5.11.2014

O mundo nerd

Eles deixaram de ser os esquisitos das salas de aula, conquistaram público fiel e anunciantes de peso. Saíram de trás dos computadores, têm séries de TV e até literatura própria. E o que parecia brincadeira se transformou em negócio milionário

Fabíola Perez (fabiola.perez@istoe.com.br)

Tudo começou com uma diversão. Em 2009, o estudante Bruno Aiub, 23 anos, conhecido como Monark, criou um canal no YouTube a fim de ensinar as melhores estratégias para jogar Minecraft – game que possibilita aos usuários construírem um mundo formado por blocos. Em novembro de 2010, o espaço batizado RandonsPlays atingiu 32 mil visualizações. Hoje, três anos depois, a audiência saltou para dez milhões de views mensais. E o que começou como um hobby se tornou um negócio lucrativo. “Sempre que via algum jogo novo fazia comentários, sátiras ou piadas e o público começou a gostar”, diz. Aiub faz parte de uma geração de nerds que ultrapassou as barreiras do preconceito no ambiente escolar e encontrou na tecnologia um aliado para ganhar o mundo. “A sociedade precisa de profissionais com conhecimento tecnológico. São essas pessoas que movimentam a economia e fazem tantas outras estarem empregadas”, afirma David Anderegg, psicólogo americano e autor do livro “Nerds: Quem São e Por Que Precisamos Deles”. Um dos protagonistas da revolução pela qual passa a cultura nerd atual é o ultra bem-sucedido Mark Zuckerberg, criador da rede social Facebook. Segundo um relatório da consultoria GMI Ratings, ele é o empresário mais bem pago dos Estados Unidos, com salário mensal superior a US$ 1 milhão. Além disso, o jovem de 29 anos é o símbolo do nerd que soube transformar sua inteligência em respeitáveis cifrões.
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Pierre Mantovani, criador do portal Omelete, vai trazer ao Brasil em dezembro
a Comic Con Experience, versão brasileira da maior feira nerd dos Estados Unidos
Inspirada na trajetória de outro exemplo bem-sucedido do universo geek, o fundador da Apple, Steve Jobs, a Rede Globo lançou, na segunda-feira 5, a novela Geração Brasil, que aborda o mundo da tecnologia. A trama gira em torno da história de sucesso do jovem Jonas Marra, interpretado por Murilo Benício, que desenvolve um computador pessoal de baixo custo. Na década de 1990, o personagem viaja aos Estados Unidos e, tempos depois, torna-se CEO de uma das maiores empresas de tecnologia e ídolo de milhares de jovens que se encantam com o mundo da informática. Quando decide voltar ao Brasil em 2014, ano de Copa do Mundo, o milionário atrai milhares de jovens que se identificam com a indústria nerd. Fora da ficção, a realidade não é muito diferente.
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Exemplo mais modesto, o brasileiro Leon Oliveira Martins, 30 anos, começou sua carreira nesse universo produzindo vídeos durante uma viagem pela Alemanha, em 2008. Quatro anos depois, havia criado o próprio canal no YouTube, “Coisa de Nerd”, voltado a comentários sobre jogos não convencionais. “Na época, não tinha tantas informações sobre games em português, então misturava uma série de informações para divertir e informar quem buscava estratégias de jogo”, afirma Martins. Hoje chamados de “influenciadores”, Monark e Leon têm um alto índice de audiência e contam com agências próprias para trazer mais anunciantes para seus canais. “São jovens sem histórico na televisão, mas com um nível de interatividade com o público que gera convencimento e identificação”, diz Gustavo Teles, sócio-diretor da agência Influencers.
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Uma pesquisa realizada pelo portal Omelete, direcionado a esse público, detectou que 32% dos nerds e geeks no Brasil possuem seu próprio canal no YouTube. “Eles começaram a gerar audiência na internet e a ser remunerados pelo Google e por outros anunciantes”, diz Teles. “Jovens como esses estão alcançando um faturamento mensal que varia de R$ 10 mil a R$ 40 mil e anunciantes de peso nos setores de tecnologia, eletrônica e telefonia.” A produção de conteúdo e os apresentadores nerds fizeram a agência Influencers triplicar sua projeção de faturamento neste ano, para R$ 1,5 milhão. “Escolhemos ter essa abordagem nerd porque eram os canais na internet com mais regularidade e onde os apresentadores tinham mais compromisso com seu público”, diz. O estudo revelou ainda que 90% dos nerds e geeks costumam ficar online mais tempo que a maioria dos brasileiros. A média do País, segundo o Ibope Mídia, é de 60 horas por mês, enquanto eles costumam gastar 84 horas. Se hoje o passatempo preferido desse público é jogar videogame, o que mais cresce, porém, é o hábito de consumir filmes e séries pela internet.
