A leitora Jania Ramos, em mensagem para o Blog do Esmael, considera a proibição de visitas a Lula uma forma de tortura psicológica vedada pela Convenção de Genebra, da qual o Brasil é signatário. “Ontem a cena de Leonardo Boff e Esquivel proibidos de visitar Lula foi deprimente”, escreveu.
A leitora sugeriu o artigo de Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, do grupo Tortura Nunca Mais, sobre tortura psicológica, que se amoldura à prisão política do ex-presidente Lula.
O ex-Presidente Lula está sendo vítima de tortura psicológica. A proibição de visitas leva ao isolamento. Por que nenhum blog, até
agora, explorou esse face da injustiça que Lula está sofrendo?
Ontem a cena de Leonardo Boff e Esquivel proibidos de visitar Lula foi deprimente. Imagine como o ex-Presidente Lula sofreu o dia todo, esperando os dois chegarem até ele.
Leia a íntegra do artigo sugerido:
Pelo fim absoluto da tortura em qualquer circunstância *
Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes
Coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do CRP/06, Gestão 2007-2010
A exceção como paradigma
A hipótese de Freud de que os homens não teriam dificuldades em exterminar uns aos outros foi apresentada no texto Mal-estar na Civilização , escrito em 1929 e publicado no ano seguinte. O tema principal do livro é o conflito entre as pulsões e as barreiras impostas pela civilização, referência essencial à compreensão da vida em sociedade. As instituições criadas para proteger a humanidade trazem dentro de si os ingredientes que geram o seu mal-estar, deixando à civilização uma vitória permanentemente adiada. Tomo esta concepção freudiana como um dos atalhos para compreender a construção do novo paradigma civilizatório, que é o paradigma do Estado de Exceção.
A proposta deste paradigma foi desenvolvida por Giorgio Agamben no livro Estado de Exceção, tornando-se referência necessária na construção do pensamento contemporâneo sobre a cultura e a civilização. Em Homo sacer, o poder soberano e a vida nua I , diz que a vida não pode mais ser tomada como noção médica ou científica, e é impossível distinguir entre vida animal e humana, entre vida biológica e contemplativa.
O trabalho de Agamben é radical, no sentido de raiz, e, ao escrevê-lo, bateu de frente com o problema da sacralidade da vida. Percebeu que todas as garantias e álibis construídos pelas ciências humanas – da antropologia à jurisprudência – i.e., do humano demasiadamente humano, ao humano ordenado pela cultura, que definiram o pressuposto da sacralidade como evidência, estavam todos em xeque, face à iminência da catástrofe. Seus estudos o levaram a fazer uma revisão, deste pressuposto.
O caráter da sacralidade, de acordo com o pensamento de Agamben, se liga pela primeira vez à vida humana através de uma figura do direito romano arcaico. Ao Monte Sacro, consagrado a Júpiter pela plebe, eram enviados aqueles que o povo julgou por um delito; eram homo sacer, ou homem sacro. Pelo crime hediondo que cometeram, não poderiam ser sacrificados, não eram dignos de um ato ritualístico e simbólico, reservado aos puros, cujas qualidades dignificariam o ato sacrificial dirigido aos deuses. Mas quem matar o sacer não será condenado por homicídio já que foi banido e excluído do universo da lei. Destituído de sua condição de pertencente a polis ficou reduzido à vida nua.
A concepção de homem sacro ou homo sacer funda a impunidade de sua execução, e esta é uma das vertentes a respeito do ordenamento e governo da sociedade contemporânea. Por outro lado, o termo sacer também remete ao sagrado, pertencente aos deuses, logo, não havia necessidade de uma nova ação para torná-lo sagrado. As imprecisões que advêm desta dupla possibilidade- o veto ao sacrifício e a impunidade de quem o matou- remetem o sacer a um cruzamento entre matabilidade e insacrificabilidade.
Ao lançar na rede da ciência contemporânea o homo sacer, Agamben incorpora de vez a indecidibilidade como possibilidade, abrindo um espaço incomensurável nas formas de os homens se relacionarem e, sobretudo, nas formas de os homens se governarem. Esta zona cinzenta entre o sacer – impuro e matável – e o sagrado – propriedade dos deuses –, permite que, em última instância, alguém decida quem são os impuros e matáveis. A matabilidade do sacer não será punida ou penalizada, não haverá responsável pela sua morte, conforme esta concepção.
A figura do sacer é uma das pedras fundamentais do Estado de Exceção; a outra é o poder soberano. No Estado de Exceção, comum entre guerras, há a suspensão da própria ordem jurídica e a transformação dos regimes democráticos em regimes autoritários, com a progressiva e desmesurada expansão do poder executivo.
