A Folha de São Paulo lançou um especial interessante sobre a psicanálise (
confira aqui!). As novidades, termos técnicos, opiniões de gente que sabe o que fala e alguns alertas como o de Rosely Sayão, avisando que tem gente fazendo curso de psicanálise pela internet e se achando psicanalista de criança. Rosely coloca que muitas vezes os pais é que necessitam de uma boa psicanálise e não seus filhos. Concordo com ela em partes, uma vez que não acho perda de tempo se fazer psicanálise e nem um martírio. Ela se refere a cursos online de psicanálise que certificam psicanalistas a atenderem e, isso sim, acho um absurdo. Outra coisa legal que vemos no especial é que, apesar da fama de cara e elitista, Ribeirão Preto pode contar com atendimento psicanalítico mais acessível (
veja aqui!)
A psicanálise, embora não regulamentada por órgão oficiais de estado, é uma profissão que exige no mínimo 5 anos e estudo, supervisão de casos clínicos e análise do candidato. Outra coisa, um psicanalista não sobrevive sozinho: ele necessita dos colegas para supervisioná-lo e para estudar junto, trocar impressões sobre a teoria e prática, e por aí vai (ao contrário de alguns outros profissionais que se formam e nunca mais abrem um livro e são certificados pelo governo federal para isso).
NEUROCIÊNCIA E PSICANÁLISE?
Herculano-Houzel: "Não pode!" Suzana Herculano-Houzel teve um texto antigo publicado “A Neuropsicanálise existe?” e inicia colocando que Mark Solms (um dos fundadores da ideia de se conciliar a neurociência moderna com a psicanálise) quer apenas “comprovar as teorias de Freud”. Mas não. Mark Solms já disse que a neuropsicanálise é uma tentativa de reconciliação de duas áreas do conhecimento que na verdade são muito parecidas e não (1) uma nova disciplina e nem (2) tentativa de comprovar teses freudianas. A neuropsicanálise pode ser simplesmente um caminho natural de pesquisa para alguns psicanalistas que têm certo apreço pelas “Hard Sciences” ou que, como Solms, estudaram neurologia ou neurociências e perceberam na psicanálise alguma verdade.
Solms: "Pode sim!" A autora coloca que a “fusão não funciona porque uma ciência não precisa da outra”. Ora, a neuropsicanálise precisa existir exatamente para verificar essa hipótese. Será que a neurociência dará conta de explicar a mente se desprezar a subjetividade, tão cara à psicanalise? A psicanálise - como um dos últimos redutos da subjetividade - não pode auxiliar as neurociências em produzir novas hipóteses testáveis por metodologia neurocientífica?
PSICANÁLISE COMO CRENÇA
A psicanálise não é de forma alguma “um sistema fechado de crenças”. Primeiro porque não é fechada. Freud foi muito generoso ao tornar a psicanálise uma ciência “por vir”, uma ciência aberta tanto as novas descobertas quanto à contribuição dos ditos “analistas leigos”. O analista leigo é aquele que não é médico e que pode fazer um curso de formação em psicanálise e ser psicanalista. Assim a psicanálise é “oxigenada” por outras formas de pensamento que não o médico-científico apenas. Freud fez questão de não limitar a psicanálise a uma disciplina da medicina porque acreditava (1) na complexidade de sua teoria e por isso deveria ser estudada profundamente e (2) que as habilidades de um psicanalista pouco tinham a ver com as habilidades treinadas em um curso de medicina. A psicanalise é muito aberta e até tem problemas com isso (por exemplo, com o movimento de grupos religiosos no Brasil que deturpam fortemente a formação e a prática).
Segundo, a psicanálise é uma teoria que surgiu por observações de um exímio neurologista e observador clínico, portanto não é baseada na crença alucinada de um grupo de pessoas. Diz se que Freud fez grandes generalizações a partir de poucos casos clínicos e a partir do que ele mesmo sentia; mas esse seria exatamente método psicanalítico de pesquisa que estava se desenvolvendo. Nesse método é importante avaliar o que o analista sente pelo paciente (a interpretação da contra transferência). Isso é um problema: cientistas em geral não gostam de considerar aspectos subjetivos como variáveis importantes do seu trabalho e assim pesquisam partes (detalhes) do sistema cerebral com certa dificuldade em observar a complexidade do sistema como um todo.
