O mais equipado posto de saúde é apenas um hotel de luxo sem a presença de um médico. Uma simples garagem pode ser um consultório razoável se contar com um médico para atender quem precisa de seus serviços.
No início deste ano, centenas de prefeitos – quase a metade dos municípios do país – tiveram um encontro em Brasília com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha. O boletim da Frente Nacional dos Prefeitos resumiu o espírito do encontro na manchete da edição de maio:
“Prefeitos cobram do ministro da Saúde ações para a contratação de médicos estrangeiros”
Não é só. Um abaixo assinado de apoio à contratação de médicos
recebeu o autógrafo de 2.500 prefeitos, que governam quase a metade das
cidades brasileiras – e só não evoluiu para um número maior porque a
Frente concluiu que já havia atingido um número suficiente para uma
demonstração de força.
Não é surpresa, assim, que a cerimônia de lançamento do programa
Mais Médicos, ocorrida no Palácio do Planalto, ontem, já tenha entrado
para a história do governo Dilma Rousseff como um episódio relevante de
seu mandato. O Palácio do Planalto estava cheio e em boa temperatura. Os
aplausos que acompanharam diversos discursos não eram 100% ensaiados
nem pura bajulação, como sempre ocorre nessas horas. Refletiam uma
preocupação dos prefeitos do país, responsáveis -- na ponta -- pelo
funcionamento de um sistema de saúde pública conhecido por ótimas
intenções mas resultados nada empolgantes. Para quem ainda não entendeu
como a política funciona na vida real, ali estava a demonstração dos
vasos comunicantes entre as várias esferas da administração pública,
indispensáveis para que um projeto de interesse universal e alcance
amplo possa dar certo. Quem rastrear a história do Bolsa Família irá
descobrir que este imenso programa de distribuição de renda só deixou o
plano das utopias e entrou na vida real de 12 milhões de famílias depois
que foi assumido pelas prefeituras.
Este antecedente indica que o Mais Médicos pode funcionar, pois
responde a uma necessidade real, mas não é garantia de nada. O apoio dos
prefeitos é um ótimo ponto de partida, mas o Planalto terá de aprovar
sua medida provisória no Congresso, derrotando diversos adversários do
plano, tanto aqueles que respondem a razões políticas e ideológicas,
como aqueles que já procuram pescar nas correntezas ainda turvas da
sucessão presidencial – e tentarão criar dificuldades para o governo de
qualquer maneira.
Mas a necessidade óbvia de atender à saúde da população mais pobre
pode criar condições para um debate bem sucedido, capaz de deixar claro
para os adversários que o desgaste pela oposição ao projeto causará um
prejuízo nada compensador aos olhos da maioria do eleitorado.
Não tenho formação nem condições de entrar num debate detalhado
sobre as mudanças anunciadas pelo governo, ontem. Como linha geral, elas
representam uma tentativa de dar novas prioridades na formação e
tratamento dos médicos brasileiros. Além de poucos médicos em relação
ao número de brasileiros, o Brasil tem médicos formados de acordo com as
conveniências do mercado privado de saúde, que procura especialidades
mais rentáveis e mais promissoras para suas respectivas carreiras – mas
que nem sempre são aquelas que atendem às necessidades da maioria da
população.
Chamado a administrar imensos recursos públicos envolvidos na
formação de um médico – o cálculo é de R$ 800.000 per capta – o governo
coloca-se no direito de definir para onde vai encaminhar seus doutores e
suas prioridades. Você acha errado?
Eu não acho. Em nosso sistema, os governantes são eleitos justamente para fazer isso.
O errado seria manter aquilo que está aí.
A crítica das entidades médicas ao projeto já passou de uma postura
racional. O centro de suas críticas se concentra na contratação de
médicos estrangeiros, o que só seria um argumento a ser ouvido a sério
se nossos doutores estivessem brigando por postos de trabalho para si ou
para outros profissionais – brasileiros -- fora do mercado. Poderiam
ser acusados de corporativismo. Mas não. Eles não querem as vagas que o
governo oferece e também não querem que elas sejam ocupadas por médicos
estrangeiros.
O resultado prático de sua postura é impedir que milhões de
brasileiros tenham acesso ao atendimento – mesmo precário, em muitos
casos – que poderiam receber.
É uma atitude nociva, do ponto de vista social, e errada, como
opção política. Eu vivia na França quando a extrema direita de Jean
Marie Le Pen fez sua aparição na cena política. Seu movimento tinha um
conteúdo racista e violento, mas é bom reconhecer que o discurso não
excluía o estrangeiro. Dizia, apenas, que os franceses deveriam ter
prioridade sobre os estrangeiros. Não se proibia argelinos nem
marroquinos de ocupar empregos que os franceses não desejavam – em
linhas de montagem na indústria, por exemplo – nem se queria impedir que
tivessem acesso ao serviço social. A bandeira do Front National era
pela preferência. Ele dizia: “os franceses em primeiro lugar.”
Nossos médicos têm uma postura mais extrema. Dizem “nunca” para os
estrangeiros, exigindo que sejam aprovados num tipo de exame, Revalida,
que contém dificuldades jamais oferecidas aos médicos brasileiros para
formar-se no país.
O argumento de que não basta contratar médicos - é preciso investir
em infraestrutura, medicamentos e outras melhorias - fala de uma
questão real, mas de modo falacioso.
Se todos esses investimentos são bem-vindos e necessários, é óbvio
que não se pode resolver todos os problemas criado por um histórico de
passividade e abandono como se fosse possível tirar um coelho da
cartola.
É absurdo negar que a simples presença de um médico numa localidade
onde não existe um único profissional de saúde já faça uma diferença
decisiva, como reconhece qualquer cidadão que já andou pelo interior do
país. O mais equipado posto de saúde é apenas um hotel de luxo sem a
presença de um médico. Uma simples garagem pode ser um consultório
razoável se contar com um médico para atender quem precisa de seus
serviços.
Paulo Moreira Leite
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