Um dos elementos mais constrangedores da crise política-institucional é a partidarização do Judiciário
por Roberto Amaral —na Carta Capital - publicado 16/09/2016
Tânia Rêgo/ Agência Brasil
Grupo de juristas protocolaram no Senado Federal um pedido de impeachment contra o ministro Gilmar Mendes, acusado de conduta partidária no exercício do cargo. |
Um dos elementos mais constrangedores da
grave crise político-institucional de nossos dias, que ameaça engolfar
de vez os fundamentos da democracia representativa, é a partidarização
em curso do Poder Judiciário,
instituição já de si pouco republicana e que, não obstante, pretende
pairar acima dos demais poderes, exatamente ele, o único que não deriva
da soberania popular.
Protegidos seus membros por uma
vitaliciedade injustificável, foge o Judiciário como um todo e o Supremo
Tribunal Federal em particular, de qualquer transparência,
blindando-se, anacrônico Olimpo, em uma irresponsabilidade monárquica e
em um corporativismo auto-protetor que estimula comportamentos não
condizentes com o exercício da magistratura.
Essa partidarização do Poder Judiciário é
tanto mais assustadora quando se soma à presente partidarização do
Ministério Público, de que são exemplo as peripécias dos procuradores
que atuam na denominada operação Lava Jato.
A quem cabe chamar ‘as partes’ ao bom-senso?
A quem cabe chamar ‘as partes’ ao bom-senso?
A Corte Suprema pode ser avaliada pelo
que fazem e deixam de fazer seus membros, julgando e deixando de julgar,
silenciando e falando. Última instância à qual pode recorrer o cidadão,
a judicatura suprema, exige, por isso mesmo, de seus pares,
imparcialidade, integridade, prudência e decoro.
O Código de Ética da Magistratura
condena a incontinência verbal, o prejulgamento e a revelação de
inclinação ou voto futuro em causa sujeita a julgamento, e veda a um só
tempo a filiação partidária e a expressão de preferências políticas.
A Constituição Federal (Art.95,
parágrafo único, III) refere-se a “atividade político-partidária” para
estabelecer seu crivo à hipótese mais larga de filiação política que é a
filiação programática, a associação de interesses político-eleitorais e
finalmente, a judicatura comprometida, de que é/tem sido contundente
exemplo o comportamento do ministro Gilmar Mendes.
Conhecido pela imprensa como “aquele que
não disfarça”, o ministro, atua, tanto no STF quanto no TSE, como em
suas entrevistas, em suas palestras, em suas aulas, em seu Instituto,
como líder de uma facção partidária, agredindo os princípios
constitucionais da impessoalidade e da imparcialidade, além de desafiar
permanente e deliberadamente os limites comportamentais estabelecidos
pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
No exercício do cargo de ministro do
STF, Gilmar Mendes eiva de parcialidade um Tribunal que por definição
constitucional deve perseguir a isenção e que chega mesmo a reivindicar o
papel de ‘poder moderador’ da República.
Na presidência do TSE é ameaça à lisura da Justiça. Ameaça antecipada por Dalmo de Abreu Dallari no artigo Degradação do Judiciário, publicado na Folha de S.Paulo em 8 de maio de 2002.
Escrevia o antigo professor da Faculdade
de Direito da USP: “Se essa indicação [a de Gilmar Mendes para o STF]
vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão
correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à
corrupção e a própria normalidade constitucional”.
Como se vê, Dallari não estava exagerando.
Pode um ministro do STF antecipar seu
voto mediante declarações à imprensa sobre questão sob julgamento do
STF, agredindo o art. 36 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, que
proíbe o magistrado “manifestar, por qualquer meio de comunicação,
opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou
juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos
judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no
exercício do magistério”?
Pode um juiz agredir o Código de Ética
da Magistratura que exige (art. 1º) de seus membros conduta norteada
“pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e
capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da
prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da
dignidade, da honra e do decoro”?
