o vencedor da concorrência continue a pagar a ‘taxa’” dizia a carta. No final, o ex-executivo diz que o suborno continuava sendo uma prática da Siemens no Brasil, acrescentando: “Essa atitude conta com as bençãos do principal executivo da companhia no Brasil”.
Uma segunda carta endereçada ao Ministério Público
Uma segunda carta, essa escrita em português, em 2010, foi me entregue pelo ex-executivo. Depois eu descobriria que essa carta – dirigida a “Prezados Senhores – tinha sido remetida ao Ministério Público Estadual pela bancada do PT na Assembléia em fevereiro de 2011, com mais um pedido formal de investigação – o que vinha sendo feito pelo partido desde 2008.
Nela, o ex-executivo detalhava ainda mais o esquema de propinas da Siemens e o papel da MGE, subcontratada pela Siemens para executar o contrato de manutenção da CTPM, vencido em 2002, no valor de R$ 34 milhões. O verdadeiro propósito da parceria, dizia a carta, era canalizar propinas para os diretores da CPTM e para políticos do PSDB e do PFL (atual DEM) em São Paulo.
Durante os cinco anos de vigor do contrato, a Siemens transferiu à MGE mais de R$ 3 milhões para serem usados nas propinas, fingindo pagar por serviços que nunca foram realizados, de acordo com a fonte. O dinheiro era depositado nas contas pessoais dos diretores da MGE e pagos para o já citado José Luiz Lavorente, então diretor da CPTM. Segundo a carta, Lavorente guardava o seu quinhão e distribuía o restante a políticos de São Paulo. A MGE ficava com 23% do dinheiro das propinas, e a Siemens obtinha um grande lucro, superfaturando em até 30% os contratos da CPTM, segundo a carta. O mesmo arranjo era utilizado pela Siemens para ganhar licitações de contratos lucrativos com o Metrô de São Paulo e de Brasília, de acordo com o ex-executivo.
Mais uma vez as denúncias eram acompanhadas de documentos, dessa vez informes detalhados de pagamentos da Siemens à MGE de 2002 to 2006, com números de cheques e datas das transações para pagar as propinas. “O papel principal da MGE nos contratos com a Siemens Ltda. (Brasil) foi e continua sendo o pagamento de propina a diretores da CPTM, Metro SP e Metro DF (Brasilia)”, escrevia a fonte. “O cruzamento dos saques efetuadas pela MGE com os pagamentos efetuados pela Siemens a esta empresa pode provar o esquema milionário de corrupção patrocinado pela Siemens e MGE na CPTM, no Metro de SP e no Metro do DF.”
Por fim a tão sonhada entrevista
O potencial de impacto dessas informações era quase impensável. Antes de ir embora do Brasil, decidia que faria todo o possível para me manter em contato com essa fonte.
Mas isso não era nada fácil, como percebi nas semanas seguintes em que fui diversas vezes à Assembléia para tentar um novo encontro com o ex-executivo. Até que um dia, uma semana antes do dia marcado para o meu vôo de volta à Califórnia, dei de cara com o homem que havia me apresentado ao ex-executivo no mesmo departamento de pesquisas do PT.
“Que bom te ver”, ele me disse, sorrindo. “Falei com o seu contato ontem. Ele vai estar em São Paulo na quinta-feira e pode te encontrar às 6 da tarde”. Meu vôo partiria na manhã seguinte às 9h30 da manhã. “Vou chegar 15 minutos antes”, respondi.
Naquela noite quase não dormi. Arrumei a mala, escaneei meu cérebro em busca de cada detalhe que eu deveria perguntar e acabei indo para a cama de madrugada. No dia seguinte, na hora marcada, encontrei o ex-executivo na mesma sala que o vi pela primeira vez. Ele acenou e me disse “Olá, de novo”. Conversamos sobre os documentos e perguntei se poderia gravar a entrevista. Ele concordou, com a condição de manter o anonimato.
Durante os próximos 45 minutos, ele me deu a primeira e única entrevista já concedida sobre o esquema de propinas e de combinação de preço nas licitações que ele disse ter presenciado pessoalmente. Sempre que um contrato grande do setor metroferroviário é fatiado entre diversas empresas no Brasil, as práticas ilegais são comuns, ele disse.
