Como ler um “ranking da corrupção”
Está fazendo sucesso desde a semana passada, no Facebook e em
blogs diversos, uma corrente com o título “TSE divulga ranking da
corrupção por partido” (veja os resultados no Google).
Trata-se de uma lista de quantas cassações o Tribunal Superior Eleitoral teria determinado para cada um dos partidos registrados no Brasil. O partido com maior volume de cassações é o Democratas – o que explica a popularidade do meme nas semanas em que o senador Demóstenes Torres não tem conseguido explicar sua relação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Muita atenção ao ler e repassar essas coisas. Quem fez a primeira versão da corrente não dá elementos para o leitor chegar por si ao espaço no site do TSE onde é possível saber mais sobre como o ranking foi feito.
Sabe por quê? Porque não veio diretamente do TSE. O único ranking que o tribunal divulga por partido é o de distribuição do Fundo Partidário.
A imagem divulgada na corrente saiu deste artigo da Wikipedia. Isso por si não desabona o levantamento. Mas ajuda a chegar às fontes e ao quanto os dados são atualizados.
O levantamento – que em nenhum momento se apresenta como um “ranking da corrupção” – foi publicado em outubro de 2007, há quase cinco anos, pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o grupo que pressionou o Congresso a aprovar a lei Ficha Limpa. Foi elaborado pelo juiz Márlon Reis para sua tese de doutorado.
Uma notícia sobre o material foi publicada na Folha, na época. A íntegra do estudo pode ser baixada aqui (PDF). A introdução mostra as delimitações do material – ou seja, o que ele é e o que ele não tem como ser:
Para haver cassação de um político de um partido, ele precisa ser eleito. Então, a colocação dos partidos na lista é mais influenciada pela quantidade de políticos eleitos que um partido teve do que pelo grau de honestidade desses políticos. Não significa necessariamente que partidos pequenos sejam mais honestos, e sim que os políticos deles têm menos mandatos e portanto menos chance de ser desonestos.
Ainda assim, a delimitação a crimes eleitorais também não ajuda a descrever esse material como um “ranking da corrupção”. É um ranking de cassações eleitorais.
Os crimes eleitorais são um pedaço pequeno da corrupção como um todo. Cassações por compra de votos (mais frequente), caixa-dois (difícil) e outros crimes eleitorais são muito menos frequentes do que perdas de mandato por desvio de recursos de repasses como o Fundef. Já corrupção durante o mandato, em licitações e outros do gênero, demora mais a levar a uma cassação. Nosso Judiciário é lento, enfim.
Consultado via Twitter, o autor do estudo, Márlon Reis, afirmou achar positivo o debate sobre os resultados – ainda que cinco anos depois. Também disse que está atualizando o material para sua tese em Harvard. É possível que mais adiante neste ano tenhamos novidades interessantes.
Leia o estudo completo (PDF). É mais esclarecedor do que ficar repassando correntes.
Trata-se de uma lista de quantas cassações o Tribunal Superior Eleitoral teria determinado para cada um dos partidos registrados no Brasil. O partido com maior volume de cassações é o Democratas – o que explica a popularidade do meme nas semanas em que o senador Demóstenes Torres não tem conseguido explicar sua relação com o bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Muita atenção ao ler e repassar essas coisas. Quem fez a primeira versão da corrente não dá elementos para o leitor chegar por si ao espaço no site do TSE onde é possível saber mais sobre como o ranking foi feito.
Sabe por quê? Porque não veio diretamente do TSE. O único ranking que o tribunal divulga por partido é o de distribuição do Fundo Partidário.
A imagem divulgada na corrente saiu deste artigo da Wikipedia. Isso por si não desabona o levantamento. Mas ajuda a chegar às fontes e ao quanto os dados são atualizados.
O levantamento – que em nenhum momento se apresenta como um “ranking da corrupção” – foi publicado em outubro de 2007, há quase cinco anos, pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o grupo que pressionou o Congresso a aprovar a lei Ficha Limpa. Foi elaborado pelo juiz Márlon Reis para sua tese de doutorado.
Uma notícia sobre o material foi publicada na Folha, na época. A íntegra do estudo pode ser baixada aqui (PDF). A introdução mostra as delimitações do material – ou seja, o que ele é e o que ele não tem como ser:
Não existe no âmbito da Justiça Eleitoral um sistema de acompanhamento estatístico. (…) A pesquisa foi feita a partir dos dados processuais de cada caso, com base nas informações disponíveis nos sites dos Tribunais Regionais Eleitorais (TRE’s) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).Cinco anos depois, mais ainda.
Algumas informações foram obtidas através de consulta direta aos tribunais e zonas eleitorais. Muitas vezes, notícias veiculadas na imprensa permitiram a descoberta da cassação. Nestes casos, a informação foi checada à luz dos dados da Justiça Eleitoral. Vários dos processos mencionados ainda se encontram em andamento. Portanto, alguma decisão pode ter sido revertida.
Para haver cassação de um político de um partido, ele precisa ser eleito. Então, a colocação dos partidos na lista é mais influenciada pela quantidade de políticos eleitos que um partido teve do que pelo grau de honestidade desses políticos. Não significa necessariamente que partidos pequenos sejam mais honestos, e sim que os políticos deles têm menos mandatos e portanto menos chance de ser desonestos.
Ainda assim, a delimitação a crimes eleitorais também não ajuda a descrever esse material como um “ranking da corrupção”. É um ranking de cassações eleitorais.
