5.11.2014

Liberdade para amar sem precisar fazer sexo

  • Assexuais vencem preconceito e desconhecimento e começam a se assumir, mas medo de rejeição ainda os aflige
Maria Clara Serra 
Coragem para se expor. Cláudia Kawabata é um dos poucos assexuais a se assumir. Após passar por um casamento conturbado e uma série de diagnósticos equivocados, ela hoje é ativista da causa e se considera uma pessoa mais feliz Foto: Marcos Alves / Marcos Alves
Coragem para se expor. Cláudia Kawabata é um dos poucos assexuais a se assumir. Após passar por um casamento conturbado e uma série de diagnósticos equivocados, ela hoje é ativista da causa e se considera uma pessoa mais feliz Marcos Alves / Marcos Alves
RIO — “Quando penso que alguém gostaria de fazer sexo comigo, tenho vontade de me afastar. Satisfaço minha libido sozinha, e não me agrada que outros se envolvam nisso. Sinto como se só atrapalhassem. Para mim, o prazer não funciona se envolver outras pessoas”. Assim, L.Cukier — pseudônimo de uma operadora de caixa de 25 anos — descreve sua relação com o sexo. Ela faz parte de um grupo crescente de pessoas que se dizem assexuais e, como a grande maioria, prefere se esconder para evitar o preconceito.
Basicamente, os assexuais se definem pela falta de atração sexual por outros. São pessoas em tudo como as outras, exceto pela falta de interesse nesse tipo de relação. No entanto, ainda há quem acredite se tratar de um transtorno. Isso coloca esse grupo no início de uma jornada enfrentada pelos homossexuais desde o século XIX, mas com uma vantagem: o “DSM”, bíblia do diagnóstico e tratamento dos transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria, explicita que não há patologia nesse caso, desde que não haja sofrimento.
— O único sofrimento é ter que viver em uma sociedade que espera, que exige que eles tenham um parceiro sexual — explica Elisabete Oliveira, especialista em estudos da sexualidade, gênero e diversidade sexual que finaliza uma tese de doutorado sobre o tema na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). — A principal conclusão da minha pesquisa é que eles sofrem homofobia, mesmo não sendo homossexuais.
Foi o que aconteceu com a estudante Camila Hordones, de 20 anos. Mais ou menos aos 12 anos, quando meninas e meninos começaram a expressar sua sexualidade, ela sentiu que tinha algo de diferente. Não se enquadrava, não sentia desejo nem atração estética — os assexuais diferem a atração sexual da estética — e, por isso, começou a sofrer bullying.
— Eles diziam que eu era lésbica. O processo até eu descobrir o que era foi longo. Só quando a minha mãe me contou que tinha um personagem na “Malhação” (novela da TV Globo) foi que eu descobri que não era única, que tinha outras pessoas como eu — conta Camila, que ganhou fama na internet depois de postar vídeos se assumindo e questionando a forma como a sociedade lida com o tema.
Descoberta dolorosa
O sentido de pertencimento dessa comunidade veio somente em 2001, e graças à internet. O termo foi criado junto com a AVEN (Assexual Visibility and Education Network), hoje a maior comunidade assexual do mundo, com 70 mil membros.
Para Cláudia Mayumi Kawabata, orçamentista gráfica de 34 anos, a descoberta foi bem mais dolorosa. Ela se casou, teve uma filha, foi acusada pelo marido de traição — como não sentia atração por ele, a explicação lógica era a relação com outro homem — e, depois, foi diagnosticada com depressão.
— Na época não existia o termo assexualidade. Procurei ajuda, e me diagnosticaram com depressão pós-parto, bipolaridade e outros distúrbios — lembra Cláudia. — Mas eu sabia que era diferente desde os 14 anos. Eu me apaixono normalmente, mas não sinto atração sexual nem estética. Depois que descobri que era assexual, mudei muito. Eu era tímida e muito insegura, hoje consigo interagir com as pessoas. Me considero feliz.
Desde 2013, Cláudia é moderadora da comunidade A2, que reúne 880 assexuais no Brasil. Ela realizada encontros em São Paulo, onde vive, com um grupo de 35 pessoas. Destas, apenas duas se assumiram para familiares e amigos. O medo de se expor, segundo Elisabete, é motivado pelo preconceito e a dificuldade em explicar para as pessoas o que significa ser assexual.
Para a psiquiatra e colunista do GLOBO Carmita Abdo, o estranhamento e a repulsa são a manifestação de um inconsciente coletivo.
— A partir do momento em que o seu comportamento não está compatível com a perpetuação da espécie, para a maioria das pessoas fica difícil aceitar de uma forma tranquila. A lógica é a mesma do preconceito contra o homossexual. — analisa Carmita. — Sexo é bom para 90% da população. Os outros 10% estão interessados em outras coisas. O que importa é a pessoa ter interesse pela vida.
Não é o que pensa o médico e psicólogo Jorge José Serapião, professor da Faculdade de Medicina da UFRJ.
— É uma patologia. A conceituação do assexual é muito difícil de considerar quando temos uma visão da sexualidade que vai além da genitalidade. A pessoa pode não querer, mas negar a sexualidade como uma busca do prazer é muito pouco provável — diz Serapião. — Como médico, eu entendo alguém que se diz assexual como deprimido ou com o transtorno do Desejo Sexual Hipoativo (DSH).
Medo da solidão
Assim como Carmita, a psiquiatra e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) Katia Mecler segue a recomendação da edição mais recente do “DSM”, publicada em maio de 2013. No entanto, ela acredita que faltam pesquisas para esclarecer melhor a questão.
— É preciso tomar cuidado com o preconceito. Há pouco tempo os gays eram considerados doentes. — alerta Katia. — Mas também temos que lembrar que pode se tratar de um problema, que pode ser causado por disfunções hormonais, medicamentos que baixam a libido ou até mesmo por dificuldades no relacionamento.
A tese de Elisabete ainda não está pronta, mas uma das principais percepções é que, para os assexuais românticos — definição para aqueles que estão abertos ao relacionamento amoroso — há o medo de acabar a vida sozinhos.
— Minha mãe é que as vezes me cobra pelas “namoradinhas”, mas como se sentir bem ao lado de alguém que no, final, espera sexo? — questiona o auxiliar administrativo Ariel Franz, de 23 anos, que criou no Facebook a página Assexuais Também Amam. — Não significa que eu não esteja aberto para uma relação. Se aparecer uma outra pessoa assexual, quem sabe?
Glossário
Assexual: Alguém que não sente atração sexual por outras pessoas.
Demissexual: Aquele que pode sentir atração sexual depois de um vínculo emocional.
Atração: Refere-se a uma força mental ou emocional que atrai as pessoas. Assexuais não sentem atração sexual, mas alguns sentem outros tipos de atração, como a estética (pela aparência), a romântica (desejo de estar envolvido emocionalmente com alguém) ou sensual (pelo contato físico mas não sexual, como nas trocas de carinhos).
Arromântico: Aquele que não tem interesse em relações amorosas e que dá mais importância para as amizades.
Heterorromântico: Assexual que se relaciona emocionalmente com pessoas do sexo oposto.
Homorromântico: Assexual que se relaciona emocionalmente com pessoas do mesmo sexo.
Birromântico: Assexual que se relaciona emocionalmente com ambos os sexos.

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