“Existe sempre um acordo entre elas, uma divisão e um sobrepreço, ou seja, um cartel. Quando tem cartel, tem pagamento, obviamente”, explicou. “Está acontecendo agora (2010) no caso das reformas do metro. Também na manutenção dos trens da CPTM,” afirmou. Mais adiante ele diria que as subsidiárias brasileiras da Alstom e da Siemens mudaram alguns métodos de pagamentos de propinas depois das investigações na Europa.
“Antigamente ia para as contas na Suíça, para as offshores no Uruguai, mas ficou muito difícil fazer este tipo de pagamento de propina diretamente,” disse. “É por isto que, em geral, eles sempre levam um subcontratado. Imagina, uma Alstom, por exemplo, com uma fábrica aqui no Brasil. Porque precisaria subcontratar alguém para fazer um serviço? Não precisa. No fundo, o que acontece? Aqui precisa de alguém para fazer o trabalho sujo.”
Ele disse que o dinheiro das propinas permitiam às empresas ganhar contratos por preços absurdos e engordar os cofres dos partidos políticos no poder em São Paulo e no Distrito Federal. “Os intermediários ficam com uma parte, e a outra parte vai para os políticos,” disse. “Os políticos solicitam, induzem, vamos dizer assim. Eles querem contribuições para as campanhas, mas a maior parte fica para eles pessoalmente”.
No final da conversa, consegui perguntar uma coisa que estava na minha cabeça desde que li a carta enviada por ele ao ombudsman da Siemens em 2008. Como a Siemens havia respondido às acusações?
Um parênteses: Em dezembro de 2008, seis meses depois do executivo ter mandado sua carta anônima ao ombudsman, a Siemens havia se declarado culpada ao Departamento de Justiça americano por violações do “Foreign Corrupt Practices Act”, que proíbe as companhias com negócios nos Estados Unidos de pagar propinas em outros países. Como parte de um acordo com a corte americana, a Siemens admitiu ter pago mais de 800 milhões de dólares em propinas ao redor do mundo. No mesmo período, fechou um acordo semelhante com as autoridades alemãs, pagando uma multa total de 1,6 milhão de dólares. O Brasil, no entanto, não foi mencionado nesse esquema.
Voltando a entrevista em São Paulo: o ex-executivo disse que nunca recebeu qualquer sinal de que a Siemens tivesse ido atrás das informações fornecidas na sua carta, apesar das promessas da companhia de reestruturar suas práticas para acabar com a corrupção.
“A Siemens abafou o caso no auge da crise, no momento em que diziam querer limpar tudo. Foi como se nunca tivesse acontecido. Ninguém falou nada, ninguém foi mandado embora. A coisa aconteceu como se fosse tudo normal,” contou o ex-executivo.
“Por algum motivo, o Brasil sempre ficou intocado. A minha interpretação é que eles sabem que isso tem que continuar, e não querem fazer muito barulho, porque eles sabem que se não continuar, eles vão ter menos contratos. E isto é verdade.”
Mais uma vez pedi o contato dele quando a entrevista terminou, e mais uma vez ele me disse que eu teria que procurá-lo através dos nossos conhecidos na Assembléia. E mais uma vez, ele saiu apressado do escritório, desaparecendo no burburinho da metópole.
De volta à Califórnia
Depois de algumas semanas organizando o material coletado no Brasil, contatei o Departamento de Justiça dos Estados Unidos para saber se, durante as negociações daquele acordo, o Brasil realmente não havia sido citado. Foram semanas de telefonemas até conseguir falar com um porta-voz, que disse que o Departamento não comentaria esse assunto.
Diante do aparente beco sem saída, recorri ao professor que tinha me colocado na história das propinas no Brasil, Lowell Bergman, jornalista premiado com o Pulitzer e diretor do programa de Jornalismo Investigativo da UC Berkeley. Alguns anos antes, quando ele preparava um especial de televisão sobre propinas pagas por companhias no exterior para ganhar concorrências fora dos Estados Unidos, tinha conseguido uma fonte no Departamento de Justiça que havia trabalhado no acordo das propinas com a Siemens.
Mas a fonte disse que não havia menção da Siemens sobre subornos no Brasil e Bergman e eu decidimos confirmar se realmente o ex-executivo brasileiro havia mandado a tal carta para a Siemens na Alemanha. Depois de muita conversa em off com uma fonte da Siemens, ouvi que a companhia tinha realmente recebido a carta em 2008. Mas, como a informação não podia ser confirmada, eu tinha que verificar na própria companhia.