Os crimes eleitorais são um pedaço pequeno da corrupção como um todo. Cassações por compra de votos (mais frequente), caixa-dois (difícil) e outros crimes eleitorais são muito menos frequentes do que perdas de mandato por desvio de recursos de repasses como o Fundef. Já corrupção durante o mandato, em licitações e outros do gênero, demora mais a levar a uma cassação. Nosso Judiciário é lento, enfim.
Consultado via Twitter, o autor do estudo, Márlon Reis, afirmou achar positivo o debate sobre os resultados – ainda que cinco anos depois. Também disse que está atualizando o material para sua tese em Harvard. É possível que mais adiante neste ano tenhamos novidades interessantes.
Leia o estudo completo (PDF). É mais esclarecedor do que ficar repassando correntes.
O Ministério da Saúde adverte: mulheres comem melhor
O Ministério da Saúde publicou hoje o estudo Vigitel 2011.
Trata-se de uma pesquisa anual feita pelo ministério, ligando para as
casas de uma amostra de brasileiros e fazendo perguntas sobre seus
hábitos em relação à saúde. Está obeso? Fuma? Abusa da bebida? Tem o
hábito de comer carnes gordas?
A conclusão mais chamativa, que ganhou todos os portais no Brasil, é: quase metade dos brasileiros está acima do peso. Mas ele revela bem mais coisas.
Sempre vale a pena olhar as tabelas inteiras. O Vigitel tem sete. A maior parte dificilmente será noticiada, mas vale a pena olhar. Como tantos órgãos públicos, o Ministério da Saúde publica dados em formato PDF, o que é terrível para quem quer fazer comparações. Converti tudo para uma planilha que você pode baixar aqui, baixar em seu computador e fazer suas comparações.
O mais interessante é cruzar duas planilhas diferentes. Por exemplo: consumo de carnes gordas e consumo de frutas e verduras.
Fiz uma conta simples: a proporção de gente que consome frutas é maior do que a de gente que come carne gorda regularmente?
Na maior parte dos casos, não. Exceto em seis capitais:
Curitiba
Florianópolis
João Pessoa
Natal
Porto Alegre
Vitória
Em todas as capitais, a proporção de homens que consomem carne gorda regularmente é maior do que a de homens que consomem frutas e legumes regularmente. Sempre. Já as mulheres são BEM mais saudáveis. Em quase todas capitais mais mulheres comem frutas e legumes regularmente do que carne gorda, exceto nestas:
Campo Grande
Cuiabá
Macapá
Porto Velho
Rio Branco
De qualquer maneira, as tabelas mostram que as mulheres comem melhor do que os homens. Isso se reflete na estatística de que em todas as capitais, menos São Luís, a proporção de mulheres acima do peso é menor do que a de homens acima do peso. E, nos dois hábitos mais venenosos – abuso de álcool e fumo – a proporção de homens é sempre maior. Isso é bem preocupante.
Pense nisso na próxima vez em que for ao rodízio.
Questões metodológicas
Meu único senão ao estudo: ele não informa a margem de erro, o que é importante saber em qualquer pesquisa que lide com amostragem. Essa pesquisa foi feita como muitas pesquisas de intenção de voto, selecionando uma amostra de cidadãos e lhes aplicando um questionário.
Em pesquisas eleitorais, a boa prática é manter uma margem de erro de 2 ou 3 pontos percentuais. Isso vai depender do tamanho da amostra selecionada. Como foram entrevistadas 54.144 pessoas neste ano, é possível que a margem de erro não seja muito alta. Sendo de 3 pontos percentuais, os 48,5% de gordinhos seriam na verdade algo entre 45,5% e 51,5% dos brasileiros.
(Mas é um pouco de preciosismo, enfim. Não há risco de os magros processarem o Ministério da Saúde por aparecerem sub-representados na pesquisa.)
Outro risco, como a pesquisa foi feita por telefone, é o entrevistado “subfaturar” seu peso e “superfaturar” o seu consumo de frutas e verduras ou a frequência com que faz mamografia. Mas é do jogo.
Dado o tamanho do país e o custo de encontrar e pesar tantos cidadãos, fazer isso por meio de uma pesquisa de opinião é uma saída bastante inteligente.
A conclusão mais chamativa, que ganhou todos os portais no Brasil, é: quase metade dos brasileiros está acima do peso. Mas ele revela bem mais coisas.
Sempre vale a pena olhar as tabelas inteiras. O Vigitel tem sete. A maior parte dificilmente será noticiada, mas vale a pena olhar. Como tantos órgãos públicos, o Ministério da Saúde publica dados em formato PDF, o que é terrível para quem quer fazer comparações. Converti tudo para uma planilha que você pode baixar aqui, baixar em seu computador e fazer suas comparações.
O mais interessante é cruzar duas planilhas diferentes. Por exemplo: consumo de carnes gordas e consumo de frutas e verduras.
Fiz uma conta simples: a proporção de gente que consome frutas é maior do que a de gente que come carne gorda regularmente?
Na maior parte dos casos, não. Exceto em seis capitais:
Curitiba
Florianópolis
João Pessoa
Natal
Porto Alegre
Vitória
Em todas as capitais, a proporção de homens que consomem carne gorda regularmente é maior do que a de homens que consomem frutas e legumes regularmente. Sempre. Já as mulheres são BEM mais saudáveis. Em quase todas capitais mais mulheres comem frutas e legumes regularmente do que carne gorda, exceto nestas:
Campo Grande
Cuiabá
Macapá
Porto Velho
Rio Branco
De qualquer maneira, as tabelas mostram que as mulheres comem melhor do que os homens. Isso se reflete na estatística de que em todas as capitais, menos São Luís, a proporção de mulheres acima do peso é menor do que a de homens acima do peso. E, nos dois hábitos mais venenosos – abuso de álcool e fumo – a proporção de homens é sempre maior. Isso é bem preocupante.