Ser nerd, no entanto, nem sempre foi algo aceito e bem-visto. Muito pelo contrário. Essa turma teve de enfrentar barreiras ao longo de décadas em colégios e universidades até conseguir mostrar que, com sua inteligência – e, por que não, simpatia peculiar –, poderia ser popular e útil à sociedade. “Quando eu estava no colégio, nosso grupo era formado por pessoas excluídas. Hoje as crianças optam por ser nerds”, afirma Benjamin Nugent, autor do livro “Nerd Americano: A História do Meu Povo”. Segundo o autor, nerd virou uma identidade subcultural, assim como hippies, punks e skatistas. Os primeiros eram estudiosos que gostavam de temas relacionados a cultura, ciência e tecnologia. Pouco populares, eram arredios aos esportes. “Hoje, a questão cultural se associou à indústria do entretenimento, que passou a produzir cada vez mais coisas destinadas a eles”, diz a professora de educação e tecnologia do Instituto Federal de Pelotas (RS) Angela Dillmann Nunes Bicca, que coordena o projeto de pesquisa “Aprendendo a Ser Jovem Nerd/Geek: Um Estudo Sobre a Pedagogia Cultural da Internet”. “É um dos mercados que mais crescem no mundo”, diz ela.
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No Brasil, o crescimento no número de sites para esse público ocorreu mais intensamente nos últimos dez anos. Outro projeto nerd que se profissionalizou exatamente nesse período é o site Jovem Nerd. A ideia nasceu em 2002 como um blog de humor. Na época, os sócios-fundadores, Alexandre Ottoni e Deive Pazos, trabalhavam como designer e administrador, respectivamente, e dedicavam apenas algumas horas ao projeto. A grande estreia veio, porém, em 2006, quando a dupla conhecida como Jovem Nerd e Azaghal passou a comandar o Nerdcast – podcast que trata de temas que vão de eventos históricos a filmes de super-heróis e histórias em quadrinhos. “Foi um ponto de virada, passamos a acreditar que o Jovem Nerd poderia se transformar em um negócio de fato”, diz Ottoni. Hoje, o programa é um dos mais populares da internet, com uma audiência de 300 mil ouvintes por semana e prêmios nacionais e internacionais, como o de “Melhor Podcast do Mundo”. Na esteira do sucesso, outras ideias começaram a surgir. Depois de negociações com fornecedores e parceiros, nascia a Nerdstore, loja virtual de camisetas. Assim, em pouco tempo, esse público altamente segmentado começou a chamar a atenção das agências de publicidade digital, que viram no projeto uma oportunidade de se relacionar com esses consumidores fiéis. “Os anunciantes enxergaram em nossos veículos a possibilidade de fazer publicidade com mais proximidade”, afirma Guga Mafra, diretor da FTPI Digital, empresa parceira do Jovem Nerd. “Uma característica interessante do nerd é que ele influencia seus amigos e familiares”, diz. “Geralmente, é ele o especialista da família em games, tecnologia, viagens e é a pessoa disposta a conhecer e testar um novo produto.”
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A percepção de que o mercado nerd vem se consolidando no País ganhou força também pela facilidade de acesso ao conteúdo de internet nos últimos anos. “A rede igualou todo mundo”, diz Mafra. “Hoje é possível obter um produto em segundos pela web, tudo ficou muito mais fácil”, diz o empresário. Esse é um dos aspectos apontados pela pesquisa do portal Omelete. No levantamento, a conectividade desse público aparece diretamente relacionada aos seus hábitos. No ano passado, 57% dos entrevistados revelaram fazer compras pela internet frequentemente, 24% o fazem algumas vezes por ano e apenas 10% utilizam o e-commerce raramente. Na onda do crescimento desse mercado, o portal anunciou um aumento de 50% em seu faturamento e 31 novos contratos para este ano – um deles com uma montadora de veículos francesa que tem fábrica no Brasil.