Em fevereiro de 2011, entrei em contato com a assessoria de imprensa da sede da Siemens por email e comecei a ligar para Munique tarde da noite, para compensar as nove horas de diferença de fuso horário. Eu havia feito perguntas bem específicas no meu email: A Siemens tinha informado as autoridades nos Estados Unidos e na Alemanha sobre as denúncias de propinas no Brasil feitas em uma carta enviada ao ombudsman em junho de 2008? Se sim, quando? A companhia tinha remetido a carta para as autoridades?A Siemens tinha aberto um procedimento interno para investigar o assunto? Se sim, quando?
No mês seguinte, o assessor de imprensa respondeu ao email: “Como parte da cooperação em andamento com as autoridades americanas, a Siemens informou ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos e à Comissão de Valores Mobiliários (Securities and Exchange Commission) sobre as denúncias anônimas que foram submetidas por carta ao ombudsman”, escreveu o porta-voz no email.
Quanto às outras questões, foram respondidas em termos muito genéricos: “Como a Siemens não comenta investigações ou processos investigativos, está impossibilitada de comentar as ações específicas ou investigações independentes assumidas pela Siemens em resposta às denúncias,” escreveu, para concluir: “Em relação aos esforços globais de monitoramento da Siemens, incluindo o Brasil, tomou medidas inéditas de autocorreção e limpeza que foram reconhecidas pelos órgãos dos Estados Unidos como ‘extraordinárias’ e ‘as melhores do gênero’. Nós levamos a sério nosso compromisso com altos padrões éticos e temos uma política de ‘tolerância zero’ com desvios”.
Em outubro de 2011, a companhia demitiu o presidente das operações brasileiras, Adilson Primo, que ocupava o cargo há tempos, afirmando que “uma investigação interna revelou, recentemente, uma grave violação às diretrizes da Siemens na subsidiárias brasileira antes de 2007”. Reportagens ligaram a demissão à descoberta de uma conta privada com cerca de 6 milhões de euros de recursos da Siemens. Um porta-voz disse que a saída de Primo não tinha relação com a carta do denunciante.
Meses depois, em uma apresentação da companhia em janeiro de 2012, a Siemens confirmou que estava sob investigação do Ministério Público em Brasília. Em maio de 2013, o escândalo estourou no CADE.
Grande parte da informação que veio da delação da Siemens ao CADE, corrobora as alegações do ex-executivo. Emails e outros documentos indicam que a companhia associada a outras empresas operava como um cartel para ganhar contratos do governo por preços superfaturados entre 1998 e 2007. Esses contratos faziam parte dos acordos entre Siemens e Alstom para fabricar, manter e instalar trens em São Paulo e Brasília. Os três contratos citados pelo ex-excutivo estão sob investigação, incluindo o da Linha G de trem e lilás de metrô. Até a porcentagem de faturamento – 30% – que consta dos documentos entregues pela Siemens ao CADE, segundo o Estadão, é a mesma. Ao todo, dez promotores vão conduzir 45 inquéritos para investigar atividades suspeitas da Alstom, Siemens e outras em contratos que somam R$ 1,9 bilhão apenas no Estado de São Paulo.
No começo desse mês de agosto, a revista IstoÉ, em uma grande reportagem sobre o escândalo, revelou indícios de que o dinheiro das propinas da Alstom e da Siemens no setor metroferroviário de São Paulo ajudou a eleger os quatro últimos governadores de São Paulo. Muitos dos que foram acusados de receber propinas na reportagem da revista eram os mesmo citados pelas cartas do ex-executivo, incluindo o ex-diretor de operações da CPTM, José Luiz Lavorente, e o ex-diretor de operações do Metro de São Paulo, Décio Tambelli.
Novas revelações devem surgir da colaboração da Siemens com os investigadores brasileiros. Mas, os fatos têm mostrado que as acusações do ex-executivo têm fundamento. Ainda assim, Paulo Stark, chefe da subsidiária brasileira da Siemens, afirmou, em depoimento, que “desde 2007”, tem um “sistema de monitoramento para detectar, prevenir e remediar práticas ilícitas que possam ter sido adotadas, encorajadas ou toleradas por empregados ou executivos em qualquer lugar do mundo”.