Pode o ministro Gilmar falar sobre
questões sob julgamento e votar como líder do antipetismo e como líder,
no STF, da oposição ao governo da presidente Dilma Rousseff?
Gilmar Mendes permitiu-se buscar os holofotes no episódio da indicação de Lula para o ministério de
Dilma, por ele acusada de estratagema que visava a inviabilizar
eventual julgamento do ex-presidente. Foi pródigo em diatribes, que a
imprensa registrou.
Não obstante, nomeado relator de
discutível mandado de segurança interposto pelo PSDB e seu satélite PPS
contra a posse de Lula na Casa Civil, não se sentiu impedido, não teve o
pejo de conceder liminar sustando a nomeação -- ajuizada, aliás, por
advogado que atua em escritório integrado por sua cônjuge.
Foi-se o tempo em que o juiz só falava nos autos.
Em artigo publicado na imprensa
("Judicatura e dever de recato", Folha de S.Paulo, em 13 de setembro de
2015), Ricardo Lewandowski, então presidente do STF, escrevia:
“A circunspecção e discrição sempre
foram consideradas qualidades intrínsecas dos bons magistrados, ao passo
que a loquacidade e o exibicionismo eram – e continuam sendo – vistas
com desconfiança, quando não objeto de franca repulsa por parte de
colegas, advogados, membros do Ministério Público e jurisdicionados”.
Foi-se o tempo em que os ministros,
essencialmente recatados, só recebiam as partes em seus gabinetes.
Evandro Lins e Silva estranhava a promiscuidade de juízes, partes e
advogados nos bares e restaurantes de Brasília, onde se trava e muitas
vezes se decide a campanha eleitoral dos candidatos aos tribunais
superiores.
É ‘o protagonismo extramuros’, que
Mendes também desenvolve em palestras para empresários, agenciadas por
instituto de que é dono, e participando de convescotes reunindo
políticos com interesses notórios no STF e no TSE.
Senão, vejamos. Após almoço com líderes
do PSDB, o ministro Gilmar Mendes pede abertura de processo visando à
cassação do registro do Partido dos Trabalhadores.
Apesar de o Regimento do STF precisar em 30 dias o prazo para devolução dos autos sob pedido de vista, Mendes sentou-se por longos 18 meses sobre o processo que julgava a ADI interposta pelo Conselho Federal da OAB para declarar inconstitucional o financiamento privado das eleições.
Apesar de o Regimento do STF precisar em 30 dias o prazo para devolução dos autos sob pedido de vista, Mendes sentou-se por longos 18 meses sobre o processo que julgava a ADI interposta pelo Conselho Federal da OAB para declarar inconstitucional o financiamento privado das eleições.
Em seu voto de longas e cansativas cinco
horas, o ministro anuncia que estava tentando impedir o que qualificou
de "manobra" do PT mancomunado com a OAB!
Recentemente, permitiu-se declarar, em mais um arroubo de sua conhecida incontinência verbal, que considera a chamada ‘Lei da Ficha Limpa’,
originária de iniciativa popular, obra de bêbados, e criticar a lei
eleitoral que, como presidente do TSE tem a obrigação funcional de fazer
respeitada.
Justamente preocupada com tanto atentado
à ordem jurídica, a Folha cobrou mais responsabilidade do STF. Após
registrar sinais de comprometimento de Gilmar Mendes com os interesses
do presidente do PSDB e ex-candidato Aécio Neves, aconselha os ministros
a evitar “atitudes que destoem das práticas do Judiciário” (editorial
"Seguir a cartilha", de 30 de maio de 2015).
O jornal não esconde seu alvo: “Isso
vale especialmente para o ministro Gilmar, que agora acumula a
presidência do Tribunal Superior Eleitoral com a da segunda turma do
Supremo, responsável por julgar os processos da Lava Jato”.
O ministro com nada disso se importa, e por nada disso se emenda.
