Como a omissão e a conivência de
médicos veterinários, ao não fiscalizarem a carne vendida no País,
colocam em risco a saúde da população brasileira
Natália Mestre, Rodrigo Cardoso e Suzana Borin
IRREGULARIDADES
Carcaças a céu aberto no matadouro Dois Irmãos, em Novo São Joaquim (MT)
Sangue escorrendo livremente pelo chão, o
ranger do serrote cortando ossos e pedaços de carnes jogadas por cantos
imundos e fétidos. Essa cena se repete diariamente em matadouros e
frigoríficos localizados, principalmente, em cidades do interior do
Brasil. Um levantamento nacional, feito durante nove meses pela ONG
Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, constatou que 30% da carne
consumida no País não passa por nenhuma fiscalização. “Estamos colocando
a vida dos brasileiros em risco”, alerta Roberto Smeraldi, presidente
da ONG. E, pior ainda, o estudo elaborado pela Amigos da Terra constatou
que 70% dessa carne não é clandestina. Ou seja, apesar de imprópria
para o consumo, ela passa facilmente pelos mecanismos de fiscalização
governamentais, pois transita por frigoríficos e abatedouros autorizados
a funcionar, com a aprovação concedida por médicos veterinários que têm
o dever de atestar a origem e a qualidade do que será levado à mesa dos
brasileiros. Diante de um quadro tão ameaçador, a posição do presidente
do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), Benedito Fortes de
Arruda, que deveria zelar para que seus profissionais cumpram com rigor
suas atribuições, é espantosa: “Se fôssemos colocar em prática todas as
normas, teríamos de fechar a maioria dos abatedouros que não têm
fiscalização federal”, admite. “A presença do veterinário é uma regra
que, na maioria dos casos, não é respeitada. E acabou se tornando uma
prática normal nesses estabelecimentos.” O problema é que a omissão – ou
conivência – dos veterinários com esses matadouros expõe a população a
uma série de doenças, como a teníase, que leva a perturbações nervosas, e
a potencialmente fatal tuberculose.
IRREGULARIDADES
Homem sem camisa abate boi no chão do matadouro:
contra as regras de higiene e segurança
Atualmente, 1,39 mil frigoríficos abatem 29,8 milhões de cabeças de
gado por ano no Brasil. Desse total, apenas 206 estabelecimentos são
fiscalizados pelo governo federal, onde existe um controle eficiente.
Nos demais, a inspeção fica a cargo das administrações estaduais e
municipais. As fraudes, segundo o estudo da ONG, ocorrem principalmente
nesses últimos. “Percebemos que 80% desses estabelecimentos não possuem
nenhuma condição de higiene e estrutura para estarem abertos. Pode-se
dizer que são iguais, ou muito próximos, dos frigoríficos clandestinos”,
diz Smeraldi. “E o pior: a presença do veterinário, quando existe, não
funciona.” Na prática, muitos dos veterinários contratados apenas
assinam a liberação da carne, sem fazer nenhum tipo de verificação no
gado ou nas condições do abate. O resultado do trabalho da ONG foi
apresentado, na semana passada, à Comissão de Meio Ambiente e
Desenvolvimento Sustentável do Senado. Parlamentares sugeriram a
abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as
condições sanitárias de toda carne vendida no Brasil. Certamente, o
Conselho Federal de Medicina Veterinária será parte das investigações.
Na comissão também transita uma proposta para que seja elaborado projeto
de lei visando unificar a fiscalização, como ocorria no passado.
Até 1989, a inspeção era única. Com o objetivo de agilizar os
processos, ela foi descentralizada. Mas a grande consequência, na
verdade, foi torná-la precária. Hoje, o controle só é eficaz nos
abatedouros sob responsabilidade das autoridades federais – onde,
inclusive, é produzida a carne para exportação. Esses obedecem a padrões
rígidos de higiene e segurança alimentar, os médicos veterinários são
concursados e têm estabilidade no emprego. Em boa parte dos
estabelecimentos sujeitos à fiscalização municipal, por exemplo, a
função é um cargo de confiança da prefeitura, situação semelhante à da
maioria dos Estados. “Esse sistema fez com que houvesse a degradação das
condições de trabalho. Os trabalhadores hoje passam por todo tipo de
pressão e ameaças, tanto dos proprietários quanto dos políticos, e não
têm a quem recorrer”, diz Wilson Roberto Sá, presidente do Sindicato
Nacional dos Fiscais Federais Agropecuários (Anffa).