Felizmente, a carta que me foi entregue pelo ex-executivo da Siemens acaba de ser publicada no Brasil – ela estava disponível, assim como a íntegra do meu trabalho no site da Universidade de Berkeley. E as multinacinacionais do setor metroferroviário terão ainda mais a explicar aos conselheiros do CADE.
publicado originalmente em Agência Pública
O propinoduto do tucanato paulista com dinheiro da Siemens
publicado em 20 de julho de 2013 às 15:49
Os governos tucanos de Mario Covas, Geraldo Alckmin e José Serra nada fizeram para conter o esquema de corrupção
O esquema que saiu dos trilhos
Um propinoduto criado para desviar milhões das obras do Metrô e dos trens metropolitanos foi montado durante os governos do PSDB em São Paulo. Lobistas e autoridades ligadas aos tucanos operavam por meio de empresas de fachada
Alan Rodrigues, Pedro Marcondes de Moura e Sérgio Pardellas, em ISTOÉ, sugestão dos leitores H.92 e Mariano
Ao assinar um acordo com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a multinacional alemã Siemens lançou luz sobre um milionário propinoduto mantido há quase 20 anos por sucessivos governos do PSDB em São Paulo para desviar dinheiro das obras do Metrô e dos trens metropolitanos. Em troca de imunidade civil e criminal para si e seus executivos, a empresa revelou como ela e outras companhias se articularam na formação de cartéis para avançar sobre licitações públicas na área de transporte sobre trilhos.
Para vencerem concorrências, com preços superfaturados, para manutenção, aquisição de trens, construção de linhas férreas e metrôs durante os governos tucanos em São Paulo – confessaram os executivos da multinacional alemã –, os empresários manipularam licitações e corromperam políticos e autoridades ligadas ao PSDB e servidores públicos de alto escalão.
O problema é que a prática criminosa, que trafegou sem restrições pelas administrações de Mario Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, já era alvo de investigações, no Brasil e no Exterior, desde 2008 e nenhuma providência foi tomada por nenhum governo tucano para que ela parasse.
Pelo contrário. Desde que foram feitas as primeiras investigações, tanto na Europa quanto no Brasil, as empresas envolvidas continuaram a vencer licitações e a assinar contratos com o governo do PSDB em São Paulo. O Ministério Público da Suíça identificou pagamentos a personagens relacionados ao PSDB realizados pela francesa Alstom – que compete com a Siemens na área de maquinários de transporte e energia – em contrapartida a contratos obtidos.
Somente o MP de São Paulo abriu 15 inquéritos sobre o tema. Agora, diante deste novo fato, é possível detalhar como age esta rede criminosa com conexões em paraísos fiscais e que teria drenado, pelo menos, US$ 50 milhões do erário paulista para abastecer o propinoduto tucano, segundo as investigações concluídas na Europa.
As provas oferecidas pela Siemens e por seus executivos ao Cade são contundentes. Entre elas, consta um depoimento bombástico prestado no Brasil em junho de 2008 por um funcionário da Siemens da Alemanha. ISTOÉ teve acesso às sete páginas da denúncia. Nelas, o ex-funcionário, que prestou depoimento voluntário ao Ministério Público, revela como funciona o esquema de desvio de dinheiro dos cofres públicos e fornece os nomes de autoridades e empresários que participavam da tramoia.
Segundo o ex-funcionário cujo nome é mantido em sigilo, após ganhar uma licitação, a Siemens subcontratava uma empresa para simular os serviços e, por meio dela, realizar o pagamento de propina. Foi o que aconteceu em junho de 2002, durante o governo de Geraldo Alckmin, quando a empresa alemã venceu o certame para manutenção preventiva de trens da série 3000 da CPTM (Companhia Paulista de Transportes Metropolitanos).
À época, a Siemens subcontratou a MGE Transportes. De acordo com uma planilha de pagamentos da Siemens obtida por ISTOÉ, a empresa alemã pagou à MGE R$ 2,8 milhões até junho de 2006. Desse total, pelo menos R$ 2,1 milhões foram sacados na boca do caixa por representantes da MGE para serem distribuídos a políticos e diretores da CPTM, segundo a denúncia. Para não deixar rastro da transação, os saques na boca do caixa eram sempre inferiores a R$ 10 mil. Com isso, o Banco Central não era notificado. “Durante muitos anos, a Siemens vem subornando políticos, na sua maioria do PSDB, e diretores da CPTM.
