Manifestantes de movimentos sociais
voltam às ruas das grandes capitais e são reprimidos com uma truculência
injustificável e desproporcional, que não é vista desde os tempos da
ditadura
por Paulo Moreira Leite
PRAÇA DE GUERRA
Na quinta-feira 13, PM cerca manifestantes na rua da Consolação, em São Paulo,
que protestavam pacificamente e usa balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo
Num país onde é frequente ouvir-se a queixa de que a sociedade sofre
de profunda apatia, mostrando-se incapaz de mobilizar-se para defender
seus interesses e encarar seus problemas de frente, a mobilização
social de uma massa de estudantes e jovens trabalhadores de São Paulo
deveria ser saudada como um exemplo de cidadania. Após quatro dias de
protestos, contudo, surgiu em São Paulo uma situação hostil, assustadora
e perigosa. Incapaz de atuar de forma preventiva, controlando as
manifestações com métodos civilizados e fazendo uso consciente e
responsável da força quando necessário, na última quinta-feira 13 a
Polícia Militar de São Paulo retornou aos piores momentos de seu
passado, quanto reprimia a população sob o regime militar para acuar e
atacar militantes. Em meio à pancadaria, ocorreram 325 prisões e 105
pessoas ficaram feridas. Manifestantes foram alvejados com balas de
borracha, bombas de gás e perseguidos pelas ruas da região central até
tarde da noite. Atacados seletivamente, vários jornalistas acabaram
feridos. Um deles, atingido no olho por um projétil emborrachado, corre o
risco de perder a vista.
O retorno da Polícia Militar a sua face mais violenta ocorreu num
dia que até prometia uma jornada de calmaria. Num esforço para evitar a
confusão da quarta-feira 12, quando 97 ônibus foram depredados, dezenas
de vitrines foram quebradas e até um policial correu o risco de ser
linchado, numa sucessão de atos condenáveis promovidos por baderneiros
mascarados, infiltrados entre os manifestantes, autoridades e
ativistas fizeram um acordo para realizar uma passeata em percurso
autorizado. Já no início da tarde, no entanto, se viu que nem todas as
partes pretendiam cumprir o combinado.
PARIS, 1968 Havia confrontos e o desejo de mudar o mundo
SÃO PAULO, 11/06/2013, baderneiros se aproveitam
de movimento para depredar patrimônio público e privado
SEM COMANDO
Policial lança gás de pimenta contra cinegrafista no centro de SP
Numa concentração marcada para o Teatro Municipal, que pretendia
arregimentar quem estava interessado em participar do protesto
autorizado, a polícia dava uma demonstração de desenvoltura excessiva ao
realizar 40 prisões “para averiguações”, eufemismo clássico para atos
abusivos .“Quando fui perguntar por que dois conhecidos estavam sendo
detidos, me advertiram: ‘Não faz muitas perguntas se não levamos você
também,” conta o professor Lucas Oliveira, 28 anos, um dos porta-vozes
do Movimento Passe Livre, entidade que cumpre, na luta por melhorias no
transporte público, um papel semelhante ao que o MST assumiu na luta
pela reforma agrária. Horas mais tarde, perseguido pela tropa de choque
quando liderava uma passeata em outro ponto da cidade, Lucas Oliveira
teve a canela ferida por uma bomba, sendo levado a um pronto-socorro.
Falta ação da polícia para reprimir o crime, mas sobra
força para repreender a população de forma arbitrária
Apesar destes percalços, o acordo parecia de pé. Tanto que a passeata
autorizada realizou-se sem maiores atropelos, na área demarcada. Mais
tarde, quando a caminhada atingia a rua da Consolação, ocorreu um
episódio que faz parte do figurino de todo ato de protesto que se preze.
Depois de cumprir o combinado, tentou-se ir mais além. Não é uma
demonstração de cavalheirismo, nem de amor a palavra empenhada, mas faz
parte do jogo tanto por parte de quem organiza protestos como de quem
presta serviços policiais. A faísca acendeu ali. A PM poderia ter
assumido duas atitudes razoáveis. Manter a avenida bloqueada, impedindo
que a marcha seguisse em frente, nem que fosse preciso pedir reforços.
