12.18.2011

Cérebro em mutação

Talvez o aspecto mais fascinante da neurociência moderna seja a percepção de que cada cérebro é único, resultado da interação genética com o ambiente. Mas será mesmo só isso que nos define como seres únicos?

Lembro daquele filme estranho, chamado “Boys from Brazil”, dirigido por Franklin Schaffner. A trama é sobre um plano do nazista Josef Mengele de ressuscitar Adolf Hitler por meio de um programa de clonagem. Para isso, Mengele recruta mulheres brasileiras e insere o genoma de Hitler, obtido a partir de um pedaço de pele e sangue, em óvulos para que gerem os tais clones. As crianças nascem e são adotadas por casais espalhados pelo mundo todo. Sabendo do importante papel do ambiente na formação da mente humana, Mengele deixa instruções especificas para que os clones sejam criados em condições ambientais idênticas a de Hitler durante sua vida. Obviamente, o plano é descoberto e agentes britânicos impedem que as condições sejam replicadas, alterando o estilo de vida dos casais. Mas alguns agentes mais temerosos decidem ir atrás da lista de crianças para assassiná-las antes que cresçam. A lista é queimada com o argumento de que as crianças não mais terão o mesmo ambiente que Hitler teve durante sua infância.

A ficção chegou até a realidade e muita gente ainda acha que seja possível reproduzir o caráter de alguém apenas com genética e ambiente. O antigo site “letsclonejesus.com” pedia doações para clonar Jesus usando-se amostras de DNA extraído do santo sudário. O site também procurava virgens dispostas a engravidar e viver como a mãe de cristo nos dias atuais. Já vi o mesmo pro Elvis. Surreal.
Na verdade, experimentos conduzidos em laboratório mostraram que isso é impossível. Animais clonados e com o ambiente reproduzido em condições rigorosamente controladas em laboratório acabam tendo comportamentos individuais e capacidade cognitiva tão distintos quanto eu e você. Em humanos, a natureza fez o experimento pra gente. Gêmeos idênticos, vivendo no mesmo ambiente, podem ser fisicamente indistinguíveis mas frequentemente apresentam gostos, tendências e perspectivas do mundo completamente diferentes. Sem querer negar a forte contribuição genética ou ambiental, pergunto: qual outro fator contribui para a individualidade do cérebro?
Semana passada, o grupo escocês liderado por Geoff Faulkner, da mesma universidade de Ian Wilmut (isso mesmo, aquele que clonou a ovelha Dolly) publicou um artigo na renomada revista Nature, trazendo fortes evidências para a teoria do acaso genético e gene egoísta. O conceito de acaso e serendipidade neuronal foi inicialmente proposto em 2005 com base em dados experimentais em camundongos por este que vos escreve. Na época, pensei até em deixar a ciência devido à forte reação de oposição e ao peso do que uma proposta como essa causa nos dogmas centrais da neurociência. Novas hipóteses não são sempre bem vindas na ciência e leva-se tempo até que sejam reconhecidas e validadas. Cientistas podem ser mais mesquinhos do que garotos do secundário sacaneando a espinha na testa do colega…
O grupo de Faulkner mapeou o genoma de regiões diferentes do cérebro humano, mostrando que as células do cérebro são geneticamente heterogêneas, principalmente os neurônios. Ao contrário da maioria das células presentes no resto dos tecidos do corpo, os neurônios acumulam alterações genéticas durante a vida, formando cicatrizes moleculares que nos acompanham pelo resto de nossas vidas. Alterações em outras células são, em geral, corrigidas imediatamente. Essas alterações são produzidas por regiões de DNA que não conhecemos muito bem, mas que possuem a capacidade de “saltar” de uma região para outra, como se fossem elementos autônomos vivendo dentro do núcleo das células neuronais. Apesar de esses elementos constituírem mais da metade do genoma humano, são frequentemente chamados de “DNA-lixo” ou genes egoístas e poucas pessoas estudam o que eles realmente fazem na célula.
Os saltos esporádicos desses elementos alterariam o comportamento dos neurônios de forma sutil, moldando as redes neurais responsáveis por nossos sentimentos e personalidade. Obviamente, isso tudo ainda é uma hipótese que precisa ser validada cientificamente, o que não será nada fácil. Porém, acredito que o investimento valha a pena. Se o cérebro humano for realmente constituído por uma instabilidade genética intrínseca, pode ser que exista um limite tolerável de variação. Níveis muito acima ou abaixo desse limite podem alterar o funcionamento do cérebro, talvez levando a pessoas com habilidades acima média, como um Picasso ou Einstein. Por outro lado, as variações podem ser mais dramáticas, levando a quadros complexos e heterogêneo como no caso do autismo e esquizofrenia. Esse tipo de proposta pode ajudar a explicar essas condições humanas e trazer novos insights terapêuticos.
por Alysson Muotri |
G1.com 

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