Pense nisso na próxima vez em que for ao rodízio.
Questões metodológicas
Meu único senão ao estudo: ele não informa a margem de erro, o que é importante saber em qualquer pesquisa que lide com amostragem. Essa pesquisa foi feita como muitas pesquisas de intenção de voto, selecionando uma amostra de cidadãos e lhes aplicando um questionário.
Em pesquisas eleitorais, a boa prática é manter uma margem de erro de 2 ou 3 pontos percentuais. Isso vai depender do tamanho da amostra selecionada. Como foram entrevistadas 54.144 pessoas neste ano, é possível que a margem de erro não seja muito alta. Sendo de 3 pontos percentuais, os 48,5% de gordinhos seriam na verdade algo entre 45,5% e 51,5% dos brasileiros.
(Mas é um pouco de preciosismo, enfim. Não há risco de os magros processarem o Ministério da Saúde por aparecerem sub-representados na pesquisa.)
Outro risco, como a pesquisa foi feita por telefone, é o entrevistado “subfaturar” seu peso e “superfaturar” o seu consumo de frutas e verduras ou a frequência com que faz mamografia. Mas é do jogo.
Dado o tamanho do país e o custo de encontrar e pesar tantos cidadãos, fazer isso por meio de uma pesquisa de opinião é uma saída bastante inteligente.
Mortes mal contadas
O Grupo Gay da Bahia divulgou seu levantamento anual sobre
assassinatos de homossexuais no Brasil. Eles detectaram 267 mortes neste
ano, um recorde em sua série histórica, segundo reportagem de Aguirre Talento.
Aumento de assassinatos é sempre preocupante. Mas é difícil detectar isso com a metodologia usada pelo grupo. Segundo a reportagem, eles contabilizam mortes com base em notícias publicadas em jornais e na internet. Isso torna impossível comparar os assassinatos de 2011 aos de anos anteriores: só são contados os que se tornaram notícia.
O estudo, portanto, pode medir apenas o aumento da visibilidade das mortes de gays – que é um dos objetivos do estudo, aliás -, não exatamente um aumento nas mortes.
Uma pista disso está na afirmação de que a Bahia, sede do grupo, lidera com 28 mortes o ranking de assassinatos. Como eles têm um papel importante de dar visibilidade ao tema, é difícil saber o quanto sua atuação se reflete no fato de o Estado-sede liderar o levantamento. É bastante possível que, pelo simples fato de estarem lá e ajudarem a fazer as denúncias, as mortes de homossexuais na Bahia cheguem mais facilmente ao seu conhecimento do que as ocorridas em outros Estados brasileiros.
Isso não significa necessariamente que em outros lugares, especialmente mais populosos, haja menos assassinatos de gays. Quanto maior uma população, mais fácil acontecer qualquer coisa nela.
Outros motivos para ler o levantamento com um grão de sal:
Possivelmente um banco assim seria alimentado com dados de registros de ocorrências, que também são falhos e precisam melhorar muito, mas pelo menos são os dados nos quais as autoridades se baseiam para fazer planejamento de segurança pública.
Também seria impossível comparar as observações do levantamento anual do grupo com os dados de um banco assim.
Outro problema é determinar quando um assassinato é motivado pela sexualidade da vítima. O grupo afirma que “99% desses homicídios têm relação com homofobia”. Sempre desconfio desse tipo de estimativa mas, se considerarmos que o relatório apenas contabiliza mortes noticiadas, até faz algum sentido. É um elemento que transforma um assassinato em notícia. Mas será que é sempre assim?
Esse tipo de afirmação permite a algum gaiato brincar com coisa séria e dizer que a esmagadora maioria dos outros assassinatos ocorridos no país, não tendo gays como vítimas, são “heterofóbicos”. Não é o caso, como os militantes rapidamente dirão.
Qualquer cidadão, independentemente de sua intimidade, está exposto a latrocínios, por exemplo. Talvez, inclusive, seja o caso em algumas das mortes noticiadas e incluídas no relatório. Três latrocínios entre as 267 mortes já derrubariam a retumbante estimativa de “99%”.
Assassinato é coisa séria, mas uso público de estatísticas também é.
Aumento de assassinatos é sempre preocupante. Mas é difícil detectar isso com a metodologia usada pelo grupo. Segundo a reportagem, eles contabilizam mortes com base em notícias publicadas em jornais e na internet. Isso torna impossível comparar os assassinatos de 2011 aos de anos anteriores: só são contados os que se tornaram notícia.
O estudo, portanto, pode medir apenas o aumento da visibilidade das mortes de gays – que é um dos objetivos do estudo, aliás -, não exatamente um aumento nas mortes.
Uma pista disso está na afirmação de que a Bahia, sede do grupo, lidera com 28 mortes o ranking de assassinatos. Como eles têm um papel importante de dar visibilidade ao tema, é difícil saber o quanto sua atuação se reflete no fato de o Estado-sede liderar o levantamento. É bastante possível que, pelo simples fato de estarem lá e ajudarem a fazer as denúncias, as mortes de homossexuais na Bahia cheguem mais facilmente ao seu conhecimento do que as ocorridas em outros Estados brasileiros.
Isso não significa necessariamente que em outros lugares, especialmente mais populosos, haja menos assassinatos de gays. Quanto maior uma população, mais fácil acontecer qualquer coisa nela.
