Cientistas propõem o uso de remédios e
de outras intervenções para acabar com o sentimento quando ele traz mais
sofrimento do que alegria
Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br)
É difícil encontrar alguém que nunca sofreu
por amor. E que no auge de sua dor não tenha imaginado como seria ótimo
se existisse uma pílula, algo que pudesse ser comprado logo ali, na
farmácia, para acabar com o sofrimento. Na opinião de um respeitado time
de cientistas, esses remédios existem. Alguns já estão disponíveis,
outros em estudo. Juntos, eles formam um arsenal capaz de curar amor – e
devem começar a ser usados sempre que necessário. A proposta está sendo
feita por pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, uma
das mais renomadas do mundo. Por seu teor polêmico, a proposição iniciou
um grande debate entre os cientistas sobre a oportunidade de se
recorrer a recursos para encerrar um amor – seria mesmo adequado tratar o
sentimento como se lida com uma gripe, uma gastrite? – e as
consequências éticas que podem advir do uso do que os estudiosos
ingleses estão chamando de biotecnologia antiamor.
No olhar do grupo de Oxford, porém,
trata-se de lidar com o tema sob uma perspectiva diferente da
convencional. Existe o amor de Platão, de Shakespeare. Fala-se aqui do
ideal, do sentimento arrebatador, que nasce sem muita explicação e gera
histórias inesquecíveis. E existe o amor entendido pela ciência. Nesse
caso, não há espaço para romantismo. A emoção seria produto de respostas
fisiológicas desencadeadas no cérebro a partir de um estímulo. Sua
geração faria parte do arcabouço de emoções que a espécie humana
desenvolveu ao longo de sua evolução com o objetivo de garantir sua
sobrevivência. O medo, por exemplo, nos ajudou a ter reações de fuga
diante de predadores. O amor, por sua vez, foi o sentimento que garantiu
a continuidade da reprodução da espécie. E hoje, defendem os
cientistas, é possível interferir nas etapas desse processo com a
finalidade de interrompê-lo. “A neurociência está nos apresentando um
entendimento novo do amor”, disse à ISTOÉ o pesquisador Brian Earp, de
Oxford, coordenador do grupo que estuda os tratamentos para o
sentimento. “Portanto, se pensarmos que ele é algo que emerge da química
cerebral, começa a fazer sentido falar em cura.”
SEM LIGAÇÃO
Em suas pesquisas com cobaias, Young conseguiu impedir a criação de laço afetivo
O consenso científico sobre o amor é o de
que ele é dividido em três fases. A primeira é chamada de luxúria e
caracteriza-se pelo desejo sexual. A segunda é a atração. As duas fases
formam a paixão. Elas são associadas aos hormônios estrogênio e
testosterona – responsáveis, respectivamente, pelas características
femininas e masculinas. Também há o foco no objeto da paixão, podendo
ocorrer inclusive pensamentos obsessivos a seu respeito. “Os apaixonados
e os pacientes que sofrem de Transtorno Obsessivo Compulsivo dividem um
mesmo tipo de pensamento. Os primeiros são focados nos parceiros, e os
segundos, em suas obsessões”, disse à ISTOÉ a pesquisadora italiana
Donatella Marazziti, da Universidade de Piza, na Itália. Ela é autora de
um trabalho exemplar sobre esse aspecto. Primeiro, Donatella selecionou
20 voluntários em pleno estado da paixão e 20 portadores do transtorno.
Ela quantificou nos dois grupos a concentração de uma proteína
envolvida no transporte da serotonina, substância cerebral relacionada à
regulação do humor. Tanto apaixonados quanto pacientes tinham baixa
quantidade da proteína, o que significa que havia pouca disposição de
serotonina. Um ano depois, seu nível já havia subido entre os amantes. E
eles não manifestavam mais obsessão pelo parceiro.
CAUTELA
Marchant, da Universidade do Arizona, teme o uso abusivo das drogas antiamor
As estruturas cerebrais acionadas nessas
duas fases são as que compõem o sistema de recompensa. Ele é ativado
quando se vive algo que dá prazer. Ao entrar em ação, há a liberação de
dopamina. O composto é a base química que está por trás da alegria que
sentimos quando desfrutamos de uma situação prazerosa. Esse sistema é o
mesmo acionado nos casos de dependência, como a de drogas ou de álcool.
