Encontros de jovens que começaram nos
shoppings da periferia de São Paulo se espalharam pelo País e ganharam
tons de protesto por causa da reação desproporcional da polícia e da
Justiça
Raul Montenegro
Confira o vídeo sobre os rolezinhos
No dia 13 de junho do ano passado, a reação
exagerada da Polícia Militar a manifestações que pediam a redução das
tarifas do transporte público em São Paulo serviu de estopim para que
centenas de milhares de pessoas saíssem às ruas em todo o País. A atual
truculência policial na repressão aos rolezinhos – encontros que jovens
funkeiros promovem para se divertir em shoppings e que, algumas vezes,
acabaram em tumulto e assaltos – pode levar a uma repetição desse
cenário. Com a decisão liminar que alguns estabelecimentos conseguiram
na Justiça para barrar esses eventos, multiplicaram-se na internet
convocações para rolezinhos de protesto contrários à segregação e à
discriminação contra os pobres em diversas capitais, entre elas
Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. Essas convocatórias
preocupam as autoridades, que temem que o movimento represente uma
continuação da onda de passeatas de 2013. Na terça-feira 14, a
presidente Dilma Rousseff fez uma reunião de emergência por temer que os
blackblocs ou o crime organizado se apropriem dos rolezinhos para criar
confusão. Em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad disse que quer
dialogar com os organizadores para que os eventos sejam feitos em locais
públicos em vez de shoppings.
TURMA
Jovens como Deivid (à frente, de azul) fizeram fama na internet e
foram precursores dos rolezinhos, como o que aconteceu na praça de
alimentação do Mauá Plaza Shopping, na Grande São Paulo, no dia 4 de janeiro
O caso mais emblemático de violência
aconteceu no sábado 11, no Shopping Itaquera, zona leste de São Paulo,
quando as lentes da imprensa captaram a PM usando cassetetes contra
jovens em uma escada rolante. Apesar de alguns participantes terem sido
presos por suspeita de roubo, a maioria deles afirma que estava no local
apenas para se divertir. Mas esse não foi o primeiro episódio de
confusão. Os rolezinhos começaram a ganhar maior notoriedade em
dezembro, quando frequentadores de centros comerciais, como o próprio
Itaquera e o Internacional de Guarulhos, se assustaram com grupos de
adolescentes correndo, gritando e cantando músicas de funk ostentação, a
trilha sonora da maioria dos encontros. Depois disso, estabelecimentos
conseguiram decisões judiciais proibindo a entrada de menores
desacompanhados.
Apesar de não mirar diretamente nos
funkeiros, as liminares inviabilizaram os rolês e levantaram críticas
sobre a garantia de ir e vir dos jovens. Além disso, carregam enorme
dose de preconceito, pois, na prática, visam a impedir a entrada de
adolescentes da periferia.“É provável que a decisão seja derrubada,
porque, para limitar o direito de alguém, você tem que ter uma
justificativa muito forte”, diz a professora de direito constitucional
Tânia Rangel, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. Para ela,
pode-se aumentar a segurança para evitar ameaças a pessoas e
patrimônios, garantindo os direitos dos shoppings sem ferir garantias da
juventude. Outro problema, segundo a professora, é a dificuldade em
personalizar responsáveis, já que organizadores não têm de responder
pelos atos de quem comparece, e o fato de a Justiça brasileira
beneficiar, em muitos casos, os mais ricos. “Nos rolezinhos veio um
pouco à tona essa questão preconceituosa. A liminar foi vista como uma
decisão que mantém o racismo”, diz ela. O antropólogo Alexandre Barbosa
Pereira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), considera que a
reação foi exagerada e potencializou a repercussão do caso. “A
repressão da polícia e o modo equivocado como os shoppings lidaram com a
questão deram essa visibilidade aos rolês”, afirma. Até a Anistia
Internacional pediu explicações para o que considerou uma discriminação
desnecessária e preconceituosa e os rolezinhos ganharam destaque no
Exterior.
Em meio aos encontros de centenas de jovens com música, diversão
e paquera, vândalos se infiltram para roubar e depredar
Os rolezinhos surgiram juntando
características de bailes funk, que há anos acontecem nos bairros pobres
da cidade, com encontros nos quais adolescentes conhecem ídolos das
redes sociais. Esses “famosinhos” são jovens, também da periferia, que
fazem sucesso com meninas na internet. Deivid Santana e Vinicius
Andrade, de 18 e 17 anos, que juntos contam com 140 mil seguidores no
Facebook, começaram a organizar encontros de fãs porque não conseguiam
atender todas as garotas que pediam para conhecê-los. Quando as ruas do
Capão Redondo, onde moram, ficaram pequenas para receber tantas
admiradoras, mudaram o endereço do evento. “Passamos a chamar de
rolezinho e organizamos no shopping Campo Limpo, onde todo mundo vai”,
diz Deivid. Por que eles são famosos? “É a loucura dos vídeos que a
gente faz. A maioria desses boyzinhos são quietões, caretas. Nós da
favela já nascemos animados”, afirma Vinicius. Nos encontros, os dois
ganham presentes como chocolates, ursos de pelúcia e roupas de marca.
Antes deles, porém, bailes na rua ou em locais fechados chamados de
fluxos ou pancadões de funk já mobilizavam milhares de jovens nos
bairros pobres das capitais. Um deles, hoje chamado também de rolezinho,
acontece quase todo fim de semana no Bairro dos Pimentas, em Guarulhos.