“A MGE é frequentemente utilizada pela Siemens para pagamento de propina. Nesse caso, como de costume, a MGE ficou encarregada de pagar a propina de 5% à diretoria da CPTM”, denunciou o depoente ao Ministério Público paulista e ao ombudsman da empresa na Alemanha.
Ainda de acordo com o depoimento, estariam envolvidos no esquema o diretor da MGE, Ronaldo Moriyama, segundo o delator “conhecido no mercado ferroviário por sua agressividade quando se fala em subornar o pessoal do Metrô de SP e da CPTM”, Carlos Freyze David e Décio Tambelli, respectivamente ex-presidente e ex-diretor do Metrô de São Paulo, Luiz Lavorente, ex-diretor de Operações da CPTM, e Nelson Scaglioni, ex-gerente de manutenção do metrô paulista.
Scaglioni, diz o depoente, “está na folha de pagamento da MGE há dez anos”. “Ele controla diversas licitações como os lucrativos contratos de reforma dos motores de tração do Metrô, onde a MGE deita e rola”. O encarregado de receber o dinheiro da propina em mãos e repassar às autoridades era Lavorente. “O mesmo dizia que (os valores) eram repassados integralmente a políticos do PSDB” de São Paulo e a partidos aliados. O modelo de operação feito pela Siemens por meio da MGE Transportes se repetiu com outra empresa, a japonesa Mitsui, segundo relato do funcionário da Siemens.
Procurados por ISTOÉ, Moriyama, Freyze, Tambelli, Lavorente e Scaglioni não foram encontrados. A MGE, por sua vez, se nega a comentar as denúncias e disse que está colaborando com as investigações.
Além de subcontratar empresas para simular serviços e servir de ponte para o desvio de dinheiro público, o esquema que distribuiu propina durante os governos do PSDB em São Paulo fluía a partir de operações internacionais.
Nessa outra vertente do esquema, para chegar às mãos dos políticos e servidores públicos, a propina circulava em contas de pessoas físicas e jurídicas em paraísos fiscais.
Uma dessas transações contou, de acordo com o depoimento do ex-funcionário da Siemens, com a participação dos lobistas Arthur Teixeira e Sérgio Teixeira, através de suas respectivas empresas Procint E Constech e de suas offshores no Uruguai, Leraway Consulting S/A e Gantown Consulting S/A. Neste caso específico, segundo o denunciante, a propina foi paga porque a Siemens, em parceria com a Alstom, uma das integrantes do cartel denunciado ao Cade, ganhou a licitação para implementação da linha G da CPTM.
O acordo incluía uma comissão de 5% para os lobistas, segundo contrato ao qual ISTOÉ teve acesso com exclusividade, e de 7,5% a políticos do PSDB e a diretores da área de transportes sobre trilho.
“A Siemens AG (Alemanha) e a Siemens Limitada (Brasil) assinaram um contrato com (as offshores) a Leraway e com a Gantown para o pagamento da comissão”, afirma o delator.
As reuniões, acrescentou ele, para discutir a distribuição da propina eram feitas em badaladas casas noturnas da capital paulista. Teriam participado da formação do cartel as empresas Alstom, Bombardier, CAF, Siemens, TTrans e Mitsui. Coube ao diretor da Mitsui, Masao Suzuki, guardar o documento que estabelecia o escopo de fornecimento e os preços a serem praticados por empresa na licitação.
Além de subcontratar empresas que serviram de ponte para o desvio de dinheiro público, o esquema valeu-se de operações em paraísos fiscais
Os depoimentos obtidos por ISTOÉ vão além das investigações sobre o caso iniciadas há cinco anos no Exterior.
Em 2008, promotores da Alemanha, França e Suíça, após prender e bloquear contas de executivos do grupo Siemens e da francesa Alstom por suspeita de corrupção, descobriram que as empresas mantinham uma prática de pagar propinas a servidores públicos em cerca de 30 países. Entre eles, o Brasil.
Um dos nomes próximos aos tucanos que apareceram na investigação dos promotores foi o de Robson Marinho, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), nomeado pelo então governador tucano Mário Covas.