No caso do amor, a recompensa é o prazer proporcionado pelo parceiro. É
por essa razão que há o entendimento de que o amor pode se tornar um
vício. “Há teorias sobre adição que sugerem que qualquer substância,
comportamento ou relacionamento que apresente potencial de recompensa
pode desencadear dependência”, diz Earp.
No artigo que publicaram sobre o tema na
revista científica “The American Journal of Bioethics”, os pesquisadores
ingleses elencaram várias categorias de remédios que poderiam ser
usadas para interromper a evolução da paixão. Os antidepressivos, por
exemplo, reequilibram as concentrações de serotonina, reduzem
pensamentos obsessivos, interferem na liberação de dopamina – portanto,
haveria menos euforia diante do amado – e têm entre seus efeitos
colaterais a queda da libido. Outras opções seriam as medicações que
impedem a ação da testosterona, provocando diminuição do desejo. Apontam
também a naltrexona, usada para tratar a dependência de opioides
(receitados contra a dor) e contra o alcoolismo.
A terceira etapa do amor é a do vínculo.
Trata-se aqui do sentimento a longo prazo, sem o impulso da paixão,
marcado por sensação de segurança e de proteção ao parceiro. Nessa fase,
agem duas substâncias: a ocitocina e a vasopressina. A primeira é um
hormônio envolvido na formação de laços afetivos e de fidelidade. “Ele é
liberado quando há contato íntimo, um toque carinhoso”, explicou à
ISTOÉ o americano Larry Young, diretor da Divisão de Neurociência
Comportamental do Centro de Pesquisa Yerkes, da Emory University (Eua).
Já a vasopressina atua na formação de vínculos nos cérebros masculinos.
“Em outras espécies, ela é responsável por um comportamento associado à
proteção de território”, disse Young. “Mas em espécies monogâmicas está
relacionada a vínculo, provavelmente porque o cérebro masculino
considera a fêmea parte de seu território.” Nessa química, também opera
uma molécula chamada CRF, que ajuda a manter a relação por longos
períodos. “Quando os amantes estão separados, a CRF os faz ter
sentimentos negativos, até depressão”, completou Young.
O americano é um dos mais proeminentes
estudiosos da neurofisiologia do amor. Pesquisa o tema há 20 anos,
usando como cobaias um tipo de ratazana cujo comportamento familiar se
assemelha ao humano, mantendo longas relações com apenas um parceiro.
Nas suas experiências, porém, ele provou que é possível manipular esse
comportamento simplesmente agindo sobre as substâncias associadas ao
vínculo. “Podemos bloquear qualquer um desses compostos e evitar que as
cobaias construam laços ou se sintam mal quando um parceiro vai embora”,
afirmou Young. Em um dos experimentos, ele usou um composto para
impedir a ação da ocitocina nas fêmeas. Elas não criaram ligação com um
parceiro e tornaram-se polígamas. “Teoricamente, drogas semelhantes
poderão ser dadas às pessoas para manipular seu amor por seus
companheiros”, disse o pesquisador.
O inglês Brian Earp, de Oxford, está
otimista quanto à criação de mais recursos anti-amor. “Conforme o
conhecimento do mecanismo cerebral por trás do sentimento se aprofundar,
a tecnologia antiamor se tornará ainda mais poderosa”, acredita. Não se
descarta, inclusive, a manipulação da memória por meio do emprego de
técnicas adotadas hoje no tratamento de estresse pós-traumático. Nesse
caso, o que se quer é apagar as lembranças ruins associadas ao evento
que levou ao trauma. Um dos recursos é o uso do anti-hipertensivo
propranolol. E mais opções estão em estudo, envolvendo treinamentos
específicos e outras medicações. No caso do amor, os métodos seriam
usados para fazê-lo desaparecer. “Pode-se imaginar terapia similar sendo
usada para apagar a memória do amor”, afirmou a antropóloga Helen
Fisher, da Rutgers University (Eua), também investigadora importante da
área.
