Jovens de 16 anos conquistam novos
direitos, mas ainda são tratados como crianças quando cometem crimes.
Agora, aumenta a pressão para que recebam penas mais duras quando
participam de crimes hediondos ou são reincidentes
Suzana Borin
Desde 1940, quando a legislação brasileira
estipulou a maioridade penal, qualquer jovem com idade inferior a 18
anos é considerado “incapaz”. Em outras palavras, o Estado entende que
ele não tem condições de fazer as próprias escolhas nem de assumir as
consequências de seus atos. É esse o conceito que tem praticamente
assegurado a impunidade a adolescentes criminosos que cometem atos
bárbaros e que estimula o crime organizado a recrutar cada vez mais
crianças para suas fileiras. Mas será que um jovem de 16 anos em 2013
tem o mesmo amadurecimento e acesso à informação que tinha um
adolescente da mesma idade em 1940? Será que o rapaz de 17 anos, 11
meses e 27 dias que covardemente atirou na cabeça do universitário
Victor Hugo Deppman, de 19 anos, depois de lhe roubar o celular, não
sabia das consequências de seus atos?
Victor foi morto por um criminoso que já tinha passagem pela Fundação
Casa, onde havia cumprido apenas 45 dias por outro roubo. Estava na
rua, armado, porque não pode receber uma pena maior. Situações como essa
vêm se repetindo em todo o País e a sociedade clama por mudanças.
Pesquisa realizada pelo Instituto DataFolha mostra que 93% dos
brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal para 16 anos.
Querem que o adolescente capaz de cometer atos hediondos seja tratado
como adulto. “Precisamos responder com urgência ao desespero da
sociedade brasileira”, diz o presidente da Câmara dos Deputados,
Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). Na terça-feira 23, a Câmara criou uma
comissão especial para enfrentar um tabu: propor alterações no Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), um conjunto de normas aprovadas em
1990 para proteger a infância, elogiado internacionalmente como uma das
legislações mais modernas do mundo. O objetivo dos deputados é endurecer
as punições aplicadas aos menores infratores. No caso de reincidência e
crimes hediondos, como homicídio e estupro, o prazo máximo de
internação saltaria dos atuais três anos para oito (leia quadro abaixo).
O problema é que desde 2000 já foram criados 12 projetos de lei para
alterar o estatuto, mas nada sai do papel. Enquanto isso, a situação só
se agrava. Nos últimos dez anos, o número de jovens infratores aumentou
138%. Se em 1990 o ECA era exemplo, hoje está desatualizado. Apenas para
contextualizar, no início dos anos 1990 o crack não existia em boa
parte do País. “Passou da hora de fazermos reformulações”, afirma o
deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), que vai comandar a comissão da
Câmara. Ele defende o aumento do tempo de permanência na Fundação Casa,
onde ficam os menores detidos, de três para oito anos nos casos
hediondos. Assim, o infrator poderia ficar preso até os 26 anos – e não
mais até os 21. A partir dos 18 anos, ele seria encaminhado para uma
área específica, isolada dos menores. No Senado, uma emenda
constitucional de Aloysio Nunes (PSDB-SP) propõe reduzir a maioridade
penal de 18 para 16 anos. A aplicação da medida seria restrita aos
crimes hediondos, não às infrações médias ou leves (furtos e roubo
simples). Se medidas como essa estivessem em vigor, o universitário
Victor não teria cruzado com o jovem criminoso que o matou na porta de
casa.
Ainda segundo a proposta apreciada pelos deputados, quando for
diagnosticada doença mental, o juiz poderia indicar tratamento
ambulatorial ou internação compulsória por prazo indeterminado, com
reavaliações a cada seis meses. A medida tornaria legal, por exemplo, a
situação de Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha. Ele vive em um
limbo jurídico desde 2003, quando liderou o grupo responsável por
assassinar o casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, em São Paulo – a
adolescente Liana também foi vítima de estupro coletivo, num crime que
horrorizou o País. Na época, Champinha tinha 16 anos, a mesma idade da
estudante que matou. Há dez anos, o criminoso está internado na Unidade
Experimental de Saúde, alvo de uma investigação do Ministério Público
Federal por oferecer tratamento “medieval” aos detentos. O equipamento
do governo estadual teria o objetivo de tratar jovens de alta
periculosidade com graves patologias, mas não chega nem perto disso.