Para Estados e municípios, a adesão aos padrões rígidos de higiene e
segurança alimentar é voluntária e, segundo pesquisa da Confederação
Nacional dos Municípios (CNM), apenas 20% das prefeituras brasileiras as
seguem. Além disso, 68% dos municípios nem sequer têm um serviço de
inspeção instalado. “O grande problema está no abate não inspecionado, o
chamado clandestino oficial”, diz Péricles Pessoa Salazar, presidente
da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo). Essa carne, mais
barata, normalmente é destinada aos açougues de bairro ou pequenos
estabelecimentos populares nas periferias. Até a carne seguir para os
pontos de venda, ela deve ser acompanhada por dois profissionais da área
veterinária: o veterinário RT, responsável pelas condições da estrutura
e higiene dos abatedouros e frigoríficos, e o fiscal veterinário,
especializado em saúde animal, que acompanha todo o procedimento de
abate. Porém, a presença desses profissionais, muitas vezes, é
pró-forma. Existe apenas no carimbo deixado por eles mesmos no local.
Essa prática foi documentada em vídeo pela ONG Amigos da Terra em um
frigorífico em Parapauã, no interior de São Paulo, onde faltam azulejos
nas paredes e os animais são cortados no chão porque os ganchos nos
quais as peças deveriam ser penduradas estão enferrujados. O
veterinário, cujo nome é mantido sob sigilo até o final da investigação,
cedeu seu carimbo aos funcionários do abatedouro para que eles mesmos
exercessem o papel de fiscal. “Os veterinários mantêm esse tipo de
serviço como um bico, já que é difícil encontrar uma prefeitura que
pague um salário de R$ 6,5 mil, valor condizente com o trabalho de
fiscalização”, reconhece Francisco Cavalcanti de Almeida, presidente do
Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo. “A
solução encontrada por parte dos prefeitos é contratar um profissional
sem especialização na área, algo que sai bem mais barato.” Apesar de
constatada a fraude, não se tem conhecimento de ações concretas do
Conselho de Medicina Veterinária para impedir a irregularidade. Trata-se
de uma conivência que faz com que a situação caótica dos abatedouros
estaduais e municipais se agrave. “Os veterinários fazem vista grossa e
deixam passar as irregularidades”, afirma Salazar, da Abrafrigo. As
explicações para esse tipo de comportamento são variadas: “A gente vê de
tudo, de pagamento de propina a dono de frigorífico com costas quentes
com a administração pública”, acrescenta.
A interferência política, segundo os veterinários, é um problema
sério que acaba desmotivando a categoria. “Muitas vezes fazemos a
intervenção para fechar o estabelecimento e conseguimos lacrar. Mas
depois o poder público municipal intervém mostrando somente ‘planos de
investimentos’ e eles conseguem a liberação do juiz para voltar a
funcionar. É essa a nossa grande dificuldade: a ingerência de prefeitos,
o pedido de um amigo do prefeito e de todo o poder público”, afirma
Arruda, presidente do CFMV, em defesa da classe. Tão logo um fiscal
veterinário faz a identificação de um animal doente, a conduta normal é
informar a Defesa Sanitária Animal. Esse fato condena o gado e tira toda
a possibilidade de o criador ter lucro. “Em média, um boi tem 300
quilos de carne. Descartando-se esse animal, perdem-se cerca de R$ 1,2
mil. É um prejuízo muito grande para pequenos pecuaristas que abatem dez
animais por semana. Por isso, muitas vezes, eles fazem ameaças aos
veterinários”, diz Arruda. O problema é que, como ordem de classe, o
CFMV deveria tomar medidas enérgicas e não apenas lamentar. Governantes
coniventes com frigoríficos e abatedouros que ameaçam a saúde pública
deveriam ser denunciados, e veterinários que não cumprem sua missão
deveriam ser proibidos de exercer a profissão. São medidas que dependem
apenas do órgão de classe e que podem trazer resultados concretos.
Fonte: ONG Amigos da Terra, Sindicato Nacional dos Fiscais Federais
Agropecuários (Anffa), United States Departament of Agriculture (Usda)
Fotos: Ong amigos da terra; Roberto Smeraldi