6.21.2012

Juliana Paes não é Gabriela

Em vez de criar uma nova personagem, a atriz faz a paródia de Sônia Braga

Nacib suspira com o público brasileiro: “Como viver sem o calor de Gabriela?” A resposta é que é impossível vivermos sem ele. Daí Gabriela voltar agora no corpo da atriz Juliana Paes na nova novela das 23 horas da TV Globo, com direção de Mauro Mendonça Filho. Gabriela é uma das personagens femininas mais completas do romance brasileiro. A mulata de 15 anos, ancas, pernas e peitos exatos em rosto de menina, rescendendo a fragrâncias tropicais, sensualidade e doçura, mas também fazendo o que quer, dormindo com homens sem se prender a eles – ou, como escreveu Jorge Amado no romance Gabriela, Cravo e Canela, um dos maiores best-sellers do Brasil, publicado em 1958 e com mais de 60 edições só em português: “Mulher tão de fogo no mundo não havia, com aquele calor, aquela ternura, aqueles suspiros, aquele langor. Quanto mais dormia com ela, mais tinha vontade. Parecia feita de canto e dança, de sol e luar, era de cravo e canela...”
Mas será que a Gabriela que vemos agora na televisão é a mesma descrita tão intensamente no romance? Antes de mais nada, é preciso entender de que tipo de reencarnação de Gabriela se trata. Para isso, temos que nos debruçar no método de criação do autor. É interessante como os grandes personagens escapam do controle de seus autores, adquirem vida própria e ganham o mundo, como se passassem a existir de fato. No setor das fêmeas fatais, são tantos os casos: Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Capitu, de Dom Casmurro, de Machado de Assis, a chilena traiçoeira Lilly, de Travessuras da menina má, de Vargas Llosa.
Sônia Braga como Gabriela em 1975 e Juliana Paes, em 2012 (Foto: Divulgação/TV Globo)