Outros motivos para ler o levantamento com um grão de sal:
- Nos anos 70, quando o grupo começou a série, eles deviam contar com a cobertura dos jornais locais e dos jornais de referência nacional que chegavam à Bahia. Hoje há uma explosão de sites de notícias e blogs, inclusive temáticos. A base não é a mesma.
- Nem todo assassinato, seja de quem for, vira notícia. Especialmente em cidades grandes, onde infelizmente tanta gente é morta que o que acaba virando notícia são as chacinas ou as mortes muito inusitadas. Também nem sempre a polícia sabe a sexualidade da vítima na hora em que descobre um assassinato e o informa à imprensa.
Possivelmente um banco assim seria alimentado com dados de registros de ocorrências, que também são falhos e precisam melhorar muito, mas pelo menos são os dados nos quais as autoridades se baseiam para fazer planejamento de segurança pública.
Também seria impossível comparar as observações do levantamento anual do grupo com os dados de um banco assim.
Outro problema é determinar quando um assassinato é motivado pela sexualidade da vítima. O grupo afirma que “99% desses homicídios têm relação com homofobia”. Sempre desconfio desse tipo de estimativa mas, se considerarmos que o relatório apenas contabiliza mortes noticiadas, até faz algum sentido. É um elemento que transforma um assassinato em notícia. Mas será que é sempre assim?
Esse tipo de afirmação permite a algum gaiato brincar com coisa séria e dizer que a esmagadora maioria dos outros assassinatos ocorridos no país, não tendo gays como vítimas, são “heterofóbicos”. Não é o caso, como os militantes rapidamente dirão.
Qualquer cidadão, independentemente de sua intimidade, está exposto a latrocínios, por exemplo. Talvez, inclusive, seja o caso em algumas das mortes noticiadas e incluídas no relatório. Três latrocínios entre as 267 mortes já derrubariam a retumbante estimativa de “99%”.
Assassinato é coisa séria, mas uso público de estatísticas também é.
Como se mede a felicidade?
Hoje, em Mercado, a correspondente Verena Fornetti entrevista o Nobel de Economia Joseph Stiglitz
sobre a proposta de um índice que meça a felicidade dos países.
Stiglitz participou de uma conferência da ONU sobre a criação do índice
de Felicidade Interna Bruta – que gerou o World Happiness Report, publicado hoje. O Brasil está em 25º lugar.
Na entrevista à Folha, o economista afirma com razão que o PIB (Produto Interno Bruto) é insuficiente para medir o bem-estar de uma população. O problema é como calcular um índice mais suficiente.
Stiglitz tem no currículo a implantação de um índice semelhante na França, e logo nas primeiras páginas do relatório (leia aqui, em inglês) são descritas as insuficiências do método proposto por ele – mais ou menos as mesmas mencionadas por Jeffrey Sachs e seus colegas no relatório da ONU lançado hoje. Toco no assunto mais à frente.
Hoje, o índice mais universal que vai além do PIB é o Índice de Desenvolvimento Humano. Vale a pena olhar um pouco da história dos diferentes índices de comparação de economias para ter uma ideia da complexidade da empreitada em que Stiglitz se meteu.
Criado pouco após a Segunda Guerra Mundial, lidando apenas com grandezas contáveis, o PIB é na verdade um cálculo sobre tudo o que um país produz em dinheiro:
C = consumo interno
I = investimento bruto
G = gastos do governo
X = exportações
M = importações
É uma fórmula conhecida de qualquer cidadão que tenha estudado o básico de economia (prestando atenção). É fácil de entender, usa elementos que todo governo naturalmente contabiliza e permite tirar conclusões a partir de aritmética simples.
A mais simples é o PIB per capita, ou quanto cada habitante de um país teria ganho em média no ano se um mendigo e o Eike Batista ganhassem exatamente a mesma coisa. É uma medida insuficiente, como se vê, mas permite comparar países. Proporcionalmente à sua população, o Brasil é um país mais rico que o Peru e mais pobre que o Uruguai.
As conclusões mais complexas geram grandes debates entre economistas e governos. Por exemplo: se os gastos do governo crescem além do que é previsto para o crescimento do PIB, é sinal de que ou o governo vai apertar o cinto nos investimentos ou vai tomar medidas que restrinjam o consumo. Outro exemplo: se as importações crescem muito além das exportações (o que significa que o país gasta mais dinheiro fora do que recebe dinheiro de outros países), ou os consumidores, ou os gastos do governo, ou os investimentos terão de colocar zíper no bolso.
Repare, porém, que ela não trata do quanto um povo é saudável ou educado – ou, enfim, feliz. O PIB pode ser alto num país tremendamente desigual, por exemplo.
Em 1990, a ONU adotou um índice que leva em conta esses fatores de bem-estar: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Sua fórmula já é um tanto mais complicada que a do PIB, ponderando atualmente a expectativa de vida ao nascer (saúde), o índice de educação (formado pelo índice de anos médios de estudo e o índice de anos esperados de escolaridade) e o índice de renda (baseado no PIB per capita).
Apesar de serem medidas mensuráveis, calculadas pelos Censos, essas grandezas consideradas pelo IDH já causam polêmica – especialmente da parte de quem aparece como menos desenvolvido quando o índice é divulgado. No ano passado, segundo um ministro, o ex-presidente Lula ficou “iradíssimo” com a posição do Brasil no ranking do IDH. Embora estivesse melhor do que a China, o país aparecia como bem pior do que a Argentina. (Veja aqui a lista completa.)