Convenções de Genebra
Em 1862, realizou-se a primeira Convenção de Genebra, organizada em face ao morticínio e à matança de soldados feridos na batalha de Solferino, ocorrida três anos antes entre austríacos e franco-piemonteses. Essa conferência produziu a Convenção que resultou na fundação da Cruz Vermelha Internacional e aprovou, como compromisso entre os contendores, o necessário cuidado com os feridos sem discriminação, bem como o auxílio às vítimas de guerra.
Nesta ordenação está um dos pilares das leis subseqüentes que vieram a estabelecer as bases, por meio de uma série de tratados e legislações internacionais, do que hoje conhecemos como a defesa dos Direitos Humanos. As demais Convenções de Genebra definem os direitos das pessoas combatentes ou não, em tempo de guerra.
“As duas primeiras convenções, aprovadas em 1864 e 1906, definiram o tratamento médico sem discriminação a soldados feridos em combates terrestres e navais, determinando ainda que ambulâncias e hospitais serão protegidos de todo ato hostil. A primeira aplicação real desses tratados aconteceu durante a Primeira Guerra Mundial. (…) A terceira convenção, em 1929, teve como objetivo estabelecer normas para o tratamento dos prisioneiros de guerra, que foram definidos da seguinte forma: – É reconhecido como prisioneiro de guerra todo combatente capturado, podendo este ser um soldado de um exército, um membro de uma milícia ou até mesmo um civil. (…)”.
O terceiro tratado fixou os limites do tratamento geral de prisioneiros, como a obrigação de tratá-los humanamente, sendo a tortura e quaisquer atos de pressão física ou psicológica proibidos. Foram estabelecidas obrigações sanitárias, tanto na higiene como na alimentação; e também o respeito à religião dos prisioneiros.
Em 1949, após a 2ª Grande Guerra, a quarta Convenção de Genebra revisou os tratados anteriores e acrescentou mais um, relativo à proteção dos civis em período de guerra.
Quando hoje se fala a respeito da Convenção de Genebra, refere-se ao resultado deste tratado.
“De acordo com esta Convenção, os civis são claramente protegidos de toda hostilidade: eles não podem ser seqüestrados, para servir, por exemplo, de ‘escudos humanos’; toda e qualquer medida de retaliação, visando os civis ou seus bens, é estritamente proibida; as punições coletivas são igualmente proibidas”.
Especificamente contra a tortura
As Convenções de Genebra foram elaboradas principalmente sobre os direitos dos combatentes em campo de batalha. Não deixaram de prever áreas onde os feridos pudessem ser atendidos; foi prevista a proteção à população civil, estendida também às batalhas navais. As nações que ratificaram as Convenções de Genebra decidiram ainda que os atos de violação ao pactuado poderiam ser passíveis de processo perante a Corte Internacional de Justiça e outros tribunais congêneres.
Com a difusão generalizada de práticas abusivas e de tortura contra prisioneiros em todas as partes do mundo, houve um avanço de tratados e de convenções que trataram mais diretamente da tortura em qualquer situação entre guerras. Foram definidos conceitos de tortura e estabelecidos pactos para seu combate e erradicação.
A Associação Médica Mundial, reunida em Tóquio em outubro de 1975, definiu a tortura como a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada, de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por conta própria ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer. Em 1999, em Istambul, foi produzido um Manual para a efetiva investigação de documentação da tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes, conhecido com o Protocolo de Istambul.
Em 10 de dezembro de 1984, a Assembléia Geral da ONU adotou a Convenção contra a Tortura, que entrou em vigor em 1987. Esta Convenção e seu Protocolo Facultativo representaram enorme avanço, ao tipificarem a tortura como crime internacional e ao criarem mecanismos para sua denúncia. A proibição absoluta da tortura e de maus-tratos é enfatizada e não existem condições nas quais os Estados possam deixar de lado ou restringir esta obrigação – mesmo em tempos de guerra ou outras emergências que ameacem a vida da nação. Os Estados também são proibidos de colocar indivíduos em posição de risco de tortura ou maus-tratos, por exemplo, prolongando períodos de incomunicabilidade e de isolamento. Esta proibição independe dos atributos da vítima e se esta é suspeita de crimes.
Logo, como princípio, houve um avanço no combate à tortura e na elaboração de instrumentos jurídicos para sua condenação. A civilização avançou em busca de uma vitória contra a barbárie.
