O uso de aplicativos de medicina,
treinamento físico, nutrição e bem-estar torna os celulares e os tablets
os mais novos recursos para aprimorar os cuidados com o corpo e a mente
Mônica Tarantino e Monique Oliveira
ATUALIZADOS
Médicos residentes do InCor (SP) acabam de ganhar tablets. Entre
outros aplicativos, há um que fornece as novidades em tratamentos
Sem saber, o epidemiologista bengalês Alain Labrique foi um dos
pioneiros de uma revolução em curso na medicina que mudará para sempre a
forma como médicos e pacientes gerenciam a saúde. Quando voltou dos
Estados Unidos para Bangladesh, sua terra natal, em 2001, para coordenar
um programa de prevenção de infecções em mulheres durante a gestação, o
médico não conseguia sequer fazer uma ligação telefônica. “Levava um
dia inteiro para falar com algum serviço médico central”, contou à
ISTOÉ. Em Bangladesh, mais de sete mil gestantes morrem anualmente em
decorrência de infecções que poderiam ser tratadas no pré-natal. “Elas
moram em regiões precárias, de difícil alcance, sem condições de
higiene, com serviço de saúde praticamente inexistente”, relatou. Com
tamanha dificuldade, Labrique percebeu que apenas ajuda médica seria
insuficiente. Era urgente criar um sistema para saber quantas mulheres
necessitavam de auxílio e o que era preciso para atendê-las com rapidez e
provê-las com informações básicas. Com a chegada do celular ao país em
2004, Labrique testou o “M-Labor”, processo de envio de mensagens que,
em um teste, ajudou 500 mulheres a saber o que fazer na hora do parto.
Em 2011, já com os smartphones, o projeto evoluiu para o aplicativo
“M-Care”. Nele, membros da comunidade inserem quem são as mulheres e
quais problemas enfrentam. Também trocam mensagens com os médicos e
recebem orientações de como agir. A equipe fica de sobreaviso e, numa
situação de emergência, é acionada com rapidez. O sistema ajuda ainda a
elaborar dados para o desenvolvimento de programas para diminuir a alta
mortalidade entre mulheres. Com ele, foi possível chegar a tempo a 89%
dos nascimentos e evitar infecções prévias em 65% dos casos – antes,
apenas 12% das mulheres tinham acesso a serviços médicos.
Com seu projeto, Labrique, na verdade, está fazendo parte da m-Health,
um jeito novo de prestar e receber serviços dirigidos para a construção
de uma vida saudável com base no uso de aparelhos portáteis de
comunicação. O termo é a sigla, em inglês, de mobile health. Em
português, quer dizer saúde móvel. Na prática, significa exatamente
isso. Apenas com um smartphone ou um tablet na mão, hoje é possível
fazer diagnósticos, registrar indicadores como taxa de açúcar no sangue
ou nível de pressão arterial, conter um surto de ansiedade ou traçar um
plano personalizado de treinos físicos, por exemplo, não importa o lugar
onde se esteja. E com os mesmos aparelhos, as informações podem ser
compartilhadas com quem for necessário. O paciente pode mandá-las para o
médico, o médico para o paciente, o professor de medicina para o
estudante, o médico para outro médico em busca de mais uma opinião.
Enfim, é a saúde móvel, e a um toque dos dedos.
O impacto dessa ciranda será profundo. “Como o paciente pode enviar
os dados de qualquer lugar, em qualquer momento, essas informações podem
ser analisadas em tempo real, com precisão, aumentando a eficácia do
tratamento”, afirma o endocrinologista Gustavo Penna, chefe do Núcleo de
TeleSaúde da Universidade Federal de Minas Gerais. “E o paciente tem
maior controle sobre a sua saúde”, completa. Em razão dessa importância,
a Organização Mundial da Saúde – entidade que dita as linhas de conduta
para a saúde pública em todo o mundo – resolveu estabelecer diretrizes
para que o potencial da m-Health seja aproveitado. O documento,
publicado em 2011, exortou governos de todo o mundo a implementar e
investir nessas tecnologias para conectar sistemas de saúde e aprimorar a
eficácia do tratamento de doenças crônicas.
Esse novo patamar na história dos cuidados com o corpo só foi possível
graças à fantástica evolução da telefonia celular. A chegada dos
smartphones e dos tablets, com suas telas de alta resolução e microfones
potentes, tornou realidade, entre outras façanhas, o desenvolvimento de
aplicativos que captam imagens de fetos, identificam parasitas a partir
da imagem de uma gota de sangue ou aferem a capacidade respiratória.
