Daliana
Camargo queria ser magra. Fez uma cirurgia de estômago não
regulamentada e hoje vive como inválida. Não pode nem tomar água. O que
seu drama ensina sobre obesidade e ética médica
Hoje, aos 31 anos, Daliana não come. Literalmente. Durante todo o ano de 2009, não pôde colocar na boca nenhuma comida. Nem um gole de água. O que a mantém viva é uma preparação proteica que ela recebe por meio de uma sonda colocada no nariz. O tubo de plástico desce pela garganta, pelo esôfago e leva o líquido especial diretamente até o intestino, onde os nutrientes são absorvidos. O estômago dela tem uma fístula, uma espécie de vazamento, que, apesar de todas as tentativas de fechá-la, de tempos em tempos volta a abrir. É por isso que Daliana não pode comer. O que entrar em seu estômago pode sair pela fístula, cair na cavidade abdominal e provocar uma grave infecção. Há duas semanas, uma tela foi colocada no órgão na tentativa de tampar o orifício. Se não funcionar, o estômago terá de ser extraído.
Na semana passada, Daliana me recebeu no quarto de sua casa, em Goiânia (leia a entrevista). Na quarta-feira, o Conselho Nacional de Saúde considerou ilegal a técnica cirúrgica a que ela foi submetida, conforme revelou epoca.com.br na manhã da sexta-feira. Daliana passa o dia deitada na cama, presa à sonda de alimentação e ao dreno que leva para fora do corpo um líquido amarelo. É uma mistura de saliva e pus. Com 56 quilos, Daliana não passa fome. Mas sente muita vontade de comer. “Poder beber água já seria muito bom”, disse. “Uma papinha, então, seria o céu.” A vontade de comer atormenta. Em momentos de crise, ela arranca tufos de cabelo e esfrega um joelho no outro até sangrar. Sente-se melhor quando toma o antidepressivo Daforin. A família se esforça para que Daliana não seja confrontada com imagens de comida. Instaurou-se na casa um regime de censura prévia. Páginas de revista com anúncios de comida são arrancadas. DVDs que mostrem atores comendo qualquer coisa – até uma simples maçã – são banidos. A nova ameaça está no quintal: é a mangueira carregada de frutos tentadores.
Daliana foi operada pelo médico Aureo Ludovico de Paula, que realiza cirurgias em Goiânia e no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O cirurgião construiu uma carreira bem-sucedida. É bastante influente no Centro-Oeste e já operou muitos famosos. Entre eles o senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e o apresentador de TV Fausto Silva. Faustão decidiu procurar o médico quando soube que ele tinha inventado uma técnica cirúrgica para combater o diabetes. Nos últimos anos, ela foi amplamente divulgada no Brasil. Em 2007, uma revista semanal dedicou uma reportagem de capa ao método de Aureo. Estampou uma maçã do amor na capa e a chamada “Cura do diabetes: a esperança está numa cirurgia”.
AUREO LUDOVICO DE PAULA, médico que operou Daliana,
em sua defesa no processo que corre no Tribunal de Justiça de Goiás
Centenas de pacientes diabéticos (magros ou gordos) foram submetidos à técnica. Ela é chamada de interposição do íleo. A parte final do intestino delgado (íleo) é deslocada para a porção do intestino mais próxima do estômago. A lógica por trás dessa ideia é a seguinte: como o alimento chega mais rapidamente ao íleo, aumenta a produção de hormônios do intestino que facilitariam a secreção de insulina pelo pâncreas. Além disso, é feita também uma redução de cerca de 40% do estômago. O paciente perde peso, o que diminui a resistência do organismo à insulina. Em congressos e em artigos que publica em revistas médicas, Aureo afirma que quase 90% dos doentes ficam totalmente livres do diabetes. É possível, mas a técnica que ele adota não foi aprovada para uso em humanos em nenhum lugar do mundo. Portanto, a segurança e a eficácia da cirurgia – e seus efeitos a longo prazo – são desconhecidas.
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