No período em que as propinas teriam sido negociadas, Marinho trabalhava diretamente com Covas. Proprietário de uma ilha paradisíaca na região de Paraty, no Rio de Janeiro, Marinho foi prefeito de São José dos Campos, ocupou a coordenação da campanha eleitoral de Covas em 1994 e foi chefe da Casa Civil do governo do Estado de 1995 a abril de 1997.
Numa colaboração entre promotores de São Paulo e da Suíça, eles identificaram uma conta bancária pertencente a Marinho que teria sido abastecida pela francesa Alstom. O MP bloqueou cerca de US$ 1 milhão depositado. Marinho é até hoje alvo do MP de São Paulo. Procurado, ele não respondeu ao contato de ISTOÉ. Mas, desde que estourou o escândalo, ele, que era conhecido como “o homem da cozinha” – por sua proximidade com Covas –, tem negado a sua participação em negociatas que beneficiaram a Alstom.
Entre as revelações feitas pela Siemens ao Cade em troca de imunidade está a de que ela e outras gigantes do setor, como a francesa Alstom, a canadense Bombardier, a espanhola CAF e a japonesa Mitsui, reuniram-se durante anos para manipular por meios escusos o resultado de contratos na área de transporte sobre trilhos.
Entre as licitações envolvidas sob a gestão do PSDB estão a fase 1 da Linha 5 do Metrô de São Paulo, as concorrências para a manutenção dos trens das Séries 2.000, 3.000 e 2.100 da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e a extensão da Linha 2 do metrô de São Paulo. Também ocorreram irregularidades no Projeto Boa Viagem da CPTM para reforma, modernização e serviço de manutenção de trens, além de concorrências para aquisição de carros de trens pela CPTM, com previsão de desenvolvimento de sistemas, treinamento de pessoal, apoio técnico e serviços complementares.
Com a formação do cartel, as empresas combinavam preços e condicionavam a derrota de um grupo delas à vitória em outra licitação também superfaturada.
Outra estratégia comum era o compromisso de que aquela que ganhasse o certame previamente acertado subcontratasse outra derrotada. Tamanha era a desfaçatez dos negócios que os acordos por diversas vezes foram celebrados em reuniões nos escritórios das empresas e referendados por correspondência eletrônica.
No início do mês, a Superintendência-Geral do Cade realizou busca e apreensão nas sedes das companhias delatadas. A Operação Linha Cruzada da Polícia Federal executou mandados judiciais em diversas cidades em São Paulo e Brasília.
Apenas em um local visitado, agentes da PF ficaram mais de 18 horas coletando documentos. Ao abrir o esquema, a Siemens assinou um acordo de leniência, que pode garantir à companhia e a seus executivos isenção caso o cartel seja confirmado e condenado. A imunidade administrativa e criminal integral é assegurada quando um participante do esquema denuncia o cartel, suspende a prática e coopera com as investigações.
Em caso de condenação, o cartel está sujeito à multa que pode chegar a até 20% do faturamento bruto. O acordo entre a Siemens e o Cade vem sendo negociado desde maio de 2012. Desde então, o órgão exige que a multinacional alemã coopere fornecendo detalhes sobre a manipulação de preços em licitações.
Só em contratos com os governos comandados pelo PSDB em São Paulo, duas importantes integrantes do cartel apurado pelo Cade, Siemens e Alstom, faturaram juntas até 2008 R$ 12,6 bilhões.
“Os tucanos têm a sensação de impunidade permanente. Estamos denunciando esse caso há décadas. Entrarei com um processo de improbidade por omissão contra o governador Geraldo Alckmin”, diz o deputado estadual do PT João Paulo Rillo.
Raras vezes um esquema de corrupção atravessou incólume por tantos governos seguidos de um mesmo partido numa das principais capitais do País, mesmo com réus confessos – no caso, funcionários de uma das empresas participantes da tramoia, a Siemens –, e com a existência de depoimentos contundentes no Brasil e no Exterior que resultaram em pelo menos 15 processos no Ministério Público. Agora, espera-se uma apuração profunda sobre a teia de corrupção montada pelos governos do PSDB em São Paulo.
No Palácio dos Bandeirantes, o governador Geraldo Alckmin disse que espera rigor nas investigações e cobrará o dinheiro que tenha sido desviado dos cofres públicos.
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