1.18.2014

Rolezinho: violência e preconceito

Encontros de jovens que começaram nos shoppings da periferia de São Paulo se espalharam pelo País e ganharam tons de protesto por causa da reação desproporcional da polícia e da Justiça

Raul Montenegro

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Confira o vídeo sobre os rolezinhos
No dia 13 de junho do ano passado, a reação exagerada da Polícia Militar a manifestações que pediam a redução das tarifas do transporte público em São Paulo serviu de estopim para que centenas de milhares de pessoas saíssem às ruas em todo o País. A atual truculência policial na repressão aos rolezinhos – encontros que  jovens funkeiros promovem para se divertir em shoppings e que, algumas vezes, acabaram em tumulto e assaltos – pode levar a uma repetição desse cenário. Com a decisão liminar que alguns estabelecimentos conseguiram na Justiça para barrar esses eventos, multiplicaram-se na internet convocações para rolezinhos de protesto contrários à segregação e à discriminação contra os pobres em diversas capitais, entre elas Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife. Essas convocatórias preocupam as autoridades, que temem que o movimento represente uma continuação da onda de passeatas de 2013. Na terça-feira 14, a presidente Dilma Rousseff fez uma reunião de emergência por temer que os blackblocs ou o crime organizado se apropriem dos rolezinhos para criar confusão. Em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad disse que quer dialogar com os organizadores para que os eventos sejam feitos em locais públicos em vez de shoppings.
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Jovens como Deivid (à frente, de azul) fizeram fama na internet e
foram precursores dos rolezinhos, como o que aconteceu na praça de
alimentação do Mauá Plaza Shopping, na Grande São Paulo, no dia 4 de janeiro
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 O caso mais emblemático de violência aconteceu no sábado 11, no Shopping Itaquera, zona leste de São Paulo, quando as lentes da imprensa captaram a PM usando cassetetes contra jovens em uma escada rolante. Apesar de alguns participantes terem sido presos por suspeita de roubo, a maioria deles afirma que estava no local apenas para se divertir. Mas esse não foi o primeiro episódio de confusão. Os rolezinhos começaram a ganhar maior notoriedade em dezembro, quando frequentadores de centros comerciais, como o próprio Itaquera e o Internacional de Guarulhos, se assustaram com grupos de adolescentes correndo, gritando e cantando músicas de funk ostentação, a trilha sonora da maioria dos encontros. Depois disso, estabelecimentos conseguiram decisões judiciais proibindo a entrada de menores desacompanhados.
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Apesar de não mirar diretamente nos funkeiros, as liminares inviabilizaram os rolês e levantaram críticas sobre a garantia de ir e vir dos jovens. Além disso, carregam enorme dose de preconceito, pois, na prática, visam a impedir a entrada de adolescentes da periferia.“É provável que a decisão seja derrubada, porque, para limitar o direito de alguém, você tem que ter uma justificativa muito forte”, diz a professora de direito constitucional Tânia Rangel, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. Para ela, pode-se aumentar a segurança para evitar ameaças a pessoas e patrimônios, garantindo os direitos dos shoppings sem ferir garantias da juventude. Outro problema, segundo a professora, é a dificuldade em personalizar responsáveis, já que organizadores não têm de responder pelos atos de quem comparece, e o fato de a Justiça brasileira beneficiar, em muitos casos, os mais ricos. “Nos rolezinhos veio um pouco à tona essa questão preconceituosa. A liminar foi vista como uma decisão que mantém o racismo”, diz ela. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), considera que a reação foi exagerada e potencializou a repercussão do caso. “A repressão da polícia e o modo equivocado como os shoppings lidaram com a questão deram essa visibilidade aos rolês”, afirma. Até a Anistia Internacional pediu explicações para o que considerou uma discriminação desnecessária e preconceituosa e os rolezinhos ganharam destaque no Exterior.
ROLE-03-IE-2304.jpg Em meio aos encontros de centenas de jovens com música, diversão
e paquera, vândalos se infiltram para roubar e depredar
 