Simultaneamente, houve a popularização dos celulares – de acordo com a
União Internacional de Telecomunicação, o mundo conta com 5,8 bilhões de
assinaturas de telefones móveis (somos sete bilhões de habitantes no
planeta). E o setor de aplicativos em geral é um dos que mais crescem,
atingindo a marca de 25 bilhões de downloads.
Na área da medicina, a profusão de aplicativos impressiona porque já
contempla um leque amplo de doenças. Na esfera mente-cérebro, por
exemplo, há opções que ajudam a diminuir na vida diária os riscos
trazidos pelos transtornos. Um exemplo é o aplicativo criado na
Universidade de Harvard (EUA) para transtornos de ansiedade advindos da
fobia social, condição em que o paciente concentra demasiada atenção em
expressões faciais hostis. Para desviar o foco do usuário dessa
hostilidade imaginária, o aplicativo apresenta várias outras expressões,
num processo que simula um jogo de cartas. “A ferramenta muda o foco do
paciente e ajuda a impedir que o surto ocorra”, disse à ISTOÉ Richard
MacNally, professor do Departamento de Psicologia da Universidade de
Harvard.
TRABALHO
O residente Ricardo Maranhão também cria aplicativos médicos
Para proteger os portadores da doença de Alzheimer, que traz enorme
confusão mental, há opções como o Simap, criado pela Vodafone e a Cruz
Vermelha da Espanha. O aplicativo grava a posição geográfica do paciente
a cada três minutos e a informação é enviada a médicos e familiares em
tempo real. Se o indivíduo ultrapassar uma área predeterminada, o
celular do paciente e dos familiares soa um alarme.
No fitness, a variedade é igualmente ampla. “Há desde aqueles que
verificam se há academias nas redondezas até os que permitem trocar
informações sobre treinos nas redes sociais”, diz Bruno Franco,
coordenador de inovação do Grupo Bodytech. Na área de nutrição, há
softwares que possibilitam a obtenção das informações nutricionais dos
produtos a partir da leitura do código de barras do rótulo. Para os
interessados em bem-estar encontram-se alternativas que ensinam ioga e
meditação e até acordam o usuário na fase mais leve do sono, a mais
propícia para o despertar.
Em vários casos, há um casamento dos aplicativos com outras tecnologias.
O objetivo, na maioria das vezes, é usar os tablets ou smartphones para
captar imagens ou indicadores como pressão arterial e batimentos
cardíacos e encaminhar os dados para o médico. Muitas dessas opções
estão sendo usadas por portadores de doenças crônicas. Há, por exemplo,
sistemas indicados para os diabéticos, que necessitam acompanhar as
oscilações das taxas de açúcar no sangue (glicemia). Em Minas Gerais,
está em teste um dispositivo no qual o paciente insere os números das
medições automaticamente no aparelho. Depois, basta colocá-lo na tomada
para que os dados sejam enviados para o computador do médico.
“Avaliamos, em tempo real, o que está acontecendo e se for preciso
ajustamos as medicações”, diz o endocrinologista Gustavo Penna, criador
do sistema.
FUTURO
Na USP, cientistas criam opções de transmissão de dados
Iniciativas como essas estão mostrando eficiência. Um estudo com 163
pacientes acompanhados na Universidade de Maryland (EUA) revelou que os
que usaram aplicativo criado pela instituição para monitorar a glicemia
reduziram a glicemia em quase dois pontos quando comparados aos que não
utilizaram a novidade. “Dizemos aos pacientes que eles podem controlar a
doença com exercícios físicos, medicamentos e dieta”, diz a
epidemiologista Charlene Quinn, que comandou a pesquisa. “Agora, o
sistema o ajuda a acompanhar como isso acontece.”
Entre os recursos para diagnóstico está um acessório que, acoplado ao
smartphone, vira um aparelho de ultrassom. Além de realizar imagens de
um feto, ele localiza aneurismas abdominais e pedras nos rins. “Estamos
buscando autorização para comercializá-lo em outros países, inclusive o
Brasil”, disse à ISTOÉ David Mazar, CEO da Mobisante, empresa que criou o
produto.
Uma das maiores vantagens de sistemas como esse é possibilitar o
diagnóstico a distância. Uma iniciativa que aproveitou bem esse
potencial é o EyeNetra, aparelho que, ligado ao celular, calcula o grau
de miopia ou astigmatismo e avalia a presença de catarata. Desenvolvido
pelo indiano Ramesh Raskar, do Massachusetts Institute of Technology
(EUA), e pelo brasileiro Vitor Pamplona, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, o equipamento foi testado em Teresina e em Porto Alegre.
