Dezembro não é um mês, é um clichê de boas festas, bolinhas piscando sobre as palavras e desejos quase sinceros de que tudo de bom se realize a você no ano que vai nascer, muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender. Madonna cantou, nasceu Jesus.Veio nos salvar do jingle da Leader Magazine, da caixinha do porteiro e da vedete que, aposto duas rabanadas, vai aparecer numa revista masculina coberta apenas de gorro vermelho e piercing de bola dourada nos mamilos.
É Natal, é o bom velhinho, é a musiquinha da árvore da Lagoa que atravessa quatro quarteirões de Ipanema e dá nos nervos de todo mundo que não comunga da mesma fé de filantropia sazonal. É tempo de paz entre os homens de boa vontade, de celebrar a vontade de fazer bem ao próximo e listar isso tudo como promessa para o ano que vem, porque em dezembro estamos todos sem tempo.Que o ano novo seja repleto de realizações, eu digo ao taxista, que me retribui os votos e sai cantando os pneus, também alegre porque é Natal, é bandeira dois, e o barbudo que está nascendo morreu na cruz para nos salvar e permitir o pagamento da bicicleta do caçula em três vezes no cartão.
Só reclamam os hereges, os que não gostam de panetone com frutas cristalizadas e os que nas compras não acumulam milhas para ir até Poços de Caldas. Não me queixo. O preço das castanhas está pela hora da morte, o bom velhinho do shopping já não pode colocar a criança no colo sob o risco de pedofilia — mas tudo passa e parece aflição pequena porque logo coloco na vitrola o LP de Luís Bordon executando “Jingle Bell” em sua harpa paraguaia.
É hora do abuse e use da C&A, do crediário na Turma da Maré Mansa e da algaravia dos clichês. “Eu não quero presente, o importante é ter saúde.” Dezembro é o não mês, um tapete vermelho que o calendário inventou para todos terem uma desculpa sentimental e passarem por cima. Eu preciso ir à Missa do Galo, eu preciso ir à festa do orfanato, eu preciso ser filantropo — e quando se vê, já começou o ensaio técnico das escolas, está todo mundo estourando champanhe, pulando três ondas e desejando boas entradas, tudo de bom.
Eu gosto do Natal porque é a hora em que tiro a naftalina da palavra “concórdia” e a exponho ao raio ultravioleta dos tapinhas nas costas. Ela passa o ano inteiro exilada nos dicionários, ultrapassada pelas premências da vida real, e eis que de repente ressurge serelepe e brilha, como o azeite no lombo do
bacalhau, em cartazes de supermercado. É tempo de concórdia, digo ao estilo dezembro, e de todos se darem as mãos.
Dezembro é a grande perda de tempo da Humanidade, um engarrafamento de boas intenções e poucas realizações. Que preguiça! Que calor! Que despautério!
Ninguém pensa muito no que vai falar. Liga-se o programa de busca e ele vai lá no fundo da memória, aciona o Google com a expressão “frases de dezembro”, e a boca imediatamente começa a descarregar os votos de que o bom velhinho seja generoso.
Algumas pessoas vão ao armário do quarto da empregada e, junto com a árvore de plástico, trazem de lá o repertório do período. Conjugam-se os verbos dentro de uma etiqueta de fraternidade universal estabelecida há muitos natais, quando o Papai Noel chegava de trenó e as associações de proteção aos animais ainda não se invocavam com a exploração de todas aquelas renas puxando o velho gordo. O mundo mudou, o bom velhinho não recebe mais cartas porque cartas não mais há. A festa, no entanto, mantém-se orgulhosa de seu antigo vocabulário e aproveita o ensejo para desejar um próspero Ano Novo a todos os leitores.
É Natal, data máxima da cristandade, do livro de ouro no açougue e de enrolar o caçula com aquela história de colocar o sapato na janela. É o mês em que todos vão constatar, a boca cheia daquele peru que apita, que o ano passou num piscar de olhos, morreu gente que nunca tinha morrido, e outras magnitudes que, sabe-se lá quem, resolveu agregar à passagem da estrela luzidia no céu de Belém. Hoje é o novo dia de um novo tempo que já começou, o momento em que os mais sensíveis vão constatar, na carta dos leitores dos jornais, que as injustiças sociais ficam mais evidentes, e se dirão, durante o especial do Roberto Carlos, que é preciso fazer alguma coisa. Há criancinhas morrendo de fome. Constatarão que a música estava certa. Pensavam que todos fossem filhos de papai Noel, mas não era verdade.
Então é Natal, pro rico e pro pobre, num só coração. É um mês cercado de lembrancinhas por todos os lados, todas piores do que as que você deixou. É o mês dos textos medonhos que acompanham os cartões purpurinados, todos eivados de votos de felicidade extensivos aos seus. Que seja feliz quem souber o que é o bem, diz a música da Simone.
Então é dezembro, quando menos se espera eis que se nos afronta a data máxima dos clichês. Ano que vem começo a dieta. Ano que vem passo as festas em Belém. Ninguém está ouvindo direito, só se presta atenção no que grita o sujeito com o microfone das promoções no meio do Saara. Não me queixo, relaxo e deixo por fim meu sincero desejo. Que bimbalhe a sina de dezembro, que bimbalhe a vida dos que
a ela sobreviverem.
Por Joaquim Ferreira do Santos
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