A imposição de uma nova estrutura jurídica: Convenções de Genebra em xeque e a exceção na prática
Na prática, porém, o respeito aos pactos civilizatórios foi sendo sistematicamente destruído, e, retomando Agamben, podemos dizer que vivemos um tempo no qual o paradigma do Estado de Exceção está colocado como imposição. Não foi necessário chegar a um impasse atômico para assistir as manobras do soberano, que está aquém da norma e acima da lei; está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico. Pertence ao soberano decidir se a constituição in toto pode ser suspensa.
Embora complexo como raciocínio, na prática, torna-se evidência. Estou me referindo especificamente ao que está ocorrendo com o governo norte-americano, a partir da derrubada das Torres Gêmeas em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001.
A reordenação da estrutura jurídica, no que diz respeito à tortura e às diretrizes das Convenções de Genebra, foi uma decisão do governo dos Estados Unidos a partir do 11 de setembro de 2001. A necessidade de dar uma satisfação ao povo norte-americano sobre as causas e motivos de tal ataque voltou-se principalmente para a captura do “culpado” pelas incursões contra as Torres Gêmeas e outros alvos dentro do território do país.
A determinação de encontrar os mentores da ação levou o governo a criar um novo arcabouço jurídico, para permitir interrogatórios que usassem a tortura – procedimento em relação aos prisioneiros de guerra até então proibido pelas leis do país e pactuado na
Convenção de Genebra.
Com o propósito de tornar legal e legitimar a aplicação da tortura para obter as informações pretendidas, o governo procurou redefinir o que é a tortura e, sobretudo, definir se os combatentes do Taleban são ou não prisioneiros de guerra, tentando esquivar-se das Convenções de Genebra.
“ Os primeiros passos da administração se destinavam a como classificar prisioneiros da ‘guerra ao terror’ e de que forma poderia desobrigar-se da aplicação das Convenções de Genebra. Como signatários das Convenções, os Estados Unidos são obrigados a obedecê-las, tornando necessário o uso de subterfúgios para justificar métodos de interrogatório coercitivos. Ao mesmo tempo, o Estatuto Federal Antitortura e outros dispositivos legais contra a tortura e tratamento cruel, desumano e degradante proibiam a aplicação das técnicas pretendidas pelos interrogadores. Assim, o segundo passo para o estabelecimento de uma nova estrutura legal envolvia restringir a definição de tortura, incluindo a tortura psicológica. Com tais objetivos, o governo aprovou o uso de técnicas específicas incompatíveis com as Convenções de Genebra, assim como uma nova definição de tortura. (…) A luta contra o Taleban e a al Qaeda, classificada pelo governo norte-americano como um combate ao terror, significaria ‘um novo tipo de guerra’, que anularia as ‘estritas e obsoletas limitações de Genebra sobre o interrogatório de prisioneiros inimigos’. (…) A rejeição das Convenções de Genebra quanto aos prisioneiros da al Qaeda e Taleban foi incorporada em uma diretriz emitida pelo presidente Bush a 7 de fevereiro de 2002”.
Renovação de técnicas de interrogatório: severa dor e/ou sofrimento mental
Face à necessidade de tornar os atos de tortura legais e à necessidade de eximir os executores de qualquer responsabilização criminal, a Assessoria do Departamento de Justiça do governo dos EEUU definiu que atos de tortura praticados em cumprimento a determinações do presidente, além de legais, não eram passiveis de punição, conferindo imunidade jurídica nestas práticas a militares e funcionários do governo. Houve uma reinterpretação jurídica, sob os auspícios do soberano/presidente, para que a exceção se instalasse. “Para que um ato constitua tortura, deve infligir dor ‘equivalente em intensidade à dor causada por um ferimento físico grave, como a falência de um órgão, a inutilização de uma função orgânica ou mesmo a morte’. Trata-se de um conceito extremamente redutivo, incompatível com as interpretações da tortura anteriores adotadas pelo direito internacional e tribunais dos EEUU, assim como o Departamento de Estado. Além disso, a definição foi baseada em códigos sobre condições clínicas emergenciais para a concessão de benefícios previdenciários. (…) O documento indica que, para ser condenado por tortura, o réu deveria ter a intenção manifesta de infligir dores severas, dessa forma estabelecendo uma linha de defesa através da negação da intenção deliberada”.
Embora os pareceres de 2002 tenham redefinido a prática de interrogatórios, suas orientações permaneceram em segredo por quase dois anos, e o governo dos EEUU jamais admitiu haver reinterpretado a legislação contra a tortura. Após o vazamento dos textos, em 2004, o governo finalmente decidiu divulgá-los e, reagindo às críticas, anunciou que não considerava mais válidas as orientações e que estas seriam revistas.