O problema é que cada país mede essas grandezas de um jeito. E nem sempre, como é da vida, a medida escolhida pela ONU é a que deixa todos os países bem na foto ao mesmo tempo. Podia ser outra medida? Podia. E isso dá espaço para longos debates – muitas vezes pertinentes, embora preciosistas.
Agora imagine a queda-de-braço política que será adotar mundialmente um índice mais complexo, que na tentativa de medir a felicidade leve em conta:
1. Bem-estar econômico. Segundo a proposta, uma ponderação de pesquisas de opinião com a população e estatísticas de dívida do consumidor, renda média, inflação e distribuição de renda.
2. Bem-estar ambiental. Também ponderando pesquisas de opinião com a população e estatísticas ambientais, incluindo poluição, ruídos e trânsito.
3. Bem-estar físico. Ponderando estatísticas sobre doenças severas, por exemplo.
4. Bem-estar mental. Ponderando também pesquisas de opinião e estatísticas como as de uso de antidepressivos e procura por psicoterapia.
5. Bem-estar no trabalho. Ponderando pesquisas de opinião com estatísticas de seguro-desemprego, mudança de emprego, reclamações sobre o trabalho e ações trabalhistas.
6. Bem-estar social. Ponderando pesquisas de opinião e estatísticas sobre discriminação, segurança, divórcio, brigas familiares, ações judiciais sobre questões familiares, processos e taxa de criminalidade
7. Bem-estar político. Ponderando pesquisas de opinião e índices sobre a qualidade da democracia local, liberdade local e conflitos estrangeiros.
As dimensões são basicamente as mesmas propostas por Stiglitz. Não parece ruim, levando em conta apenas o valor de face dos elementos. É razoável observar o uso de antidepressivos como um indicador de bem-estar mental, por exemplo. Só que tudo isso é algo muito complexo, e que enfrenta dois problemas muito sérios:
§ Dá muita margem à subjetividade, ao usar pesquisas de opinião como base ponderada para boa parte dos índices. A Transparência Internacional, por exemplo, produz anualmente um índice de percepções de corrupção. Ele é basicamente uma pesquisa de opinião. Mas, por se basear em percepção, está exposto a uma subjetividade tal que países mais pobres acabam naturalmente percebidos como mais corruptos e a Suíça, um tradicional paraíso fiscal, apareça como pouco corrupta. Essa proposta de Índice de Felicidade não se fia apenas nas percepções, mas isso é um flanco aberto a críticas.
§ Quando usa estatísticas, não leva em conta a disponibilidade de estatísticas comparáveis ao redor do mundo. Por exemplo, até onde eu saiba a Anvisa não mantém estatísticas sobre o uso de antidepressivos no país – mal e mal mantém dados desconexos sobre roubo de cargas de medicamentos, aliás. A taxa de criminalidade, também, sofre de severos problemas de subnotificação (eu, por exemplo, não registrei ocorrência policial quando fui assaltado e perdi uma câmera, há alguns anos), distorções voluntárias e metodologias que variam de Estado para Estado – imagine de país para país.
Claro que a ONU pode recomendar que os países uniformizem suas estatísticas a fim de poder adotar um índice tão abrangente. Mas ela não tem o poder de forçá-los a fazê-lo. Ainda que convença as ONGs dos países, ou que eventualmente conquiste apoio de vários políticos, seria preciso ajustar práticas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário em esferas nacionais, estaduais e municipais para chegar a tudo isso.
(Vale a pena, aliás, mencionar um aspecto relevante. Nos últimos anos, o tema entrou em debate público e virou uma espécie de moda de nicho. Aí, vários institutos passaram a tentar medir a felicidade. A Fundação Getúlio Vargas já faz há alguns anos uma pesquisa sobre a sensação pessoal de felicidade, em parceria com o instituto Gallup, de pesquisas de opinião pública. Segundo essa pesquisa, o Brasil é tetracampeão. Sempre é notícia – como foi, no começo de março. O problema: esse índice não é o que está em discussão internacionalmente. )
Quem foi que disse que é fácil chegar à felicidade?
Na entrevista à Folha, o economista afirma com razão que o PIB (Produto Interno Bruto) é insuficiente para medir o bem-estar de uma população. O problema é como calcular um índice mais suficiente.
Stiglitz tem no currículo a implantação de um índice semelhante na França, e logo nas primeiras páginas do relatório (leia aqui, em inglês) são descritas as insuficiências do método proposto por ele – mais ou menos as mesmas mencionadas por Jeffrey Sachs e seus colegas no relatório da ONU lançado hoje. Toco no assunto mais à frente.
Hoje, o índice mais universal que vai além do PIB é o Índice de Desenvolvimento Humano. Vale a pena olhar um pouco da história dos diferentes índices de comparação de economias para ter uma ideia da complexidade da empreitada em que Stiglitz se meteu.
Criado pouco após a Segunda Guerra Mundial, lidando apenas com grandezas contáveis, o PIB é na verdade um cálculo sobre tudo o que um país produz em dinheiro:
PIB = C + I + G + (X – M)
Onde:C = consumo interno
I = investimento bruto
G = gastos do governo
X = exportações
M = importações
É uma fórmula conhecida de qualquer cidadão que tenha estudado o básico de economia (prestando atenção). É fácil de entender, usa elementos que todo governo naturalmente contabiliza e permite tirar conclusões a partir de aritmética simples.
A mais simples é o PIB per capita, ou quanto cada habitante de um país teria ganho em média no ano se um mendigo e o Eike Batista ganhassem exatamente a mesma coisa. É uma medida insuficiente, como se vê, mas permite comparar países. Proporcionalmente à sua população, o Brasil é um país mais rico que o Peru e mais pobre que o Uruguai.
