(Roberto Requião)
Definitivamente, Lula é
culpado. Desde de sempre. Nasceu culpado, viveu sob o estigma da culpa e
haverá de morrer no pecado. Lula é culpado há gerações. O seu sangue
está contaminado por cepas indígenas e, provavelmente, africanas. Lula é
malnascido. E mal-agradecido: em vez de se conformar à sorte de ter
sobrevivido a uma taxa de mortalidade infantil que transformava em
anjinhos, pela graça de Deus, mais de 90 das cem crianças nascidas no
sertão pernambucano, quis alçar-se além de sua condição de sobrevivente,
de sobra do destino, de raspa do tacho, quis - oh falta de senso da
ordem natural das coisas! - ser presidente da República.
Lula não
é inocente. Pode até ter sido ingênuo, por acreditar que fosse aceito
ou tolerado pela Casa Grande e seus sabujos. Pode ter sido confiado,
crédulo. Mas não inocente.
Dizer, gritar, espernear que Lula é
inocente, é dar legitimidade às acusações e condenações de Moro,
Dallangnol, daqueles patéticos juízes do TRF-4, talvez a mais completa
corte de pascácios da história do judiciário brasileiro.
Dizer
que Lula é inocente é certificar todas as manchetes, todos os textos,
todos os artigos, toda as opiniões que a mídia comercial, e monopolista,
verte em caudais todo os dias. Dizer que Lula é inocente é reconhecer e
validar o que o Jornal Nacional, na voz marcante de William Boner ou
com a sisudez para a ocasião de Renata Vasconcelos, comunica aos
brasileiros todas as noites há mais de mil noites.
Dizer que Lula
é inocente, corresponde até mesmo a aceitar a bizarrice do power point
de Dallangnol, a militância aecista de Igor Romário, a incompetência
letal de Erika Mareka e o cavanhaque indecoroso do Santos Lima.
Dizer que Lula é inocente é como que ratificar as acusações dos nazistas
a Dimitrov, pelo incêndio do Reichstag; autenticar a culpa de Dreyfus
por traição à França; é escolher Barrabás; é filiar-se ao Santo Ofício
na condenação de Giordano Bruno; é adotar como sua a sentença contra
Tiradentes; é atuar como assistente de acusação da Savonarola; é botar
fogo nas piras que consumiram todos os cristãos novos e os muçulmanos
recalcitrantes, as bruxas, os hereges e a longa procissão dos
desajustados às normas da Santa Madre.
Lula é inocente do quê? De
um apartamento que nem Moro reconheceu que fosse dele? De um sítio,
cuja propriedade escriturada, de papel passado e testemunhada foi
sonegada a troco – mais uma vez - da convicção de um juiz, da delação de
um torturado?
Não, não há inocência em Lula. Ele não é inocente de roubo, porque não roubou.
Lula é culpado!
Como a Joana D’Arc de Bernanos e de Bressan, Lula é culpado de sua
inocência. Como a Santa, foi relapso, desavisado, confiante,
demasiadamente confiante. Afinal, ele imaginou que poderia fazer tudo o
que fez impunemente? Que poderia arrostar os poderosos e seus interesses
transnacionais, desafiar um a um os proprietários da política, os donos
do dinheiro, os donos da opinião pública e à sempre desfrutável classe
média? Em que país pensou que vivesse?
É desta ordem a culpa de Lula.
Lula é culpado porque resgatou dos porões do gigantesco navio negreiro
que é este país, dezenas de milhões de brasileiros. É culpado porque
introduziu essa gente no maravilhoso mundo das três refeições diárias,
mesa há 500 anos reservada a apenas uma minoria. É culpado por essa
fantástica e ciclópica (que mais superlativos poderia usar?) obra de
combate à fome, à desnutrição, à mortalidade materno-infantil, à
degradação física e moral da nossa gente. É culpado porque botou anel de
doutor no dedo dos filhos de operários e trabalhadores rurais. É
culpado porque inventou um programa para dar aos brasileiros uma moradia
digna, sadia e financeiramente acessível. É culpado porque, operário e
pau-de-arara, entendeu mais que os ilustrados antecessores, especialmente
mais que o sociólogo boquirroto, ciumento, fútil e ocioso, que um país
sem ciência tecnologia estaciona no tempo e no espaço e torna-se mero e
servil caudatário das nações imperiais. Daí a magnífica rede federal de
educação profissional, científica e tecnológica, a rede de escolas
técnicas, as universidades plantadas em todo o país, para horror dessa
nossa elite tacanha, obtusa, inculta, grosseira e preconceituosa que
ainda hoje sonha com a senzala.
Lula é culpado pela mais fabulosa
descoberta em território pátrio dos últimos séculos, o petróleo na
camada do pré-sal. Os muxoxos dos tucanos, à frente, na vanguarda do
atraso, como sempre, o invejoso FHC; e a reação blasé dos economistas e
dos jornalistas de mercado, da grande mídia comercial e do mercado
financeiro, revelaram não apenas despeito, mas, sobretudo, decepção com
as possibilidades abertas à consolidação da soberania nacional e, acima
de tudo, da cimentação de um poder popular, nacional e democrático.
Lula é culpado por ter aberto a mais formidável possibilidade para
reunir o Brasil do atraso, da pobreza e da dependência. Lula é culpado
por insurgir, desafiar, confrontar aquela que, talvez, seja a pior, mais
daninha, a mais colonial, a mais estúpida, a mais iletrada, ignorante e
xucra das classes dominantes mundiais, a elite brasileira.
Lula é
culpado por tornar o Brasil respeitado, ouvido e acatado
internacionalmente. Jamais, em tempo algum, o nosso país teve tal
protagonismo e liderança. Lula enterrou o complexo de vira-lata, de que
os sapatos do chanceler dos tucanos são o mais vergonhoso exemplo.
E isso foi imperdoável!
Lula é culpado, mil vezes culpado, por ter libertado a Polícia Federal e
o Ministério Público das injunções políticas, dando-lhes, é verdade,
uma autonomia excessiva.
Lula é culpado (por favor, nunca relevem
essa culpa que, para a classe média metida a sebo, esse é um pecado
mortal) por transformar os aeroportos em rodoviárias.
São por
essas culpas que Lula foi condenado e é mantido preso. São as culpas de
Mandela, de Spartacus, de Frei Caneca, de Zumbi dos Palmares, do
Conselheiro. O tal do triplex, cuja propriedade permanece em um incômodo
e escandaloso limbo? Os pedalinhos dos netos em um sítio em Atibaia?
Ora, vão à merda!
*Roberto Requião é ex-senador pelo MDB do Paraná