Crime
Dispara
a venda ilegal na internet de remédios para emagrecer,
ganhar músculos
e até abortar. Oito em cada dez desses produtos são falsificados.
E alguns deles não passam de farinha
Kalleo Coura
Divulgação |
FAZ
REMÉDIO OU CIMENTO? Laboratório clandestino na China. Como a Índia, o país é um dos principais fabricantes de medicamentos piratas. Para os bandidos, é um crime de altíssima rentabilidade. Para as vítimas, uma armadilha com potencial letal. |
A venda, pela internet, de remédios
para emagrecer, aumentar a potência sexual, ganhar músculos ou provocar
abortos triplicou no mundo desde 2005. No Brasil, os números sugerem que
o problema é ainda maior. Em 2007, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária apreendeu 2 toneladas de medicamentos de uso controlado destinados
a ser comercializados na rede. Dois anos depois, esse volume subiu para 28 toneladas.
Não é difícil entender o motivo da explosão. Oito
em cada dez remédios de uso controlado vendidos pela internet são
falsificados. Assim, enquanto 1 quilo de heroína rende ao traficante um
lucro de, no máximo, 3 000 dólares, a mesma quantidade de
um "remédio" para impotência, por exemplo – quase
sempre um composto de pura farinha ou substância menos inócua –,
pode render até 75 000 dólares. "Há uma tendência
mundial no crime organizado, já identificada pela Interpol, de migrar do
tráfico de drogas para o de medicamentos piratas", disse a VEJA a
alemã Sabine Kopp, secretária executiva da Força-Tarefa Internacional
de Combate à Falsificação de Produtos Médicos da Organização
Mundial de Saúde.
No Brasil, toda venda pela internet
de medicamento de uso controlado, seja ele verdadeiro, seja pirata, é ilegal.
Só as farmácias podem fazê-lo, e mediante a apresentação
de receita médica pelo comprador. Para driblar a lei, no entanto, basta
um clique. Depois de escolher um entre dezenas de sites de classificados on-line
que oferecem de anabolizantes a derivados de anfetamina, a reportagem de VEJA
encomendou, por e-mail, dois medicamentos de venda proibida no Brasil, o Acomplia,
para combater a obesidade, e o Cytotec, criado para o tratamento de úlcera
gástrica, mas frequentemente usado como abortivo. O princípio ativo
do Acomplia é o rimonabanto. Proibida desde 2007 nos Estados Unidos, a
substância foi banida no ano seguinte, no Brasil e na Europa, depois que
cinco usuários do medicamento se suicidaram no Reino Unido no período
de três meses. As mortes foram associadas ao uso do remédio –
que, por alterar o sistema de recompensa do cérebro, pode levar à
depressão profunda. No lugar do Acomplia, o pacote que chegou pelo correio
trazia o Redufast, nome de um medicamento com o mesmo princípio ativo,
o rimonabanto, fabricado por um laboratório do Paraguai e também
retirado do mercado daquele país. Já o Cytotec, cujo princípio
ativo é o misoprostol, chegou em uma cartela de Misoprost-200, supostamente
um genérico do produto fabricado na Índia. Foi entregue por um motoboy
dentro de uma caixa de telefone celular, com um "manual" que explicava
como usar o remédio para provocar aborto. O tal manual não mencionava
que o uso do misoprostol é especialmente perigoso para mulheres que se
submeteram a cesariana ou que já atingiram o quinto mês de gestação.
Os dois medicamentos adquiridos por VEJA foram enviados à Anvisa.
Apenas
20% dos remédios de uso controlado vendidos pela internet são verdadeiros.
A estimativa é do delegado Adílson Bezerra, assessor-chefe de Segurança
Institucional da Anvisa. Em geral, eles são produto de contrabando, roubos
de carga ou furtos em hospitais. Os outros 80%, falsificados, quase sempre entram
no país pelo Paraguai, tendo passado antes por portos do Chile ou do Peru.
Sua fabricação, no entanto, se dá bem mais longe, na China
e na Índia. E geralmente em condições deploráveis,
como se pode observar pela foto de um "laboratório" chinês
que ilustra esta reportagem (veja abaixo). A foto
foi obtida pela Pharmaceutical Research and Manufacturers of America, entidade
que reúne as grandes indústrias farmacêuticas americanas.