A respeito da questão da dor ou sofrimento mentais, no entanto, o parecer de 2004 introduz uma nova interpretação que permite a tortura psicológica.
“Essas técnicas só se caracterizariam como tortura se houvesse demonstração específica de prolongado dano mental à vítima, o que significa dano por um longo período. Seus exemplos sugerem que as seqüelas devem durar anos depois do fato. Sob esse ponto de vista, não haveria motivos para o Departamento da Defesa ou a CIA proibirem tais práticas, pois estas somente seriam ilegais caso se comprovasse que levaram a intenso sofrimento após um longo período. (…) Isso atinge o cerne da proibição da tortura, pois o propósito da lei é, em primeiro lugar, impedir que os interrogadores a apliquem, e não esperar para ver o impacto que possa ter tido. Dessa forma, não há razão para que os interrogadores se preocupem com a possibilidade de serem julgados por cometerem atos de tortura psicológica. Em resumo: se o parecer da Assessoria Jurídica for mantido, com certeza continuará a tortura psicológica, na forma de ameaças de morte, privação sensorial, isolamento, humilhação sexual e privação do sono”.
Abril de 2008
Com o título O governo Bush e a carta branca para a tortura, um editorial do The New York Times informou que o governo havia elaborado um memorando de 81 páginas para justificar a decisão oficial de ignorar as leis federais e ameaças internacionais e dar carta branca ao abuso da tortura de prisioneiros de guerra.
Um dos primeiros argumentos reitera o que já fora dito por assessores jurídicos, de que as leis não se aplicam a Bush por ele ser o comandante do Estado. Na opinião de muitos advogados do governo, os membros da al Qaeda e Taleban não estariam incluídos na Convenção de Genebra. Em relação ao waterboarding, que simula o afogamento, opinam ser apenas uma imitação e não uma ameaça de morte.
Ao vetar uma lei contra a tortura, o presidente/soberano justificou: “ ‘ O projeto de lei que o Congresso me enviou iria acabar com uma das ferramentas mais valiosas da guerra contra o terror. Por isso vetei’. (…) ‘Essa não é a hora para o Congresso abandonar práticas que se provaram eficientes na tarefa de manter a América segura’, disse Bush”.
Afogamento simulado, posições estressantes, isolamento, humilhação sexual, exposição prolongada a frio intenso e calor extremo vêm sendo chamados de técnicas de tortura light; são chamadas de práticas enhanced – práticas aprimoradas – de tortura, não deixam marcas corporais como nos casos de tortura psicológica. O método que é o de obrigar prisioneiros a ficar de pé ininterruptamente por 40 horas mereceu um comentário por parte de um secretário de Estado (…) que disse que em seu emprego “também é exigido que se passe horas de pé”.
Nas chamadas práticas de aprimoramento da tortura, sobretudo as que envolvem aspectos psicológicos, psicólogos dos EEUU foram chamados a assessorar os militares baseados no Iraque e assessorar os interrogadores da CIA. Triste adesão, que mereceu o repúdio tanto da Associação Médica como da Associação de Psiquiatria. A Associação Americana de Psicologia
–APA – considerou que poderia minimizar o sofrimento do torturado e colaborou efetivamente com a CIA na concepção de técnicas aprimoradas de tortura, exercendo um raciocínio macabro de presenciar as sessões, supondo poder humanizá-las, esquecendo-se que, dentro de instalações militares e sob serviço militar, a autoridade é o militar. Esta adesão levou a uma cisão na APA e foi proposta por dissidentes a não participação nas sessões de tortura. Mais recentemente foi divulgado pela APA que os psicólogos estão definitivamente proibidos de qualquer prática que seja definida como tortura e qualquer outro tratamento cruel, desumano ou degradante, conforme as resoluções de Genebra e da ONU.
Como alternativa houve a proposta de que poderiam passar a orientar e preparar os interrogadores-torturadores, utilizando os conhecimentos da psicologia, pretendendo torná- los menos agressivos e mais eficazes.
Estas posições foram veementemente criticadas durante o Encontro: Enfrentamento da Tortura: Implicações Éticas e Políticas para a Psicologia, promovido pelo CRP 06 em 29 de fevereiro de 2008, realizado na sede em São Paulo. Os principais pronunciamentos deste evento foram divulgados no PSI Jornal de Psicologia do CRP SP nº 155.