As conclusões mais complexas geram grandes debates entre economistas e governos. Por exemplo: se os gastos do governo crescem além do que é previsto para o crescimento do PIB, é sinal de que ou o governo vai apertar o cinto nos investimentos ou vai tomar medidas que restrinjam o consumo. Outro exemplo: se as importações crescem muito além das exportações (o que significa que o país gasta mais dinheiro fora do que recebe dinheiro de outros países), ou os consumidores, ou os gastos do governo, ou os investimentos terão de colocar zíper no bolso.
Repare, porém, que ela não trata do quanto um povo é saudável ou educado – ou, enfim, feliz. O PIB pode ser alto num país tremendamente desigual, por exemplo.
Em 1990, a ONU adotou um índice que leva em conta esses fatores de bem-estar: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Sua fórmula já é um tanto mais complicada que a do PIB, ponderando atualmente a expectativa de vida ao nascer (saúde), o índice de educação (formado pelo índice de anos médios de estudo e o índice de anos esperados de escolaridade) e o índice de renda (baseado no PIB per capita).
Apesar de serem medidas mensuráveis, calculadas pelos Censos, essas grandezas consideradas pelo IDH já causam polêmica – especialmente da parte de quem aparece como menos desenvolvido quando o índice é divulgado. No ano passado, segundo um ministro, o ex-presidente Lula ficou “iradíssimo” com a posição do Brasil no ranking do IDH. Embora estivesse melhor do que a China, o país aparecia como bem pior do que a Argentina. (Veja aqui a lista completa.)
O problema é que cada país mede essas grandezas de um jeito. E nem sempre, como é da vida, a medida escolhida pela ONU é a que deixa todos os países bem na foto ao mesmo tempo. Podia ser outra medida? Podia. E isso dá espaço para longos debates – muitas vezes pertinentes, embora preciosistas.
Agora imagine a queda-de-braço política que será adotar mundialmente um índice mais complexo, que na tentativa de medir a felicidade leve em conta:
1. Bem-estar econômico. Segundo a proposta, uma ponderação de pesquisas de opinião com a população e estatísticas de dívida do consumidor, renda média, inflação e distribuição de renda.
2. Bem-estar ambiental. Também ponderando pesquisas de opinião com a população e estatísticas ambientais, incluindo poluição, ruídos e trânsito.
3. Bem-estar físico. Ponderando estatísticas sobre doenças severas, por exemplo.
4. Bem-estar mental. Ponderando também pesquisas de opinião e estatísticas como as de uso de antidepressivos e procura por psicoterapia.
5. Bem-estar no trabalho. Ponderando pesquisas de opinião com estatísticas de seguro-desemprego, mudança de emprego, reclamações sobre o trabalho e ações trabalhistas.
6. Bem-estar social. Ponderando pesquisas de opinião e estatísticas sobre discriminação, segurança, divórcio, brigas familiares, ações judiciais sobre questões familiares, processos e taxa de criminalidade
7. Bem-estar político. Ponderando pesquisas de opinião e índices sobre a qualidade da democracia local, liberdade local e conflitos estrangeiros.
As dimensões são basicamente as mesmas propostas por Stiglitz. Não parece ruim, levando em conta apenas o valor de face dos elementos. É razoável observar o uso de antidepressivos como um indicador de bem-estar mental, por exemplo. Só que tudo isso é algo muito complexo, e que enfrenta dois problemas muito sérios:
§ Dá muita margem à subjetividade, ao usar pesquisas de opinião como base ponderada para boa parte dos índices. A Transparência Internacional, por exemplo, produz anualmente um índice de percepções de corrupção. Ele é basicamente uma pesquisa de opinião. Mas, por se basear em percepção, está exposto a uma subjetividade tal que países mais pobres acabam naturalmente percebidos como mais corruptos e a Suíça, um tradicional paraíso fiscal, apareça como pouco corrupta. Essa proposta de Índice de Felicidade não se fia apenas nas percepções, mas isso é um flanco aberto a críticas.
§ Quando usa estatísticas, não leva em conta a disponibilidade de estatísticas comparáveis ao redor do mundo. Por exemplo, até onde eu saiba a Anvisa não mantém estatísticas sobre o uso de antidepressivos no país – mal e mal mantém dados desconexos sobre roubo de cargas de medicamentos, aliás. A taxa de criminalidade, também, sofre de severos problemas de subnotificação (eu, por exemplo, não registrei ocorrência policial quando fui assaltado e perdi uma câmera, há alguns anos), distorções voluntárias e metodologias que variam de Estado para Estado – imagine de país para país.
Claro que a ONU pode recomendar que os países uniformizem suas estatísticas a fim de poder adotar um índice tão abrangente. Mas ela não tem o poder de forçá-los a fazê-lo. Ainda que convença as ONGs dos países, ou que eventualmente conquiste apoio de vários políticos, seria preciso ajustar práticas no Executivo, no Legislativo e no Judiciário em esferas nacionais, estaduais e municipais para chegar a tudo isso.
(Vale a pena, aliás, mencionar um aspecto relevante. Nos últimos anos, o tema entrou em debate público e virou uma espécie de moda de nicho. Aí, vários institutos passaram a tentar medir a felicidade. A Fundação Getúlio Vargas já faz há alguns anos uma pesquisa sobre a sensação pessoal de felicidade, em parceria com o instituto Gallup, de pesquisas de opinião pública. Segundo essa pesquisa, o Brasil é tetracampeão. Sempre é notícia – como foi, no começo de março. O problema: esse índice não é o que está em discussão internacionalmente. )
Quem foi que disse que é fácil chegar à felicidade?