"Tanto a Índia quanto a China não respeitam patentes. Por causa
disso, é muito mais fácil adquirir lá os princípios
ativos necessários para fazer as falsificações", afirma
Lori Reilly, vice-presidente para política e pesquisa da entidade. Isso
quando há algum traço de princípio ativo nesses produtos.
Um estudo publicado neste mês pelo laboratório Pfizer no International
Journal of Clinical Practice mostrou que apenas um em cada dez comprimidos
de Viagra apreendidos no Reino Unido sob suspeita de ser pirateados continha o
princípio ativo sildenafila numa quantidade igual ou que variasse em até
10% em relação ao anunciado na embalagem. Um em cada quatro não
tinha nem vestígio da substância. A análise das pílulas
apreendidas revelou ainda a presença de metronidazol, medicamento usado
no tratamento da amebíase, paracetamol, analgésico que pode causar
insuficiência hepática quando ingerido em grandes quantidades e combinado
com álcool, e até tinta de impressora – azul, é claro,
a cor do comprimido mundialmente conhecido para tratamento da disfunção
erétil. "Quem compra medicamentos de uso controlado pela internet
não faz ideia do que está ingerindo", diz o delegado Bezerra.
"O único objetivo do falsificador é, obviamente, fazer a pílula
parecer com a verdadeira." De acordo com o Center for Medicine in the Public
Interest, centro de pesquisas independente de Nova York voltado para questões
relacionadas a medicina, a venda ilegal de medicamentos pela internet deve movimentar
neste ano 21 bilhões de dólares apenas com os produtos piratas.
Os campeões de vendas são os medicamentos usados como estimulantes
sexuais. Segundo um relatório da Interpol a que VEJA teve acesso, 21 países,
incluindo o Brasil, identificam os remédios contra disfunção
erétil como os mais pirateados. Em segundo lugar, estão os medicamentos
para tratamento da obesidade, indicados como predominantes em sete países.
A impulsionar o tráfico e a falsificação
de medicamentos está o fato de que as penas para o delito são, em
geral, bem menores do que as previstas para outros crimes. Nos Estados Unidos,
uma pessoa que é flagrada vendendo remédios ilegais pela internet
ficará no máximo três anos na cadeia, enquanto quem falsifica
dinheiro pode ficar até vinte anos. O Brasil, felizmente, é uma
exceção à regra. Aqui, a pena mínima para a venda
de medicamentos falsificados prevê cinco anos a mais do que a do tráfico
de drogas. A pena máxima, de quinze anos, é a mesma para os dois
crimes.
Mesmo assim, a atividade tem
crescido em velocidade
espantosa. Segundo o delegado Carlos Eduardo Sobral,
chefe da Unidade de Repressão
a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal, o crime
organizado ainda
não se apropriou dela. Está na mão de indivíduos.
"Prendemos desde donos de academia de ginástica até comerciantes
que traficavam medicamentos para complementar a renda",
diz. A polícia
acredita ter tirado de circulação, em janeiro de 2009, o
maior vendedor
de medicamentos ilegais pela internet do país: Fábio
Carvalho Alves,
ex-balconista de farmácia e morador de Goiânia (GO), que
chegava
a faturar 30 000 reais por mês com o negócio. Dono de
mais
de vinte sites e páginas no Orkut, ele recorria a um
método ardiloso
para atrair compradores: criava perfis falsos na rede
para travar os primeiros
contatos com suas vítimas e, em seguida, tentava
induzi-las a comprar seus
produtos. Num desses falsos perfis, Alves colocou a foto
de uma mulher obesa de
costas. Sobre a imagem, anunciava: "Sou gorda e me
odeio". Durante semanas,
ele trocava mensagens com pessoas que se identificavam
com o personagem inventado
e outras que conhecia em comunidades virtuais
relacionadas à obesidade. A todas, relatava o sofrimento causado pela
sua falsa condição.
Depois de um tempo, mudava o discurso: havia descoberto
um remédio ótimo,
que podia ser comprado na internet etc. O vendedor
recomendado era, claro, ele
mesmo. Se usar remédios controlados sem acompanhamento
médico é
um risco à saúde, comprá-los pela internet duplica essa
ameaça.
No mínimo.
Fotos Christian
Rizzi e Pedro Rubens |
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CONTRABANDEADOS Medicamentos apreendidos pela Receita, alguns com venda proibida no Brasil, como os que foram adquiridos pela reportagem (à dir.) | Quadro: Pílulas criminosas | Quadro: É arriscado, sim |
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