Ou poderia, num ato de insólita cortesia, abrir passagem para os
manifestantes. Não se fez uma coisa nem outra. Quando lideranças do
movimento tentavam negociar uma nova autorização, soldados da Tropa de
Choque começaram os disparar tiros com balas de borracha. Bombas e até
granadas foram atiradas sobre os manifestantes, que se dispersaram em
correria pela rua mais célebre da boemia de São Paulo, a Augusta, onde
foram atacados mais uma vez. Num esforço repetido de concentração e
dispersão, sempre com policiais em seu encalço, a passeata seguiu em
grupos menores, até tarde da noite. Ainda em atividade, a polícia
importunou casais de namorados em bares da avenida Paulista. Passageiros
de um ônibus foram atingidos por uma bomba de gás. Motoristas
abandonaram os carros nas ruas, assustados. Num reflexo típico de tempos
autoritários, a PM investiu com dureza seletiva sobre jornalistas
presentes. A fotógrafa Giuliana Vallone, da Folha de S. Paulo, tomou um
tiro de bala de borracha no olho. Outro fotógrafo também foi alvejado
com maior periculosidade e na sexta-feira 14 corria o risco de perder
uma vista.
...Enquanto isso, em Paris
Em meio à crise nas ruas, o prefeito paulistano Fernando Haddad, o vice-presidente
Michel Temer e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin,
encontravam-se em Paris na terça-feira 11 em solenidade
Com tamanha brutalidade, a atuação da Polícia Militar ameaça dar um
novo caráter à luta contra o reajuste da passagem. Mobilização realizada
em nome de uma reivindicação social legitima, que deve ser discutida de
forma civilizada e a partir de argumentos racionais, a repressão coloca
em pauta o direito de cada cidadão pela liberdade de defender seus
interesses. Conflitos políticos que fogem dos padrões da boa educação
confundem o raciocínio e costumam ser avaliados mais pela coreografia do
que pela substância. A passagem de ônibus teve um reajuste de 6,7%
contra uma inflação de 15% desde o último aumento, de janeiro de 2011. O
reajuste pode parecer razoável no visor de uma calculadora, mas está
longe de ser uma questão simples.
Num cálculo do DIEESE, realizado em Porto Alegre, mas que tem
semelhança com o que aconteceu no país inteiro, as passagens subiram
670% de 1994 para cá – contra uma inflação de 281%. Nesse ritmo, um
cidadão paulistano que anda de ônibus duas vezes por dia e paga a
passagem com dinheiro do próprio bolso deixa, na catraca, o equivalente a
três meses de salário mínimo por ano. É uma boa quantia, mesmo quando
se recorda benefícios recentes como o bilhete único e o vale transporte,
que transfere grande parte do custo das passagens de funcionários de
baixos salários, com registro em carteira, para a empresa. O
encarecimento dos transportes tem levado um número cada vez maior de
pessoas a andar a pé pelas grandes cidades. Falta-lhes dinheiro até para
embarcar numa sardinha em lata nas horas de pico.
CAVALARIA INCONSEQUENTE
Na rua da Consolação, em São Paulo, polícia montada parte pra cima de manifestantes na quinta 13.
Desta vez, não havia os tumultos provocados por minorias no dia anterior (abaixo)
Embora os aumentos de passagem sejam alvo de descontentamento desde
que os primeiros ônibus passaram a circular no país, ainda no século
passado, não é uma surpresa que há pelo menos uma década os movimentos
contra os reajustes tenham-se tornado um costume nacional, com altos e
baixos em cada lugar. Em 2003, Salvador ficou paralisada por dez dias
até que a prefeitura cedesse 9 das 10 reivindicações apresentadas pelos
líderes do movimento. Em Florianópolis, os protestos conseguiram revogar
dois aumentos, em 2004 e 2005. Em Vitória, isso já aconteceu uma vez.