Um dos frequentadores, Daniel, 17 anos, conta que longe das áreas
nobres confusões com a polícia são regra, não exceção. “No último
encontro, como sempre, os vizinhos chamaram a polícia por causa da
música alta.” Ele e outros participantes disseram à ISTOÉ que a PM
chegou ao local atirando bombas e disparando balas de borracha na
multidão, mas a corporação afirmou que não existem registros de
intervenção em que tenha sido necessário o uso desses equipamentos na
região. “Essa tensão que a gente vê nos shoppings já acontecia nos
pancadões. E como a periferia é heterogênea, dentro das próprias classes
populares já existia um conflito com o funk ostentação”, diz o
antropólogo Pereira, da Unifesp.
Apesar de terem semelhanças com fluxos, os
rolezinhos nos shoppings passaram a ser vistos pelos mais novos como
alternativa à confusão dos bailes. “A gente precisa ter mais lugar para
ir. Pancadão tem de segunda a segunda, mas não um local para passar a
tarde e sua mãe ficar de boa”, diz Beatriz, 13 anos. Jefferson Luis,
organizador de um dos primeiros rolês que acabaram com a presença da
polícia, em Guarulhos, também reclama da falta de espaços públicos e
atividades. “Fora o shopping, aqui a única coisa que posso fazer é jogar
bola, empinar pipa e ficar no Facebook. Todo mundo precisa se divertir.
É fácil proibir e criticar o funk. Difícil é instruir e fazer um centro
cultural para ensinar música para os jovens”, afirma. Esses
frequentadores costumam rechaçar correrias que assustam outros clientes.
Jefferson culpa aqueles que “puxam bonde” – correndo e berrando letras
de funk nos corredores – pela confusão que marcou seu evento. “Não
tenho nada a ver com quem foi para fazer baderna”, afirma. Ele foi
detido mesmo sem registro de crimes. Os próprios participantes dos
rolezinhos em São Paulo, porém, reconhecem que, às vezes, arrastões
acontecem. “No Itaquera muita gente roubou. Eles querem tênis de mil
reais. É uma minoria, mas quando quatro ou cinco assaltam outros querem
fazer a mesma coisa e voltar com uma roupa nova pra casa”, diz Augusto
Gondim, 16 anos, organizador de um rolezinho programado no shopping
Tatuapé.
BARRADOS
Cartaz no shopping JK Iguatemi informa que Justiça
proibiu eventos de adolescentes no estabelecimento
Os rolezinhos não são um movimento
organizado no sentido de fazer reivindicações. Os próprios jovens negam
existir motivação política por trás dos encontros. “O objetivo principal
dos rolezinhos é fazer novas amizades, curtir e se divertir. E a gente
também pega bastante menina”, diz Augusto. Apesar disso, estão ganhando
contornos políticos. Eventos que surgem com ares de protesto em todo o
Brasil sugerem que os rolezinhos estão incendiando um debate que já
existia no País. Em convites feitos pelas redes sociais, muitas vezes
por pessoas da classe média, a descrição dos encontros fala que eles são
organizados em apoio aos rolês paulistas e em protesto contra a
discriminação e a segregação. “Sempre tem uma tendência de setores mais
privilegiados para tentar interpretar, mas jovens não querem ser vistos
como heróis, vítimas nem bandidos, eles querem ser protagonistas”,
afirma o antropólogo Pereira.Os protestos convocados para os próximos
dias, porém, podem não crescer como os do ano passado, porque muitos dos
jovens da periferia devem faltar aos eventos por medo da repressão
policial. “É melhor evitar ou fazer encontros com poucas pessoas”,
afirma a adolescente Beatriz.
Jefferson Luis, organizador de um dos primeiros rolês
no shopping de Guarulhos: a polícia foi acionada
As aspirações dessa juventude aparecem nas
letras de funk ostentação que embalam os rolezinhos. As canções – que
falam de dinheiro, carros e mulheres – mostram um desejo de inserção dos
jovens pobres no mercado de consumo. “Não é de hoje que eles estão
usando marcas. Os jovens da classe C são maioria entre os frequentadores
de shoppings. Nos rolezinhos, eles só foram nos estabelecimentos que
estão acostumados a ir”, afirma Renato Meirelles, do Data Popular,
instituto que pesquisa as classes baixas no País. Ele diz ainda que os
produtos que os adolescentes querem ostentar muitas vezes foram
comprados nos próprios locais que eles estão sendo proibidos de
frequentar. “Os shoppings estão muito preocupados com o consumidor do
passado e não estão vendo o do futuro. Eles vão perder muito dinheiro
caso não enxerguem isso”, diz. Os jovens da classe C movimentam R$ 130
bilhões por ano, segundo o Data Popular. Jefferson, que vive numa casa
de um único cômodo com o restante de sua família, diz que todo mundo
quer ter um carro ou uma casa legal, mas que a maioria dos MCs não vive a
ostentação. “É sonho, eles querem ter isso um dia”, diz. Uma de suas
letras é reveladora nesse sentido: “Não é o certo dizer em letras que eu
vivo ostentando/ que ando de Hornet, i30, Camaro branco/ e a minha
favela cada dia piorando [...] Não tô dizendo que eu quero ostentar/ é
que enquanto eu ostento, poucos têm casa pra morar.”