Os rolezinhos surgiram juntando características de bailes funk, que há anos acontecem nos bairros pobres da cidade, com encontros nos quais adolescentes conhecem ídolos das redes sociais. Esses “famosinhos” são jovens, também da periferia, que fazem sucesso com meninas na internet. Deivid Santana e Vinicius Andrade, de 18 e 17 anos, que juntos contam com 140 mil seguidores no Facebook, começaram a organizar encontros de fãs porque não conseguiam atender todas as garotas que pediam para conhecê-los. Quando as ruas do Capão Redondo, onde moram, ficaram pequenas para receber tantas admiradoras, mudaram o endereço do evento. “Passamos a chamar de rolezinho e organizamos no shopping Campo Limpo, onde todo mundo vai”, diz Deivid. Por que eles são famosos? “É a loucura dos vídeos que a gente faz. A maioria desses boyzinhos são quietões, caretas. Nós da favela já nascemos animados”, afirma Vinicius. Nos encontros, os dois ganham presentes como chocolates, ursos de pelúcia e roupas de marca. Antes deles, porém, bailes na rua ou em locais fechados chamados de fluxos ou pancadões de funk já mobilizavam milhares de jovens nos bairros pobres das capitais. Um deles, hoje chamado também de rolezinho, acontece quase todo fim de semana no Bairro dos Pimentas, em Guarulhos. Um dos frequentadores, Daniel, 17 anos, conta que longe das áreas nobres confusões com a polícia são regra, não exceção. “No último encontro, como sempre, os vizinhos chamaram a polícia por causa da música alta.” Ele e outros participantes disseram à ISTOÉ que a PM chegou ao local atirando bombas e disparando balas de borracha na multidão, mas a corporação afirmou que não existem registros de intervenção em que tenha sido necessário o uso desses equipamentos na região. “Essa tensão que a gente vê nos ­shoppings já acontecia nos pancadões. E como a periferia é heterogênea, dentro das próprias classes populares já existia um conflito com o funk ostentação”, diz o antropólogo Pereira, da Unifesp.
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Apesar de terem semelhanças com fluxos, os rolezinhos nos shoppings passaram a ser vistos pelos mais novos como alternativa à confusão dos bailes. “A gente precisa ter mais lugar para ir. Pancadão tem de segunda a segunda, mas não um local para passar a tarde e sua mãe ficar de boa”, diz Beatriz, 13 anos. Jefferson Luis, organizador de um dos primeiros rolês que acabaram com a presença da polícia, em Guarulhos, também reclama da falta de espaços públicos e atividades. “Fora o shopping, aqui a única coisa que posso fazer é jogar bola, empinar pipa e ficar no Facebook. Todo mundo precisa se divertir. É fácil proibir e criticar o funk. Difícil é instruir e fazer um centro cultural para ensinar música para os jovens”, afirma. Esses frequentadores costumam rechaçar correrias que assustam outros clientes. Jefferson culpa aqueles que “puxam bonde” – correndo e berrando letras de funk nos corredores – pela confusão que marcou seu evento. “Não tenho nada a ver com quem foi para fazer baderna”, afirma. Ele foi detido mesmo sem registro de crimes. Os próprios participantes dos rolezinhos em São Paulo, porém, reconhecem que, às vezes, arrastões acontecem. “No Itaquera muita gente roubou. Eles querem tênis de mil reais. É uma minoria, mas quando quatro ou cinco assaltam outros querem fazer a mesma coisa e voltar com uma roupa nova pra casa”, diz Augusto Gondim, 16 anos, organizador de um rolezinho programado no shopping Tatuapé.
ROLE-04-IE-2304.jpg BARRADOS
Cartaz no shopping JK Iguatemi informa que Justiça
proibiu eventos de adolescentes no estabelecimento
Os rolezinhos não são um movimento organizado no sentido de fazer reivindicações. Os próprios jovens negam existir motivação política por trás dos encontros. “O objetivo principal dos rolezinhos é fazer novas amizades, curtir e se divertir. E a gente também pega bastante menina”, diz Augusto. Apesar disso, estão ganhando contornos políticos. Eventos que surgem com ares de protesto em todo o Brasil sugerem que os rolezinhos estão incendiando um debate que já existia no País. Em convites feitos pelas redes sociais, muitas vezes por pessoas da classe média, a descrição dos encontros fala que eles são organizados em apoio aos rolês paulistas e em protesto contra a discriminação e a segregação. “Sempre tem uma tendência de setores mais privilegiados para tentar interpretar, mas jovens não querem ser vistos como heróis, vítimas nem bandidos, eles querem ser protagonistas”, afirma o antropólogo Pereira.Os protestos convocados para os próximos dias, porém, podem não crescer como os do ano passado, porque muitos dos jovens da periferia devem faltar aos eventos por medo da repressão policial. “É melhor evitar ou fazer encontros com poucas pessoas”, afirma a adolescente Beatriz.
ROLE-X-IE.jpg Jefferson Luis, organizador de um dos primeiros rolês
no shopping de Guarulhos: a polícia foi acionada
As aspirações dessa juventude aparecem nas letras de funk ostentação que embalam os rolezinhos. As canções – que falam de dinheiro, carros e mulheres – mostram um desejo de inserção dos jovens pobres no mercado de consumo. “Não é de hoje que eles estão usando marcas. Os jovens da classe C são maioria entre os frequentadores de shoppings. Nos rolezinhos, eles só foram nos estabelecimentos que estão acostumados a ir”, afirma Renato Meirelles, do Data Popular, instituto que pesquisa as classes baixas no País. Ele diz ainda que os produtos que os adolescentes querem ostentar muitas vezes foram comprados nos próprios locais que eles estão sendo proibidos de frequentar. “Os shoppings estão muito preocupados com o consumidor do passado e não estão vendo o do futuro. Eles vão perder muito dinheiro caso não enxerguem isso”, diz. Os jovens da classe C movimentam R$ 130 bilhões por ano, segundo o Data Popular. Jefferson, que vive numa casa de um único cômodo com o restante de sua família, diz que todo mundo quer ter um carro ou uma casa legal, mas que a maioria dos MCs não vive a ostentação. “É sonho, eles querem ter isso um dia”, diz. Uma de suas letras é reveladora nesse sentido: “Não é o certo dizer em letras que eu vivo ostentando/ que ando de Hornet, i30, Camaro branco/ e a minha favela cada dia piorando [...] Não tô dizendo que eu quero ostentar/ é que enquanto eu ostento, poucos têm casa pra morar.”

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