O importante pesquisador dos sonhos e do sono e psiquiatra americano John Allan Hobson, apesar de ser praticamente anti-freud e anti-neuropsicanálise, aponta em seu trabalho (HOBSON, 2009) que:
Um dos maiores desafios enfrentados pela ciência moderna é: O que é a mente e como ela pode ser descrita em termos de função cerebral? O novo campo da neurociência cognitiva se concentra em detalhes que são pertinentes a esta pergunta, mas, até agora, tende a ignorar os aspectos globais e abrangentes que ligam e amarrar esses detalhes.
Isso é o que a neuropsicanálise propõe: uma tentativa de diálogo entre esses dois grupos de profissionais afim de “amarrar os detalhes”; ou simplesmente que os dois grupos “não façam bico um para o outro” e que se respeitem mutuamente... Isso já seria uma vitória.
SONHOS SONHOS SÃO
Herculano-Houzel afirma que “sonhos são só acontecimentos recentes ou passados revisitados pelo cérebro”. Essa afirmação soa como passar com um trator em cima de um jardim, com intuito de retirar pequenas ervas daninhas. Sim, os sonhos são acontecimentos recentes ou passados revisitados pelo cérebro (ou melhor, pelo sujeito. É sempre bom lembrar que não existem cérebros andando pela rua, pagando contas ou sonhando). Mas qual a função dessa “revisitação”? Que mecanismos ela respeita? Qual a consequência desta “revisitação” para o sujeito? São questões que a ciência (digo, ciência strictu sensu) ainda não respondeu de maneira adequada... E a psicanálise também não.
Mas, sabe-se que o sonho tem papel fundamental, por exemplo, na consolidação de memórias e que memórias ao serem evocadas são “reeditadas”. É do método psicanalítico a ideia de que evocar memórias – por meio da fala - as torna, no mínimo, diferentes ou menos traumáticas; e que talvez resida aí o fator terapêutico de sessões psicanalíticas.
Dizer que “só o próprio Freud poderia rever seus conceitos à luz da neurociência” é como afirmar que a psicanalise é uma doutrina religiosa, o que está longe de acontecer. Lembrando que Freud foi um grande crítico dos sistemas religiosos e um positivista de carteirinha e, em média, psicanalistas são avessos aos sistemas doutrinários.
Os psicanalistas precisam tomar certo cuidado com o que dizem a respeito das bases neurológicas das teses de Freud, porque muitos elementos da teoria freudiana são de fato ferramentas teóricas para o trabalho psicanalítico (por exemplo, o inconsciente freudiano, complexo de édipo, complexo de castração, id, ego e etc.) pouco importando se há um substrato neural pontual ou não para sua função. Como dizem, para o marceneiro pouco importa a ciência de se fazer o serrote.
O importante para a psicanalise é o fenômeno mental que surge do complexo funcionamento do cérebro, existindo ainda um grande abismo entre os dois (Wilfred Bion deu nome a esse abismo de função alfa). Por outro lado, neurocientistas poderiam tomar o mesmo cuidado ao dizer, ou melhor, repetir ideias muito mal formadas em torno da psicanálise. (psicanalise não funciona, psicanalise é religião, psicanalise não é ciência, etc. etc.).
MEA CULPA
Admito que muitas dessas concepções falsas em torno da psicanalise são formadas por culpa dos próprios psicanalistas que com o passar do tempo não se preocuparam em divulgar apropriadamente a seu ofício e sua ciência ou se esquivaram - por meio de um subjetivismo pedante - da sua tarefa de se posicionarem frente a questões colocadas pela sociedade.
Referência Bibliográfica
HOBSON, J.A (2009). REM sleep and dreaming: towards a theory of protoconsciousness. Nature Reviews Neuroscience, v.10.
Bibliografia recomendada
FREUD, Sigmund. "Mal estar na civilização". In: Obras Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
_________. "A interpretação dos sonhos, 1900, Cap. 7, ESB, vol.4/5
Kaplan-Solms, K. & Solms, M. Clinical studies in neuro-psychoanalysis –Introduction to a depth neuropsychology, London, Karnac Books.2000.