Esse é um problema a ser enfrentado. Especialistas em educação asseguram
que não adianta reduzir a maioridade penal nem aumentar as penas se o
Estado não for capaz de oferecer condições para que os jovens tenham um
futuro digno. “Se um jovem falhou, a sociedade, a família e a escola
devem ter falhado também”, diz Cosete Ramos, doutora em educação pela
Flórida State University.
Organizações de defesa dos direitos humanos e organismos internacionais
de atenção às crianças entendem que a diminuição da idade penal não
resolve o problema da violência juvenil. Argumentam que os adolescentes
ainda não estão completamente formados e que as mudanças devem ocorrer
nas razões sociais que levam ao crime. “Reduzir a maioridade penal não
resolve. Ou agimos nas causas da violência ou daqui a pouco veremos o
tráfico estar recrutando crianças com 14, 12 ou 10 anos”, diz Gilberto
Carvalho, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da
República. O promotor Thales Cezar de Oliveira, da Vara da Infância e
Juventude de São Paulo, discorda. Segundo ele, os jovens de 16 anos têm
total consciência dos delitos que cometem. “Eles sabem que nada vai
acontecer se matarem e roubarem, a ficha estará limpa aos 18 anos,
quando saírem da Fundação Casa”, diz Oliveira. O promotor acrescenta
que, quando pegos, a primeira coisa dita pelos infratores à polícia é:
‘sou de menor’. “É inadmissível a quantidade de pessoas honestas e
famílias inteiras sendo destruídas, enquanto apenas discutimos a redução
da maioridade penal.”
O mesmo Estado que patina ao definir uma nova legislação capaz de
punir menores que cometam crimes hediondos vem, ao longo dos anos,
assegurando novos direitos aos jovens de 16 anos. A Justiça Eleitoral,
por exemplo, permite a obtenção do título de eleitor e a participação
nas urnas já nessa idade. Ou seja, o Estado entende que o jovem de 16
anos é capaz de formar consciência política e votar para presidente. No
Brasil, eles também podem trabalhar com carteira registrada e, com
autorização dos pais, casar e ser emancipados. Internacionalmente não há
um consenso jurídico ou científico que determine em qual idade uma
pessoa deixa de ser criança e está apta a responder como um ser maduro.
Na Inglaterra é possível prender um infrator de dez anos. Nos Estados
Unidos, é permitido tirar licença de motorista aos 16, mas fica proibido
de consumir bebidas alcoólicas antes dos 21.
Com tantas incertezas, cabe à neurociência dar algumas pistas sobre
comportamentos característicos dessa faixa etária, como a impulsividade.
Diversas pesquisas apontam que o cérebro demora até os 25 anos para se
formar por completo. O córtex pré-frontal é a última parte desse
processo, mas responde por toda a nossa cognição: tomada de decisão,
capacidade de avaliar riscos, planejamento de estratégias, etc. Só ao
longo do desenvolvimento biológico ele aprende até onde é possível
empurrar limites e ignorar regras. Por isso, um adolescente tende a
fazer escolhas baseado mais na intensidade das emoções do que em
análises racionais.
“Eles são mais reativos, levam menos em conta as consequências de seus
atos”, afirma o neurocientista André Frazão Helene, do Laboratório de
Ciências da Cognição da Universidade de São Paulo (USP). “Mas, aos 16
anos, o cérebro já sabe diferenciar o certo do errado, tanto no sentido
do que é moral quanto legalmente aceito.” O amadurecimento biológico,
porém, varia de pessoa para pessoa – assim como algumas meninas
menstruam aos 10 e outras, aos 15. O córtex pré-frontal também está
ligado às relações interpessoais, à capacidade de se colocar no lugar do
outro. Seja para compreender uma opinião divergente seja para se
identificar com a dor alheia. Para a psicóloga Maria Alice Fontes,
especialista em neuropsicologia, o desenvolvimento cerebral explica
certas atitudes da puberdade, mas não justifica todas elas. “Não dá para
usar o cérebro como desculpa para dizer que o jovem nesta idade não tem
nenhum discernimento e, portanto, não pode assumir as responsabilidades
pelo que faz”, afirma.