Atentos a tantos descaminhos um grupo de
juristas brasileiros – Celso Antônio Bandeira de Melo, Fábio Konder
Comparato, Álvaro Ribeiro da Costa, Sérgio Sérvulo da Cunha, Eny Moreira
e este escriba -- ingressaram na presidência do Senado Federal com
pedido de impeachment do ministro Gilmar Ferreira Mendes, nos termos do
Art. 52, inciso II, da Constituição Federal, e da lei nº 1079/1950.
Acusamos formalmente o ministro de
comportamento partidário, pois no exercício de suas funções judicantes
tem-se mostrado extremamente leniente com relação a casos do interesse
do PSDB e de seus filiados, tanto quanto rigoroso (mas desprimoroso em
seu linguajar pouco canônico) no julgamento de casos de interesse do
Partido dos Trabalhadores e de seus filiados, nomeadamente os
ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, não
escondendo, pois se considera acima das leis, sua simpatia por aqueles e
sua ojeriza por estes.
São nossas testemunhas o escritor
Fernando Morais, a historiadora Isabel Lustosa, o jornalista e escritor
José Carlos de Assis, o ex-deputado Aldo Arantes, o historiador e
professor Lincoln Pena. O dr. Marcelo Lavenère, ex-presidente do
Conselho Federal da OAB, é o advogado que acompanhará o processo no
Senado Federal.
O recebimento da denúncia depende de
decisão pessoal do presidente do Senado, senador Renan Calheiros,
ameaçado, como outros senadores, por diversos processos correndo no STF.
Se o presidente do Senado sentir-se
constrangido em face da decisão que haverá de adotar, como não se
sentirão os magistrados brasileiros e seus jurisdicionados de um modo
geral? A ação, pois, não é contra um ministro determinado, mas em defesa
da magistratura e do direito brasileiro, ora achincalhado.
Teatro burlesco
Teatro burlesco
A imprensa foi chamada nesta última
quarta-feira 14 para entrevista coletiva mediante a qual seria
anunciada, como o foi, a de há muito prometida denúncia contra o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois, ao fim e ao cabo é esse o
desideratum de toda a faina policialesca corrente: assassinar
politicamente o ex-presidente Lula.
No centro do histrionismo digno da fase
mais decadente dos teatrinhos da velha Lapa, no Rio de Janeiro,
sobressaíram as dificuldades cênicas do procurador Deltan Dallangnol,
tentando suprir a ausência de elementos com uma retórica canhestra e uma
adjetivação de bar de esquina, que está a cobrar uma palavra de seu
chefe, o Procurador Rodrigo Janot.
Faltaram aos procuradores as provas que o
direito pede, e sobraram as convicções que um certo fundamentalismo
estimula. Mas acusar sem provas é mais do que irresponsabilidade, pois
se transforma em crime de difamação. Similar à pantomina da República de
Curitiba, vem à lembrança aquela outra do esquecido coronel Job Lorena
de Sant’Anna, apresentando o resultado do IPM sobre o ‘atentado do
Riocentro’, quando um sargento morreu no exato momento em que auxiliava
um oficial do exército (na chefia da operação) na montagem de uma ação
terrorista felizmente fracassada.
O coronel, valendo-se também de
projeções e muitos desenhos e muita inventividade e adjetivos a granel,
anunciou em entrevista para a qual também foi chamada a grande mídia,
que lhe deu os espaços requeridos, que os responsáveis pelo atentado
frustrado e pela morte do militar ‘eram os comunistas’, milhares de
jovens que no interior do Riocentro – um gigantesco Centro de Convenções
na Barra da Tijuca, RJ, se preparavam para ouvir Chico Buarque de
Holanda. Jovens que seriam assassinados se a bomba não tivesse explodido
no colo do sargento auxiliar do capitão terrorista.
O que estamos a ver, e viver, porém, não
passa de mais um capítulo na sucessão de episódios lamentáveis que
caracterizam, após o golpe continuado, a gradual implantação da
‘ditadura constitucional’. A tentativa de eliminação de Lula é apenas
mais um episódio, violento, mas apenas mais um numa sucessões de
agressões planejadas. Outras virão.
***
Roberto Amaral