MEMÓRIA
Estudiosa do amor no cérebro, Helen acha possível
apagar a lembrança do sentimento
Os pesquisadores defendem o uso de armas
como essa para todos os casos nos quais a relação é claramente
prejudicial e precisa ter um ponto final. “Imagine uma pessoa em um
relacionamento violento. Ela sabe que precisa sair dessa situação, mas
seu sentimento de vínculo é tão forte que não consegue”, disse Earp. “Se
ela pudesse usar um remédio que possibilitasse uma separação emocional
do parceiro, seria um uso possível.” O cientista cita outra
circunstância. “Pense em alguém atraído por outra pessoa que não o seu
parceiro, mas que quer continuar fiel”, exemplifica. “A tecnologia
antiamor pode ajudá-lo a diminuir seus sentimentos de atração pelo
outro.” Indivíduos com dificuldade para se recuperar de um rompimento e
partir para outra experiência também se beneficiariam. Segundo Earp, em
Israel já houve a adoção de uma das armas. Por determinação de rabinos,
antidepressivos foram dados a jovens para aplacar sua libido de forma
que ficasse mais fácil, no entendimento dos religiosos, seguir as normas
da religião sobre o comportamento sexual.
A proposta de curar o amor desencadeou
intensas reações na comunidade científica. Após a publicação do artigo
do grupo inglês, pensadores de várias partes do mundo iniciaram um
debate sobre as repercussões da proposta. A professora Kristina Gupta,
da Universidade Georgetown (Eua), foi uma delas. Estudiosa da
sexualidade humana, ela vê benefícios na aplicação de tecnologias para
aplacar o sentimento. “Acho válido em alguns casos, como para alguém que
quer terminar uma relação com um marido violento”, afirmou à ISTOÉ.
“Mas é preciso se certificar de que os recursos não sejam usados para
eliminar tipos de relacionamentos somente porque não são considerados
aceitáveis pela sociedade. Um exemplo são as relações homossexuais”,
completou.
Especialista em filosofia e sexualidade, o
canadense Neil McArthur, da Universidade de Manitoba, também reagiu. Ele
defende que os recursos seriam úteis quando as pessoas não são aptas a
se recuperar de forma sadia após um rompimento. “Como aquelas que
começam a manter pensamentos suicidas ou a perseguir seus ex-parceiros”,
exemplificou à ISTOÉ. E a exemplo de Kristina, prega a cautela.
“Gostaria que esses remédios fossem muito bem regulados e usados em
casos extremos.”
McArthur toca em um ponto central das
discussões: como garantir que não haveria abuso na aplicação dos métodos
antiamor. “Estamos preocupados com essa possibilidade”, afirmou à ISTOÉ
o americano Gary Marchant, professor de tecnologias emergentes, lei e
ética da Universidade do Arizona. Ele abordou a questão em um artigo
publicado no “The American Journal of Bioethics”. “O iminente
desenvolvimento de agentes antiamor nos coloca sob o sério risco de
atitudes não éticas para manipular sentimentos românticos”, escreveu. Na
opinião do especialista, é preciso começar a pensar em uma legislação
que proteja, por exemplo, contra a manipulação involuntária do
sentimento. “Mas isso será um desafio”, acredita.
Há outra crítica importante levantada.
Intervir para curar o amor embute o risco de tirar do ser humano uma
oportunidade de evoluir. “Se tomarmos uma pílula a cada vez que uma
relação não der certo, nunca aprenderemos a ver o que fizemos de certo
ou errado e como nos tornar pessoas melhores”, afirma o canadense
McArthur. “Além disso, pense em toda a maravilhosa arte, música e
literatura feitas sobre o amor. Nada disso existiria se esses remédios
estivessem disponíveis. A dor da perda nos torna criativos.”
Pondera-se também se a proposta não seria
mais um caso de “medicalização” de um sentimento. Ou seja, de tornar um
problema médico uma emoção natural. “Isso pode ser bom ou mau”, responde
Brian Earp. “O alcoolismo, por exemplo, foi considerado durante muito
tempo uma questão moral. Quando começou a ser tratado como um problema
de saúde, houve a abertura para a criação de tratamentos. E eles
melhoraram a vida das pessoas que estavam sofrendo”, defende o inglês.
Fotos: John Angerson, Divulgação, Kelsen Fernandes/Ag. Istoé