“Ele permite fazer diagnósticos em áreas remotas”, diz o oftalmologista
Paulo Schorr, vice-presidente do Instituto da Visão, da Universidade
Federal de São Paulo. “E o sistema é tão eficaz quanto os testes
convencionais”, assegura Pamplona.
Aplicativos específicos para médicos, com informações sobre doenças e
remédios, por exemplo, também estão ajudando a melhorar o sistema de
saúde. No Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, há um mês foram
distribuídos 48 iPads a residentes. Nos tablets, há aplicativos como o
Up to Date, por meio do qual os jovens médicos ficam sabendo das
novidades em tratamentos. “Vemos tudo o que sai de novo, o que está em
teste”, explica Miguel Nassif, um dos que receberam o tablet. “É uma
biblioteca que levamos para onde quisermos. Tem acesso fácil a conteúdo
confiável e atualizado.”
Na Universidade de Chicago (EUA), um levantamento com 115 residentes
mostrou que 90% usam tablets constantemente em consultas e 78% acreditam
que a tecnologia os torna mais eficientes. “A tecnologia agiliza o
trabalho desses médicos, que precisam coletar e acessar informações em
um curto espaço de tempo”, diz Christopher Chapman, chefe de residência
da instituição americana.
Entre os profissionais mais tarimbados, consultar o smartphone ou o
tablet também virou parte da rotina. O cardiologista Múcio Oliveira,
diretor de emergência do InCor, usa o Epocrates (tem dados de doenças,
drogas e exames) e um aplicativo que faz cálculo de risco, o Qx
Calculate. “Ele ajuda a tomar decisões.”
Embalado pelo potencial da nova área, o médico residente Ricardo
Maranhão, do Recife, criou um aplicativo com a Classificação Estatística
Internacional de Doenças, conhecida como CID-10. Foi por meio desse
recurso, com mais 50 mil downloads, que o Conselho Federal de Medicina o
contatou para desenvolver o Código de Ética Médica e o Diretrizes do
Crack, que auxiliará no atendimento a dependentes. “Fiz esses
aplicativos pensando na minha necessidade e eles tiveram um alcance que
eu não imaginava”, contou.
O aplicativo Medicamentos de A a Z – que reúne 500 medicamentos com
informações que incluem preço, nomes comerciais, genéricos e posologia
–, da empresa Touché Mobile, também é um sucesso entre os médicos e
pacientes, registrando mais de 40 mil downloads. “Ele é útil porque
agiliza a comparação de preços e informações, que ficam disponíveis lado
a lado na tela”, afirma Roberto Colnaghi, dono da empresa.
A força do fenômeno está fazendo com que universidades no mundo todo
comecem a construir centros especializados em m-Health, de olho em um
futuro promissor. Um estudo da Associação Internacional de Operadoras de
Celular prevê, por exemplo, que a saúde estará totalmente integrada à
tecnologia móvel em 2027, gerando um mercado de mais de US$ 23 bilhões.
No Vale do Silício, berço de empresas como o Google, foi inaugurado o
Centro de Computação do Corpo na Universidade do Sul da Califórnia. A
parceria já rendeu aplicativos promissores. Um deles possibilita que os
usuários verifiquem sua capacidade respiratória ao soprar no microfone
do smartphone – é indicado para quem tem doenças respiratórias.
No Brasil, a Escola Politécnica, da Universidade de São Paulo, acaba de
criar o Centro Interdisciplinar de Tecnologias Integrativas. Ali, 60
estudantes de vários Estados do Brasil estão criando o futuro. “Muitos
projetos estão a caminho”, diz o coordenador Marcelo Zuffo. Um deles é o
desenvolvimento de roupas com sensores que registram sinais a serem
transmitidos em tempo real a centrais médicas. “A proposta é que os
doentes sejam monitorados por sensores de temperatura”, diz Adilson
Hira, gerente de projetos do laboratório. Trata-se de um artefato que
poderá ajudar, por exemplo, a identificar sintomas iniciais de infecções
em crianças em tratamento contra o câncer – infecções estão entre as
principais ameaças de morte imediata a esses pacientes.
O uso de recursos do gênero está mudando tanto a face da medicina que
despertou uma discussão interessante. Por conta do que oferecem aos
pacientes, há quem argumente que os sistemas da m-Health sejam uma
espécie de “remédio”. Não é à toa que, nos Estados Unidos, eles já estão
na mira do FDA. “Talvez seja com alguma surpresa que desenvolvedores
verão que nos próximos anos muitos de seus aplicativos terão de ser
aprovados pelo FDA antes de serem comercializados”, diz um documento
publicado pela instituição no fim de 2011. No Brasil, porém, a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária ainda não prevê regulação sobre o
setor.