Gabriela é filha do anseio de liberdade de Jorge Amado. Em meados dos anos 50, ele rompera informalmente com o Partido Comunista, depois de assistir à misteriosa desaparição de um punhado de colegas soviéticos e tchecoslovacos. A publicação de Gabriela marca sua renúncia ao modelo de ficção realista socialista. O que não quer dizer que tenha abdicado do aguilhão crítico. Gabriela, Cravo e Canela não é apenas uma “crônica de uma cidade do interior”, como informa o subtítulo do livro, com suas paisagens e galeria de tipos pitorescos. A narrativa promove uma sátira à contradição entre os padrões arcaicos de poder dos coronéis oligarcas e a nascente mentalidade progressista em uma cidade baiana que cresce economicamente com a cultura do cacau os anos 1920. Gabriela, a cozinheira do turco Nacib, aparece nesse palco turbulento como a suprema transgressão. Ela é fatal porque exerce o sexo livre em um ambiente hostil, povoado por solteironas moralistas, padres inflexíveis, prostitutas carolas, coronéis violentíssimos e machões de toda espécie. Gabriela quer amar os “moços bonitos” da cidade. Nem mesmo o amor de Nacib a impede de se aventurar em camas variadas. O machão Nacib tem diante de si um desafio: como aguentar os chifres, perdoar Gabriela e voltar a viver em paz com ela?
Ora, esse dilema moral retorna à TV na nova adaptação. Mas isso não parece ser importante. O que importa é como viver uma Gabriela que faça frente à adaptação de 1975. A dúvida do público mais velho é se Juliana conseguiria dar conta do papel que pertenceu a Sônia Braga. Mas é impossível Juliana ofuscar a interpretação de Sônia Braga.
Entre muitas razões para isso, a principal delas é que Juliana não interpreta Gabriela, mas sim interpreta Sônia Braga como Gabriela. E o faz conscientemente, até por não ter a pretensão de ultrapassar a célebre antecessora. Assim, a nova novela é menos uma leitura nova do romance de Jorge Amado do que um remake da versão de 1975, com a trilha original e a composição de muitos personagens. O adaptador Walcyr Carrasco fez algumas modificações para se demorar em aspectos desprezados na versão de Walter Avancini dos anos 1970, e Mendonça Filho criou cenários e figurinos bem mais elaborados que os de Durst. Mas, ainda assim, trata-se de uma releitura da telenovela, e não do romance que a inspirou, Gabriela, Cravo e Canela, de 1958. Assim, o ator Marcelo Serrado revive o Tonico Bastos, filho libidinoso do coronel Ramiro Bastos, tal como foi criado pelo ator Fulvio Stefanini. Assim como Serrado não traz muita novidade à composição do personagem, Juliana Paes parece estar restrita a “citar” o papel construído por Sônia Braga. Isso aprisiona seu desempenho como atriz. Ela reúne condições e exuberância para criar uma nova Gabriela. Mas não pode.
Uma falsa questão foi levantada em torno do “physique du rôle”, as condições viáveis e críveis para uma atriz interpretar determinado papel, no caso o de Gabriela. Juliana Paes seria, aos 33 anos, muito velha para viver uma personagem adolescente. Algo que Sônia Braga teria feito bem na novela de 22 horas de 1975. Mas é preciso lembrar dois fatos: Sônia então já tinha 24 anos. Por isso, o diretor Walter George Durst cogitou em chamar uma atriz mais nova, Ana Maria Magalhães, para o papel. Sônia acabou pegando o papel. E mesmo sem o tal “physique du rôle”, ela triunfou como Gabriela. Tanto que voltou a defender com talento a personagem no longa-metragem do diretor Bruno Barreto de 1983. Curiosamente, Sônia estava com 33 anos, a idade de Juliana.
Não há, portanto, nada que impeça Juliana de viver intensamente Gabriela. Fisicamente, ela é um modelo mais exuberante, belo, simpático e preciso da personagem. Mas aqui entra o dado histórico: Sônia Braga personificou Gabriela de tal maneira que Jorge Amado sentiu-se impossibilitado de imaginar Gabriela fora da pele da atriz paranaense. Ora, dessa honraria Juliana não será merecedora, por mais que possa fazer jus a ela. Quando um escritor confessa que sua personagem adquiriu vida por causa de uma atriz, é como se ele passasse uma procuração vitalícia à atriz. Por isso, a atitude mais prudente será esquecer qualquer reinterpretação, ou então, como o faz Juliana, referir-se à atuação “original” – que nada tem de original, uma vez que a primeira Gabriela “atuou” na imaginação do escritor em meados dos anos 50 – e apareceu pela primeira vez em papel, no romance. O desempenho original de Gabriela no cérebro do autor e se perdeu, até porque o próprio Amado desqualificou sua imaginação diante da verdade exposta por Sônia Braga. Amado ignorou a versão de Zora Sljan apresentada em 1960, na TV Tupi, com Janete Vollu no papel-título (e Paulo Autran como Mundinho Falcão). Alguém lembra ou conhece a performance de Janete? Foi esquecida, como certamente a de Juliana Paes ficará à sombra de Sônia.
Porque Sônia recriou, ampliou e corporificou a mulher fatal do romancista. Ela tornou Gabriela doce e cítrica, tímida porém audaciosa. E o olhar intenso, a vida interior que emprestou a Gabriela se afigura inimitável. Tanto que Juliana Paes não consegue fazê-lo. Ainda que tente se referir ao modelo original, Juliana é carioca, e faz Gabriela mais sapeca, despreocupada e superficial. Sua expressão traz espanto, não sedução maliciosa. O jeito de Juliana é outro, e estamos impregnados pela alma sulina insidiosamente migrada para o Nordeste de Sônia Braga. Há quem afirme que o tempo fará com que o público se acostume com Juliana. Não acredito nisso. Toda vez que olharmos para Juliana, veremos nela o espectro de Sônia. Juliana se apresenta como uma espécie de paródia de Sônia – paródia no sentido literário do termo, de resultado de uma plagiotropia consciente do paradigma inicial. Isso porque, como diria um intelectual amigo meu, Sônia representa a clivagem, o ponto de inflexão essencial na elaboração de uma personagem que nasceu de um romance de Jorge Amado para conquistar o mundo real. Ela se apossou da personagem, tomou-a para si e impediu futuras versões do personagem. E, talvez, seja o único grande papel da longa carreira da atriz de 62 anos. Não há como escapar da regra: Gabriela se tornou Sônia Braga – e vice-versa. Por seu turno, Juliana se limita ao ofício utópico de reinterpretar Sônia. Juliana Paes sofre da angústia da influência de Sônia Braga. Ela tenta, mas se descobre incapaz de reavivar aquela ternura, aqueles suspiros, aquele calor primitivo. Observando-a bem na pele de Gabriela, seu olhar trai o tempo todo a ansiedade impotente de se esgueirar do fantasma.
(Luís Antônio Giron

Um comentário:

Unknown disse...

Juliana paes e a atriz mas formidável em todas ocasiões e muito especial para todos seus fãs e muito inteligentes com muito talento para passar para todos adversários vá em frente te desejo muitas fe paz amor união e felicidades junto com todas suas famílias muita saúde e prosperidade na sua vida profissional beijos