Inspirado no potencial do mercado americano, o diretor Pierre Mantovani, do Portal Omelete, tem planos de trazer ao Brasil em dezembro a Comic Con Experience. A feira será uma adaptação dos eventos que ocorrem em Nova York e San Diego, que reúnem criadores e admiradores de quadrinhos, cinema, televisão, literatura e afins. “Estamos adaptando tudo o que há de mais legal da realidade dos americanos para a nossa”, afirma Mantovani. A versão brasileira contará com uma área específica para quadrinistas do País divulgarem seu trabalho. Para ele, há uma enorme demanda de pessoas interessadas em temas geeks, mas pouca coisa boa está sendo feita em território nacional. Além disso, houve uma mudança de comportamento que fez com que os nerds conquistassem o próprio espaço. “Se minha mãe me visse com uma camiseta do Batman, me perguntaria se eu não cresci. Mas, atualmente, esses gostos passaram a ficar no DNA de algumas pessoas.”
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As empresas brasileiras, segundo Mantovani, não estavam preparadas para lidar com a liberdade de expressão que existe hoje. “A internet possibilitou que muitos jovens com boas ideias se autossustentassem”, diz. Pessoas com um perfil criativo começaram a levar a cultura e os hábitos nerds para todo o mundo. Prova disso é que algumas empresas brasileiras começaram a enxergar esse potencial. Em abril de 2012, a Livraria Cultura anunciou o lançamento do Projeto Geek, um espaço destinado aos entusiastas de quadrinhos, filmes, séries, objetos colecionáveis e games. “O ponto de partida foi o crescimento do mercado de games no Brasil, a partir daí tivemos a ideia de desenhar outros produtos e serviços para essas pessoas”, afirma o idealizador Igor Oliveira. Até então, as boas iniciativas estavam nas mãos de pequenos empresários, dentro de nichos que compunham esse universo. Com um investimento inicial de R$ 1 milhão, a Livraria Cultura criou cinco espaços geeks dentro de lojas que já existiam e abriu dois estabelecimentos independentes em São Paulo e no Recife. “Vimos a oportunidade de unir a modernidade do mundo dos games com o caráter retrô dos quadrinhos”, diz ele.
Nos Estados Unidos, meca dos nerds, tanto grandes lojas varejistas quanto estabelecimentos menores e tradicionais abastecem esse mercado. Para Oliveira, a tendência é que as grandes livrarias acompanhem cada vez mais a segmentação também no mercado editorial. “Trouxemos de volta um hábito que já estava esquecido, de encontrar um lugar, ler e trocar ideias aos sábados de manhã e depois do expediente.” Outra mudança é que as grandes editoras começaram a investir na chamada literatura fantástica, a preferida da turma. O escritor Eduardo Spohr, 39 anos, foi um dos primeiros a se aventurar nesse estilo no Brasil. Com dificuldades para emplacar sua obra “A Batalha do Apocalipse” nas grandes editoras, Spohr fez uma parceria com os fundadores do programa “Jovem Nerd” para lançar o livro no site. As quatro mil cópias se esgotaram em dois meses. “Somente depois do programa e da parceria grandes editoras se interessaram pelo livro”, diz.
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Atualmente, o escritor possui quatro obras, sendo uma delas o livro “Protocolo Bluehand: Alienígenas”, lançadoem 2011 pela editora Nerdbook, de Alexandre Ottoni e Deive Pazos. “Nesse processo percebi que os leitores ficavam cada vez mais exigentes e queriam conversar diretamente comigo para saber o que estava por vir”, diz Sphor, que planeja lançar o próximo livro em 2015. “O nerd detém muito conhecimento sobre quase tudo, tem a mente mais lúdica e está sempre querendo aprender”, diz. Essa sede de aprendizado coloca hoje esse grupo, que tem muito para ensinar, em uma posição de prestígio na sociedade. São pessoas que, como dizem os filmes de ficção que elas tanto cultuam, voltaram para se vingar e ganhar o mundo.
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Fotos: Kelsen Fernandes/Ag. Istoé, Guilherme Pupo; Eduardo Zappia; Masao Goto Filho/Ag. Istoé

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