Ele revela um bocado sobre o jeito brasileiro de ver o sexo,
Eu teria uns seis anos de idade quando tive contato, pela primeira vez,
com o significado misterioso do verbo “dar”. A casa cheia, escuto uma
discussão em voz alta na sala e me aproximo. Uma das moças afirma, em
tom de desafio: “Dou para ele, sim, e você não tem nada a ver com isso”!
A mãe grita escandalizada, o pai manda que a filha cale a boca. No
breve silêncio que se segue, eu pergunto a todos e a ninguém: “O que ela
deu que está todo mundo bravo?” Grande erro. Os adultos se voltam para
mim com ar de fúria e berram para que eu saia dali. Cai a cortina.
Nem gosto de pensar quão velha é essa cena, mas, desde então, ficou claro para mim que “dar” não era um verbo corriqueiro. Havia nele um significado latente, carregado de censura e de silêncio, que o tornava irresistível. Mesmo hoje, tanto tempo depois, quando a compreensão e o uso banalizaram o sentido erótico de “dar”, a palavra ainda me parece fascinante. Há tantas maneiras de falar do ato sexual quanto são as línguas humanas, mas eu sinto que nós achamos um verbo bonito para tratar do assunto.
Pensem comigo: dar indica um ato autônomo de vontade. Quem dá não é roubado, quem dá não é forçado, que dá escolhe dar. Oferece ou atende a um pedido. A mim parece bonito que numa sociedade machista e historicamente repressora como a nossa tenhamos escolhido este verbo delicado para explicar o que faz a mulher que consente no sexo. Ela dá - como se desse um presente, um beijo ou um conselho. Entrega algo que é dela. Entrega-se. Há despojamento nesse verbo, doação. Quem dá, afinal, não vende nem troca. Transfere ou partilha graciosamente. Como um gesto de amor ou de luxúria, mas essencialmente dadivoso.
Não quero esticar demais o argumento, mas me parece que, neste caso, existe uma conexão entre o que se fala e o que se faz.
>> Mais colunas de Ivan MartinsNem gosto de pensar quão velha é essa cena, mas, desde então, ficou claro para mim que “dar” não era um verbo corriqueiro. Havia nele um significado latente, carregado de censura e de silêncio, que o tornava irresistível. Mesmo hoje, tanto tempo depois, quando a compreensão e o uso banalizaram o sentido erótico de “dar”, a palavra ainda me parece fascinante. Há tantas maneiras de falar do ato sexual quanto são as línguas humanas, mas eu sinto que nós achamos um verbo bonito para tratar do assunto.
Pensem comigo: dar indica um ato autônomo de vontade. Quem dá não é roubado, quem dá não é forçado, que dá escolhe dar. Oferece ou atende a um pedido. A mim parece bonito que numa sociedade machista e historicamente repressora como a nossa tenhamos escolhido este verbo delicado para explicar o que faz a mulher que consente no sexo. Ela dá - como se desse um presente, um beijo ou um conselho. Entrega algo que é dela. Entrega-se. Há despojamento nesse verbo, doação. Quem dá, afinal, não vende nem troca. Transfere ou partilha graciosamente. Como um gesto de amor ou de luxúria, mas essencialmente dadivoso.
Não quero esticar demais o argumento, mas me parece que, neste caso, existe uma conexão entre o que se fala e o que se faz.
Há na cultura feminina brasileira uma doçura que se reflete no sexo, assim como na palavra que se usa para descrevê-lo. Outras culturas são mais encanadas, problematizam, complicam. Ao final, dificultam. Na nossa ainda é simples. As mulheres dão por paixão, ou por tesão, até por pena. Dão por interesse também, claro. Mas, em qualquer circunstância, o fazem com um grau de entrega que não se acha facilmente por aí. É um fenômeno emocional e cultural, não uma habilidade física. A moça se põe de joelhos para agradar o parceiro porque isso a faz feliz – sem culpa, sem ressentimento, talvez com alguma vergonha, que logo passa.
Sempre que penso nessas coisas, lembro da história que um amigo me contou.
O americano que morou uma década no Brasil volta à cidade dele com a linda mulher brasileira. Quando ela aparece na piscina do clube é um escândalo, pelas curvas e pelo biquíni minimalista. Superado o choque mútuo, num dia de churrasco os amigos dele, meio altos, se atrevem a perguntar se, afinal, as brasileiras são na cama isso tudo que dizem. O gringo abrasileirado respira fundo e responde: “Depois de transar com uma brasileira, vocês vão querer atirar pedras nas mulheres de vocês”.
É claro que há nessa história um bocado de ironia, mas quanto?
Para escrever esta coluna, andei conversando com amigas estrangeiras que vivem ou viveram no Brasil, tentando comparar os diferentes verbos que se usam para o sexo. Não há nada parecido com esse “dar” brasileiro em italiano, francês ou inglês. Em espanhol tampouco. Mais do que isso, não há a mesma mentalidade. Uma das moças com quem eu conversei, já de volta ao país dela, me contou que o verbo “dar” a incomodava. Achava pejorativo. Se eu entendi bem, ela sentia que a palavra transferia toda a responsabilidade do sexo para a mulher. Ela preferia “transar”, que lhe parecia uma expressão mais igualitária. Tipo assim: eu não dou, a gente transa. Faz sentido, mas ela mesma acha que isso “é coisa de francesa”. Talvez seja.
Da minha parte, acho que as palavras raramente são acidentais. Sobretudo em áreas essenciais da experiência humana. De alguma forma, elas traduzem o que as pessoas sentem – ou, pelo uso, nos fazem sentir as coisas de certa maneira. No longo prazo, dá na mesma. Por isso eu gosto do verbo “dar”. Acho que ele reflete a generosidade e a simplicidade de certos sentimentos como eles são vividos no Brasil. É um verbo feminista, ademais. Ele dá poder às mulheres. Coloca-as como sujeito do sexo. Elas não são catadas, derrubadas ou pegas passivamente. Os homens “comem” (vejam que verbozinho egoísta...), mas apenas o que as mulheres lhe dão. Tem poder nisso aí, além de alguma rude poesia.
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