Mirando-se no exemplo paulistano, que preferem ver longe de seus
domínios, outros prefeitos resolveram agir antes que fosse tarde. Em
Curitiba, o preço da passagem foi reduzido em dez centavos. Em Goiânia,
depois de subir para R$ 3,00 ela retornou para R$ 2,70. Em Manaus, houve
um aumento de R$ 2,75 para R$ 3,00, mas o preço agora é R$ 2,90. Em
Cabo Frio(RJ), a população vale-se do subsídio da prefeitura e paga
apenas R$ 0,50 pela passagem dentro do perímetro do município.
O cidadão que anda de ônibus duas vezes ao dia deixa na
catraca três salários mínimos por ano. há razões para protestar
Nos últimos anos, a sucessão de protestos levou ao surgimento, em
vários pontos do país, do Movimento Passe Livre, uma federação de
estudantes – muitos já se formaram desde então – com ideias esquerdistas
de várias famílias, e uma prática de quem rejeita toda submissão a
partidos políticos. Em São Paulo, o MPL tem raízes entre universitários
da USP e estudantes de estabelecimentos frequentados por uma elite
cultural de esquerda, como Escola da Vila, Vera Cruz, Oswald e o
Colégio Equipe, mas é o centro nervoso de uma articulação maior e mais
popular, com conexão com sindicatos e entidades da periferia. Seus
encontros reúnem militantes selecionados, funcionando de acordo com
princípios de horizontalidade. Não há hierarquia formalizada. Todos têm
direito a usar a palavra pelo tempo desejado por cada um – e por essa
razão alguns debates podem prolongar-se por até 12 horas. As
deliberações não são obtidas pelo voto, mas por um esforço permanente
para se obter consenso. Praticantes de uma escola política que tem suas
origens em movimentos radicais do século XIX, eles cultivam uma utopia
urbana radical. Condenam o que chamam de “ mercantilização” do
transporte público e defendem a cobrança de tarifa zero – isto é, o
transporte gratuito. Este sistema que costuma funcionar em cidades
menores, em especial na Europa e em alguns estados norte-americanos,
também foi implantado em três cidades brasileiras. São localidades
pequenas, como Agudos, em São Paulo, Porto Real, no Rio, e Ivaiporã, no
Paraná. A população de todas elas, somadas, não chega a 100 000
habitantes. Quando era prefeita de São Paulo, Luiza Erudina chegou a
elaborar uma proposta de tarifa zero, mas não levou o projeto adiante.
Em público ou em conversas reservadas, os militantes do MPL condenam
atos de vandalismo como uma espécie de contra senso, pois prejudicam
aquilo que gostariam de preservar – que são estações de metrô, pontos de
ônibus e o espaço público em geral. “A gente não apoia nenhum tipo de
depredação, seja de ônibus ou de estação de metrô”, diz o universitário
Caio Martins Ferreira. “Tentamos conter, mas é difícil. A gente não é
dono de ninguém para dizer quem deve fazer o que,” diz.
Os episódios de vandalismo que acompanham os protestos envolvem
pessoas de outra origem, que trafegam um universo no qual a violência é
um culto permanente, embora possa ser empregada de formas variadas. Ora
pode ser um caminho para um acerto de contas entre turmas rivais, ora
pode até apresentar um conteúdo político. São os chamados anarco-punks,
um tipo de ativismo nascido nos bairros operários que enfrentavam as
medidas de austeridade de Margareth Tatcher nos anos 1980, e que se
tornou moda no Brasil uma década depois. Em dias normais, o esporte
predileto dos anarco-punks é trocar pauladas com os skin-heads, inimigos
irredutíveis e violentos. Em dias de mobilização política, como
aconteceu em São Paulo por esses dias, comandam o quebra-quebra.
