A boca no centro das atenções
A medicina não reparava muito nela e a odontologia cuidava apenas dos problemas localizados. Agora, as duas disciplinas se uniram para estudar a relação entre a saúde da boca e o que acontece no restante do organismo. E vice-versa
Aretha Yarak
Escovar os dentes, usar o fio dental e visitar o dentista a
cada seis meses ajuda a evitar inflamações nas gengivas - problema que
pode estar relacionado com outras doenças sistêmicas
(iStockphoto)
Placas dentárias podem aumentar em até 80% os riscos de uma morte
prematura causada por câncer. O alerta, publicado recentemente no
periódico British Medical Journal, é apenas o mais recente de
uma série de estudos que vêm movimentando a odontologia e a medicina.
Recentemente, o avanço na tecnologia de detecção de doenças e um
movimento realizado pela classe odontológica "para trazer a boca de
volta ao corpo” — ou seja, estudar sua relação com o resto do organismo —
alavancaram o número de estudos que relacionam as duas áreas. Como
resultado, foi desvendada uma série de relações entre infecções que
ocorrem na boca e problemas cardiovasculares, diabetes, obesidade,
câncer, osteoporose, parto prematuro e nascimento de bebês abaixo do
peso.
Saiba mais
DOENÇA PERIODONTALA infecção crônica de origem bacteriana que atinge a gengiva e os tecidos dos dentes. A doença é causada pelo acúmulo de bactérias entre os dentes e a gengiva, e pode levar à perda dentária. Problema dentário mais comum em adultos, a periodontite é ainda uma das doenças inflamatórias crônicas mais comuns no mundo. Sua forma inicial, e mais comum, é a gengivite, caracterizada por uma inflamação leve das gengivas — que ficam avermelhadas, inchadas e chegam a sangrar. A evolução da doença pode levar anos, causando a perda de tecido de suporte do dente — como o ósseo —, o que acaba por ocasionar a perda de um ou mais dentes.
A ideia de relacionar a saúde bucal com problemas em outras áreas do
corpo surgiu no início do século XX. Nessa época, acreditava-se que
infecções com origem na boca poderiam ser a causa direta de outras
doenças – nascia aí a tese da infecção focal. "Foi uma catástrofe,
várias pessoas tiveram os dentes arrancados desnecessariamente. A
odontologia acabou sendo desconsiderada pela medicina", diz Giuseppe
Romito, professor titular de periodontia da Universidade de São Paulo.
Acreditava-se, sem qualquer base científica, que arrancar os dentes com
problemas evitaria que a infecção fosse disseminada.
Segundo o especialista, a meta agora é fazer com que a boca volte a ser
entendida como uma parte integrante do corpo. Em outras palavras, os
dentistas vêm tentando provar cientificamente que o que acontece dentro
da boca tem uma relação direta com o funcionamento de todo o organismo.
Prova científica — Foi apenas na década de 1970,
quando o dentista americano Steven Offenbacher realizou pela primeira
vez um teste clínico que ligava processos inflamatórios na boca com a
ocorrência de parto prematuro, que a relação boca e corpo começou a ser
levada a sério novamente. Teria início, então, uma caçada científica por
quaisquer relações com as demais inflamações do corpo. Dezenas de
estudos conseguiram confirmar os achados de Offenbacher e encontraram
ainda conexões dos males bucais com diabetes, doenças cardiovasculares,
pulmonares, de próstata, osteoporose e câncer.
Quando começou suas investigações, Offenbacher pôde estabelecer apenas
uma relação epidemiológica entre as inflamações na gengiva causadas por
bactérias e parto prematuro. Hoje, no entanto, uma série de estudos
conseguiu provar com mais precisão a relação entre essas duas condições.
Em uma pesquisa publicada em 2007 no Journal of Periodontology,
o especialista mostrou que quanto mais cedo se der a exposição às
bactérias, maiores serão os riscos do parto prematuro. Nos dados
coletados por Offenbacher, descobriu-se que a exposição com 32 semanas
de gestação aumentava os riscos de parto prematuro 3,7 vezes. Com 35
semanas, o risco aumentava duas vezes.
Efeito cascata — As infecções bucais podem causar
prejuízos aos demais órgãos por dois processos inflamatórios diferentes.
No primeiro e mais simples, as bactérias alojadas na gengiva se
deslocam pelo organismo e se instalam em determinados órgãos,
prejudicando seu funcionamento. Nesse caso está o mais conhecido dos
problemas, e o único que é, de fato, causado diretamente pela inflamação
na boca: a endocardite bacteriana. "A bactéria da gengiva viaja pela
corrente sanguínea até as veias coronárias (que levam sangue ao coração)
e se alojam ali, infeccionando a membrana da válvula", diz Rodrigo
Bueno de Moraes, periodontista e consultor da Associação Brasileira de
Odontologia (ABO). Em abril deste ano, a Academia Americana do Coração
(AHA, sigla em inglês) publicou um artigo no periódico médico Circulation confirmando
que existe, de fato, uma associação entre a doença periodontal e a
arteriosclerose (endurecimento das artérias). Apesar da relação, não é
necessário que pessoas com boa saúde procurem um cardiologista a cada
inflamação na gengiva.
Há uma segunda maneira pela qual as doenças bacterianas que ocorrem na boca repercutem em outras partes do corpo. Enquanto
luta para exterminar as bactérias invasoras que tiveram origem na boca,
o sistema imunológico libera diversas substâncias no organismo. Isso
causa um desequilíbrio químico, elevando os níveis de substâncias que
interferem no funcionamento de órgãos, do metabolismo e de sistemas
inteiros do corpo. É o caso, por exemplo, do diabetes. O processo
inflamatório na gengiva não causa a doença, mas ajuda a desequilibrar o
balanço químico do organismo, dificultando, assim, o controle dos níveis
de glicose. Mas a relação entre as condições é uma via de mão dupla. O
diabetes, por si só, pode piorar quadros de inflamação gengival.
Em pesquisa publicada no periódico The Journal of the American Dental Association
(JADA), o pesquisador IB Lamster descobriu que conforme o índice
glicêmico de pacientes com diabetes perdia o controle, os efeitos
colaterais da doença nas inflamações da gengiva ficavam mais sérias.
Esse mesmo desequilíbrio químico pode estar relacionado ainda com
problemas como câncer, parto prematuro e nascimento de bebês abaixo do
peso, artrite reumatoide e obesidade. Prestar atenção ao que acontece na
boca, está provado, pode ser não só uma boa maneira de evitar doenças,
mas também detectá-las.
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