O cenário da bomba-relógio
Embora o 11 de setembro tenha levado à insanidade o governo Bush, sabemos que a idéia de que a tortura pode evitar um mal maior é raciocínio antigo e recorrentemente praticado em outros países e em outros conflitos, armados ou não. Atualmente, este raciocínio recebeu uma nova construção e reforço e vem sendo divulgado com o nome de cenário da Bomba- Relógio. A gravidade da proposta é que ela foi montada com todos os recursos da propaganda e do marketing e com suporte televisivo e cinematográfico, e tem usado estes canais de comunicação para sua difusão, sobretudo nos EEUU, na Europa, na Austrália e em todos os lugares onde a televisão é uma forma de entretenimento da família e formadora de opinião.
O Cenário da Bomba-Relógio mereceu da Associação para a prevenção da Tortura – APT – recente e ampla divulgação através do folheto: Desativando o Cenário da Bomba Relógio – Por que nós devemos dizer Não à tortura, sempre.
“O Cenário da Bomba-Relógio é um ‘experimento mental’ hipotético destinado a questionar a proibição absoluta da tortura. Pode ser formulado da seguinte forma:
Suponha que alguém envolvido em um ataque iminente, que matará muitas pessoas, foi capturado pelas autoridades e que só se for torturado revelará as informações necessárias para impedir o atentado. Ele deve ser torturado?
O Cenário da Bomba-Relógio atua através da manipulação das reações emocionais do público. Cria um contexto de medo e raiva. Deforma artificialmente as circunstâncias, de forma a gerar simpatia ou até admiração para o torturador e ódio ou indiferença para a vítima de tortura. Sua natureza dramática o tornou um dos enredos favoritos de programas populares de TV e filmes de ação.
Quaisquer que sejam os motivos de sua apresentação em um determinado contexto, o efeito pretendido com o Cenário da Bomba-Relógio é criar dúvida sobre a sabedoria da proibição absoluta da tortura. Esta dúvida, por sua vez, está em geral destinada a levar o público a aceitar que se crie uma exceção jurídica para a proibição, ou ao menos a aceitar que as leis contra a tortura não sejam aplicadas em alguns casos.
O objetivo real dos proponentes do Cenário da Bomba-Relógio seria criar uma exceção ampla, enquanto aparentam sugerir algo restrito. Tentando forçar os adversários da tortura a admitir que esta poderia ser aceitável, ao menos em casos extremos, os proponentes do Cenário da Bomba-Relógio esperam debilitar o próprio conceito de que a oposição à tortura deve ser absoluta, como questão de princípio e prática.
A aposta feita pelo Cenário da Bomba-Relógio é altíssima: o fim da proibição absoluta da tortura, através de um processo sistemático e permanente de divulgação com vistas a formar opinião e tomar o espectador, ou ouvinte e leitor, como implicado em uma hipotética situação onde estivesse, ele e ou seus familiares, amigos ou colegas pessoalmente envolvidos em uma situação de risco iminente”.
Embora as organizações internacionais de Direitos Humanos venham denunciando continuamente maquinações que atingem o coração da civilização, da moralidade e da ética que sustenta as relações sociais, a chamada tortura light e o cenário da bomba-relógio são os estigmas do nosso tempo.
No Brasil, sabemos que em nossas prisões a tortura continua como sempre esteve e que o padrão de desrespeito às pessoas em privação de liberdade e em locais de isolamento é de permanente risco. Estas pessoas são crianças, são jovens e são adultos, são idosos. A prática de tortura saiu dos porões: ocorre a céu aberto, nos morros, dentro de viaturas policiais, dentro das casas de suspeitos tornados matáveis. São evidências de que o combate sem trégua à tortura continua necessário e que os avanços da ciência e tecnologia não fizeram avançar, na mesma proporção, o aprimoramento das relações entre os homens.
A concepção de que no cenário da tortura há três envolvidos, o torturado, o torturador e a sociedade que a permite, nos entrega uma responsabilidade da qual não devemos e nem podemos nos furtar, que é a de divulgar; nos posicionar e combater sem exceção, e em qualquer circunstância, a tortura: aqui, em qualquer estado ou cidade do nosso pais e em qualquer lugar ou cidade de qualquer parte do mundo.
Referências bibliográficas
* Este texto é uma versão atualizada do trabalho apresentado na Mesa Tortura como Política e Prática de Segurança de Estado durante o II Fórum Internacional de Saúde Coletiva, Saúde Mental e Direitos Humanos, realizado no Rio de Janeiro, de 22 a 25 maio de 2008.
Freud, S, Obras Psicológicas Completas, Edição Standard Brasileira, trad. J. O. Aguiar Abreu, Imago, Rio de Janeiro, 1969, vol XXI
Agamben, G, Estado de Exceção, trad. Iraci D. Poleti, São Paulo, Boitempo, 2004
—————- Homo sacer, O poder soberano e a vida nua I, trad. Henrique Burigo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002