Na ponta do lápis: Hora do Planeta é marquetagem barata
Todo ano, no final de março, a ONG WWF promove a Hora do Planeta,
um evento para tentar conscientizar a população sobre a importância de
poupar energia. Durante uma hora, das 20:30 às 21:30, o grupo pede que
as pessoas conscientes desliguem as luzes de casa.
A causa é nobre, mas atos simbólicos não costumam ter resultados concretos além dos ganhos de imagem muito fugidios para as ONGs que os promovem. Lembram do “xixi no banho” de há três anos? Lembram quem promoveu? Eu precisei checar. Você passou a economizar água depois de achar pitoresca a proposta? Pois é, eu também não.
Você pode muito bem apagar a luz de casa por uma hora no sábado e passar o verão inteiro com o ar condicionado ligado quando está fora, para garantir seu conforto ao voltar. Pode apagar a luz de casa depois de girar a chave no seu utilitário beberrão para comprar pão a duas quadras de casa.
É uma marquetagem barata, porque tem custo muito baixo para quem dela participa. Não é para menos que prefeituras do Brasil inteiro, ainda mais em ano eleitoral, aderem à iniciativa. São Paulo é a adesão mais vistosa das 102 anunciadas pelo grupo.
Aqui, o Mercado Municipal deve ficar no escuro, ainda que os insolúveis congestionamentos da cidade deem cada vez mais prejuízo – queimando carbono até dizer chega, para manter o foco ambiental. Uma reportagem de Alencar Izidoro, publicada no ano passado pela Folha, dá uma medida disso:
1. Pegue sua última conta de luz e veja quantos kWh gastou no mês. Em São Paulo, é considerado baixo o consumo de menos de 220 kWh por mês. O meu deu 260 kWh.
O que é essa medida, o quilowatt-hora? Ela representa a soma da energia gasta pelos seus aparelhos domésticos durante o tempo em que estiveram ligados.
Uma lâmpada de 60 watts, acesa durante uma hora, consome 0,06 kWh. Se ficar acesa durante mil horas, ela consume 60 kWh.
2. Alguns aparelhos da sua casa, como a geladeira, ficam ligados o dia inteiro. Outros, como as lâmpadas, provavelmente só por algumas horas do dia. Mas digamos que o consumo de energia se concentre todo em 10 horas por dia, levando em conta os 31 dias do mês de março. A faixa de horário escolhida pela ONG é uma de alto consumo.
Para saber quantos quilowatts você gasta por hora, em média, divida seu consumo da conta de energia de janeiro por 31 e depois por 10.
Eu, se participasse e desligasse até a geladeira, economizaria em média 0,83 quilowatts. Parece pouco, mas somado aos seus 0,7 e aos 1,0 do vizinho acabam virando bastante coisa. Mas a que isso se compara no dia-a-dia?
3. Uma maneira é olhar o consumo de eletrodomésticos. A Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) colocou em seu site, há algum tempo, uma tabela de consumo médio de diferentes equipamentos. Para facilitar sua vida, criei esta planilhaonde você pode digitar seu consumo de energia e comparar com o consumo de vários equipamentos domésticos.
Segundo ela, os 0.8 kWh que eu poupo desligando tudo em casa por uma hora equivalem a menos de uma hora de ar condicionado – um aparelho que eu não faço questão de ter em casa, economizando assim uma quantidade bem razoável de kWh no verão.
4. Seu carro não é ligado na corrente elétrica, mas o escapamento emite mais gás carbônico do que a tomada. Na Europa e nos EUA, onde a energia elétrica é de origem térmica, acender a luz é emitir carbono indiretamente. No Brasil, onde a maior parte da energia é hidroelétrica, isso é bem menor.
Como comparar o consumo do seu carro ao de energia elétrica? Convertendo tanto os gastos de energia do combustível quanto os gastos de energia da luz para outra unidade, o joule. Calcular isso à mão é complicado. Por isso uso um conversor como este. Um kWh, segundo ele, equivale a 3600 quilojoules. Ou 3,6 milhões de joules.
Segundo o HowStuffWorks, um galão de gasolina (3,75l) tem 132 mil quilojoules. Portanto, um litro de gasolina tem 35,2 mil quilojoules. Ou quase o equivalente a 10 kWh. Ficar uma hora no engarrafamento, segundo o engenheiro entrevistado pelo Alencar, gasta 1,65 litro de gasolina, ou 58 mil quilojoules.
Convertendo uma hora de engarrafamento em energia elétrica, o desperdício seria equivalente a 13,3 kWh – ou o que eu gastaria em mais de dezesseis horas de consumo médio. Ou seja: deixar o carro em casa por um dia só poupa ao planeta o equivalente a anos e anos de sua participação nessas iniciativas marqueteiras simbólicas.
Você pode argumentar que o dia mundial sem carro é só em 22 de setembro. Mas essa é outra iniciativa marqueteira. O que realmente faz a diferença são os hábitos. Fazer pequenas mudanças neles é muito mais eficaz e não tem dia marcado.
Desligar a luz por uma hora, ficando em paz com sua consciência planetária, para depois pegar seu carro ou ligar o ar condicionado, é mais ou menos o mesmo que pensar que um cheeseburger é um alimento balanceado porque tem carne, laticínios, farináceos e salada.