Com outros nomes e rostos, mas um ideário parecido, eles já
apareceram em outros lugares. Na quinta-feira, eles surgiram entre as
mobilizações em Porto Alegre. Picharam 21 lojas, depredaram seis
agências bancárias, reviraram 40 containers de lixo. Em situação
semelhante, 2 mil pessoas organizaram um protesto no Rio, no mesmo dia. O
início foi pacífico, mas, no final, ocorreram cenas de baderna e
confronto. Há dois anos, anarco-punks fizeram sua aparição à frente de
uma sequência de atos selvagens em Teresina, no Piauí. Escondiam o rosto
com capuz e se apresentavam como militantes de um certo “Movimento
Anti-Capitalista”. A exemplo do que ocorreu em São Paulo, não surgiram
nos primeiros dias das mobilizações, mas naquela etapa em que o
movimento já tinha força própria. Já chegaram quebrando bancos e
vitrines de loja, incendiando ônibus. “Consegui marcar uma conversa a
sós com um deles,” conta o senador Wellington Dias, ex-governador e
principal liderança política do Estado “Queria entender o que
pretendiam. É outro mundo. Eles eram contra o sistema. Queriam quebrar
tudo. São adversários de toda autoridade, desprezam as leis. O simples
fato de encontrar-se com um político, como eu, já era perigoso e
condenável.”
RIO DE JANEIRO
Na capital carioca, ato na Candelária que começou pacífico, terminou
com violência e depredação de prédios e monumentos históricos.
Protestos no centro da cidade foram liderados por militantes do PSTU
PORTO ALEGRE
Na capital gaúcha, dezenas de manifestantes se concentraram em frente
do prédio da prefeitura, que tinha a entrada isolada por cordas e vigiada
pela Guarda Municipal, durante reivindicação contra o aumento da tarifa
A brecha que abriu espaço para os protestos contra um aumento de 20
centavos nasceu de uma presunção política – a ideia de que o reajuste
poderia ser visto como uma questão administrativa. Fernando Haddad, o
prefeito de São Paulo do PT, e Geraldo Alckmin, o governador tucano,
pretendiam anunciar o aumento em janeiro, mas, em função de um pedido da
presidente Dilma Rousseff, receosa de que a medida pudesse alimentar a
inflação, decidiram adiar o reajuste por seis meses. O tempo permitiu
uma negociação que parecia favorável a todos. O governo federal
desonerou o PIS e o COFINS das empresas de ônibus. Com isso, foi
possível elevar a passagem para R$ 3,20 em vez de para R$ 3,40.
Tudo parecia acertado, mas faltou combinar com o principal
interessado – o passageiro, que teria de colocar a mão no bolso e entrar
com sua cota de sacrifício. Embora o reajuste das passagens seja um
pesadelo histórico na rotina dos prefeitos de grandes cidades, que nem
sempre enfrentam protestos portentosos, mas nunca são capazes de evitar
quedas abruptas em seus índices de aprovação popular depois que o
cidadão comum sente o golpe, o reajuste foi encaminhado como se fosse a
coisa mais natural do mundo. “Eles esqueceram que por trás de uma
decisão técnica sempre há uma questão política,” afirma Lucas Oliveira.
Manifestações chegam a vários pontos do país
e ganham causas diversas, da saúde à educação
No início dos protestos, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad se
encontravam em viagem em Paris, ao lado do vice-presidente Michel Temer.
De lá mesmo informaram que não pretendiam modificar o reajuste. Numa
argumentação que repetiu ao voltar ao Brasil, Alckmin explicou que o
caixa do governo não tinha recursos para subsidiar o preço baixo.
Haddad lembrou que, na campanha eleitoral, assumira o compromisso de
fazer reajustes abaixo da inflação – o que fez, efetivamente. Tanto o
prefeito como governador tem argumentos. Mas as manifestações
expressaram outra realidade, mais exigente e inconformada – e são elas
que aguardam respostas. Mas não as que a PM, com força violenta e
desproporcional, deu.
Fotos: Ian Boechat; Rodrigo
Paiva/RPCI; MASTRANGELO REINO/A2 FOTOGRAFIA; Ig Aronovich/Lost Art;
Renato Luiz Ferreira/Folhapress; FABI0 TEIXEIRA / UOL/FOLHAPRESS;
Tarlis schneider/ acuracia fotojornalismo; FABI0 TEIXEIRA; Felipe
Paiva/Frame; ALICE VERGUEIRO/FUTURA PRESS; Cris Faga / Fox Press Photo