Discussão
Deputado Carlos Sampaio, relator da comissão na
Câmara que estuda reformulações no ECA: menores
presos por mais tempo nos casos de crimes hediondos
Além do fator biológico, há a influência do ambiente e do contexto em
que o ser humano cresce. Primeiro, vale lembrar que muitas
transformações históricas e culturais separam os adolescentes de hoje
dos da década de 1940, época em que a maioridade foi instituída no País.
Mesmo nas metrópoles, um rapaz de 16 anos se divertia descendo ladeiras
de rolimã, enquanto hoje quer ostentar o smartphone da moda. O acesso
às drogas ou às informações em larga escala também era reduzido. Em
segundo lugar, não há como ignorar as condições socioeconômicas e a
estrutura familiar de um adolescente que comete um crime. Se o cérebro é
fisiologicamente imaturo, o ambiente deveria oferecer o suporte
necessário para o desenvolvimento ideal. Quanto se pode esperar de um
jovem carente, desprovido de boa educação, com referências de violência
doméstica, cercado pelo tráfico? “O debate sobre essa questão esquece,
muitas vezes, que o contexto é determinante no comportamento”, diz
Martha de Toledo Machado, professora de direito da criança e do
adolescente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Mesmo com tantas ressalvas, jovens de 16 anos estão conquistando
agora um novo e polêmico direito. Nos próximos dias, o Ministério da
Saúde deve publicar uma portaria que autoriza o tratamento gratuito para
mudança de sexo a partir dos 16 anos. O órgão considera que, nessa
fase, um garoto já se reconhece como garota (ou vice-versa) e sofre com o
transtorno de identidade de gênero. Embora não possa ser operado antes
dos 18, o paciente receberá do Estado acompanhamento psicológico e
hormonal para iniciar as transformações estéticas. Ou seja, é tido como
suficientemente maduro para tomar uma decisão com implicações, muitas
vezes, irreversíveis. Até agora, jovens nessa situação viviam numa
espécie de submundo no que diz respeito ao sistema público de saúde.
Mesmo depois de passar por uma extensa triagem, avaliação médica e
receber o diagnóstico do transtorno, não podiam receber acompanhamento
psicológico e tratamento hormonal gratuito por meio do SUS. Atravessavam
o turbulento período da adolescência em sofrimento porque a aparência
não condizia com a sua identidade sexual. Aflitos, muitos deles
recorriam ao mercado negro da internet para adquirir hormônios sem
prescrição. “O perigo é que eles acabam dando um jeito de se sentir
melhores, se sujeitando a efeitos colaterais e arriscando a saúde”,
afirma o psiquiatra Alexandre Sadeeh, da clínica de Transtorno de
Identidade de Gênero e Orientação Sexual da USP.
Foi o que fez Alexander Brasil, 16 anos. Ele nasceu mulher e, aos 4
anos, já chorava quando lhe botavam vestidos ou insistiam que
frequentasse as aulas de balé. Por conta própria, começou a tomar
testosterona há um ano: os pelos cresceram, a voz engrossou. “Agora me
sinto muito mais feliz e confortável com meu corpo”, diz Alexandre. Com
as mudanças físicas, trocou de colégio para livrar-se de vez do bullying
que quase o fez reprovar de ano no ensino médio. A situação irá
melhorar para Alexander e outros garotos em situação parecida com a dele
com o tratamento hormonal gratuito para pessoas acima dos 16 anos –
essa é uma das etapas a caminho da cirurgia de mudança de sexo, que só
pode ser realizada a partir dos 18. A medida reafirma o poder de decisão
desses jovens e mostra que o Estado é, sim, capaz de tratar o
adolescente de hoje em dia como adulto. Exatamente o que está faltando
no âmbito penal.
Fotos: divulgação; João Castellano/istoé
Fontes: Estatuto da Criança e Adolescente, Código Civil, Departamento de
Justiça, Legislação Federal sobre Tabaco, Tribunal Superior Eleitoral,
Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e Sociedade Brasileira de
Estudos em Sexualidade Humana (SBRASH)
Fotos: Adriano Machado; GUILHERME PUPO