A
promessa de cura para todos os tipos da doença saiu do interior de São
Paulo e se espalhou pelo Brasil. Descubra como funciona esse composto e
porque ele vem gerando tanta polêmica | por Theo Ruprecht e Karolina
Bergamo
Mesmo
sem ter sido estudada em seres humanos, a fosfoetanolamina move uma
peregrinação de pacientes, com direito a campanha nas redes sociais. E a
discussão em volta dela foi parar até em tribunais e no Congresso
Nacional. O pai do composto, o químico Gilberto Chierice, e outros
cientistas passaram a disponibilizá-la para as vítimas de câncer até
2014, quando a USP vetou a aplicação médica de quaisquer substâncias sem
registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.
Após a decisão, surgiram vários pedidos
de liminares, em boa parcela aceitos pelo Poder Judiciário, de pessoas
que alegavam se beneficiar da pílula azul e branca. Isso tudo fez
estourar um debate intenso. De um lado, vêm a cobrança e o desespero dos
doentes, amplamente expostos nas redes sociais. Do outro, pesam as
críticas dos especialistas, que exigem estudos controlados em seres
humanos para comprovar o verdadeiro efeito da droga.
Como a fosfo funciona
Pelo que se conhece até o momento, ela distinguiria as células sadias
das cancerosas e, aí, sinalizaria para o sistema imune dar cabo delas. O
fato é que, em bichos, a droga minimizou a proliferação das unidades
defeituosas. Esses dados iniciais, junto com os testemunhos e as
declarações de Chierice, alçaram-na ao status de cura para todos os
tumores. “Mas isso é improvável. Ela até pode ser eficaz contra
determinados tipos, mas cada câncer tem particularidades”, pondera o
oncologista Rafael Schmerling do Centro Oncológico Antônio Ermírio de
Moraes.
E não é que, do nada, a fosfo começou a
ser distribuída a pessoas com câncer. Chierice e seu grupo revisaram a
literatura científica, que desde 1936 associa a substância à doença.
Eles também se desdobraram para sintetizá-la e, no começo dos anos 2000,
publicaram investigações em culturas de células e roedores. Mas a
história emperra aqui. Afinal, bons resultados em bichos não justificam o
uso indiscriminado em gente. “Muitas vezes, a toxicidade observada em
animais não é a mesma encontrada em seres humanos”, esclarece o
farmacêutico Wagner Ricardo Montor, professor da Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo.
E os inúmeros relatos de melhora?
Eles impressionam até pela variedade de tumores que teriam sido
rechaçados com a fosfo. Tanto que fizeram o advogado Dennis Cincinatus,
do Rio de Janeiro, recorrer no Supremo Tribunal Federal (STF) de uma
decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que impedia sua mãe,
acometida por um câncer de pâncreas que não respondia a outras
terapias, de receber a fórmula. O ministro do STF Edson Fachin concedeu a
ela o direito de receber a pílula da USP. “Minha mãe tomava morfina de
quatro em quatro horas. Agora não precisa mais e até consegue se
levantar”, descreve Cincinatus.
Só que, mesmo diante de tanto furor, é
vital dar um passo atrás e compreender a razão pela qual a maioria dos
cientistas insiste que relatos de caso, por mais empolgantes, não
garantem a eficácia de uma droga.
Alguns motivos para ter cautela
- Os depoimentos positivos quase sempre se sobrepõem aos negativos.
Várias pessoas que engolem uma pílula contra o câncer e não melhoram
caem no silêncio ou, infelizmente, morrem antes de dar declarações.
- Sempre há um viés por parte de quem coleta e seleciona os
testemunhos. Ora, um sujeito que deseja provar o potencial de um
comprimido pode destacar os finais felizes.
- Sem um seguimento pormenorizado, é impossível medir a evolução do
quadro (será que o tumor regrediu ou só alguns sintomas foram aliviados
provisoriamente?).
- Não dá pra saber se uma eventual recuperação veio da promessa
testada, de um tratamento anterior ou de qualquer intervenção adotada,
às vezes inconscientemente.
“Esses anos sem pesquisa clínica são um
desperdício. Se a fosfoetanolamina é boa, perdemos tempo para aplicá-la
em mais gente. Se é ruim, colocamos brasileiros em risco
desnecessariamente”, comenta o oncologista Paulo Hoff, que dirige o
Centro Oncológico do Hospital Sírio-Libanês.
Que comecem os testes
Numa coletiva de imprensa em 16 de
novembro, o Ministro da Ciência, Celso Pansera, anunciou que a primeira
fase de testes da fosfo deve ser concluída em sete meses. A coletiva
ocorreu depois de uma reunião entre o Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI), o Ministério da Saúde (MS) e a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). O governo vai destinar R$ 10 milhões para
as atividades envolvendo o composto, que serão desenvolvidas por
laboratórios que possuem parcerias com o MCTI e o MS, além do Instituto
Butantan, que já estava envolvido nas pesquisas.
No entanto, apesar de os testes estarem
se iniciando, o Ministério da Saúde recomenda que as pessoas não tomem a
substância até que eles sejam concluídos.