Por Marcelo Soares
A causa é nobre, mas atos simbólicos não costumam ter resultados concretos além dos ganhos de imagem muito fugidios para as ONGs que os promovem. Lembram do “xixi no banho” de há três anos? Lembram quem promoveu? Eu precisei checar. Você passou a economizar água depois de achar pitoresca a proposta? Pois é, eu também não.
Você pode muito bem apagar a luz de casa por uma hora no sábado e passar o verão inteiro com o ar condicionado ligado quando está fora, para garantir seu conforto ao voltar. Pode apagar a luz de casa depois de girar a chave no seu utilitário beberrão para comprar pão a duas quadras de casa.
É uma marquetagem barata, porque tem custo muito baixo para quem dela participa. Não é para menos que prefeituras do Brasil inteiro, ainda mais em ano eleitoral, aderem à iniciativa. São Paulo é a adesão mais vistosa das 102 anunciadas pelo grupo.
Aqui, o Mercado Municipal deve ficar no escuro, ainda que os insolúveis congestionamentos da cidade deem cada vez mais prejuízo – queimando carbono até dizer chega, para manter o foco ambiental. Uma reportagem de Alencar Izidoro, publicada no ano passado pela Folha, dá uma medida disso:
José Roberto Augusto de Campos, professor de engenharia de motores do Instituto Mauá de Tecnologia, fez um cálculo que dá ideia desse prejuízo. Cada hora de motor ligado, no ponto morto, significa gasto de 1,65 litro de gasolina ou 2,1 litros de álcool.Como a marquetagem barata não torna a causa menos nobre, seguem algumas dicas de como economizar tanta (ou mais) energia recorrendo ao diabo dos números.
Assim, quem percorre o corredor das avenidas Adolfo Pinheiro, Santo Amaro e São Gabriel no pico da tarde, por exemplo, gasta cerca de R$ 400 por ano apenas para deixar o carro ligado no trânsito.
1. Pegue sua última conta de luz e veja quantos kWh gastou no mês. Em São Paulo, é considerado baixo o consumo de menos de 220 kWh por mês. O meu deu 260 kWh.
O que é essa medida, o quilowatt-hora? Ela representa a soma da energia gasta pelos seus aparelhos domésticos durante o tempo em que estiveram ligados.
Uma lâmpada de 60 watts, acesa durante uma hora, consome 0,06 kWh. Se ficar acesa durante mil horas, ela consume 60 kWh.
2. Alguns aparelhos da sua casa, como a geladeira, ficam ligados o dia inteiro. Outros, como as lâmpadas, provavelmente só por algumas horas do dia. Mas digamos que o consumo de energia se concentre todo em 10 horas por dia, levando em conta os 31 dias do mês de março. A faixa de horário escolhida pela ONG é uma de alto consumo.
Para saber quantos quilowatts você gasta por hora, em média, divida seu consumo da conta de energia de janeiro por 31 e depois por 10.
Eu, se participasse e desligasse até a geladeira, economizaria em média 0,83 quilowatts. Parece pouco, mas somado aos seus 0,7 e aos 1,0 do vizinho acabam virando bastante coisa. Mas a que isso se compara no dia-a-dia?
3. Uma maneira é olhar o consumo de eletrodomésticos. A Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec) colocou em seu site, há algum tempo, uma tabela de consumo médio de diferentes equipamentos. Para facilitar sua vida, criei esta planilhaonde você pode digitar seu consumo de energia e comparar com o consumo de vários equipamentos domésticos.
Segundo ela, os 0.8 kWh que eu poupo desligando tudo em casa por uma hora equivalem a menos de uma hora de ar condicionado – um aparelho que eu não faço questão de ter em casa, economizando assim uma quantidade bem razoável de kWh no verão.
4. Seu carro não é ligado na corrente elétrica, mas o escapamento emite mais gás carbônico do que a tomada. Na Europa e nos EUA, onde a energia elétrica é de origem térmica, acender a luz é emitir carbono indiretamente. No Brasil, onde a maior parte da energia é hidroelétrica, isso é bem menor.
Como comparar o consumo do seu carro ao de energia elétrica? Convertendo tanto os gastos de energia do combustível quanto os gastos de energia da luz para outra unidade, o joule. Calcular isso à mão é complicado. Por isso uso um conversor como este. Um kWh, segundo ele, equivale a 3600 quilojoules. Ou 3,6 milhões de joules.
Segundo o HowStuffWorks, um galão de gasolina (3,75l) tem 132 mil quilojoules. Portanto, um litro de gasolina tem 35,2 mil quilojoules. Ou quase o equivalente a 10 kWh. Ficar uma hora no engarrafamento, segundo o engenheiro entrevistado pelo Alencar, gasta 1,65 litro de gasolina, ou 58 mil quilojoules.
Convertendo uma hora de engarrafamento em energia elétrica, o desperdício seria equivalente a 13,3 kWh – ou o que eu gastaria em mais de dezesseis horas de consumo médio. Ou seja: deixar o carro em casa por um dia só poupa ao planeta o equivalente a anos e anos de sua participação nessas iniciativas marqueteiras simbólicas.
Você pode argumentar que o dia mundial sem carro é só em 22 de setembro. Mas essa é outra iniciativa marqueteira. O que realmente faz a diferença são os hábitos. Fazer pequenas mudanças neles é muito mais eficaz e não tem dia marcado.
Desligar a luz por uma hora, ficando em paz com sua consciência planetária, para depois pegar seu carro ou ligar o ar condicionado, é mais ou menos o mesmo que pensar que um cheeseburger é um alimento balanceado porque tem carne, laticínios, farináceos e salada.
Por Marcelo Soares
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