4.05.2012

Memórias de infância. Você tem?


Acordei num quarto de hotel que não era o nosso.  Achei que estava sozinha, por uns instantes, até minha madrinha aparecer. Meus pais e irmãos tinham saído para um passeio. Fiquei. Quando descobri, chorei. Estávamos em Barbacena (MG). 1978.
 O carrinho branco de bolas azuis descia sacolejando as escadas da varanda da casa. Alguém me levava para passear. Eu tinha dois? Três anos?
 Meu corpinho magro e leve boiava na correnteza da piscina redonda armada no quintal de casa. As nuvens no céu passavam rápidas sobre mim – ou eu sob elas. Às vezes alguém parava na frente, e eu atropelava na inércia. Meus irmãos e minhas primas mais velhas faziam a água girar. Eu era café-com-leite e me deixava arrastar. Eu devia ter uns quatro anos.
 Eu acordava animadíssima, antes do sol raiar. Estava escuro ainda lá fora quando meu pai começava a arrumar o bagageiro da Brasília azul com nossas malas. Mamãe fazia meu nescau e preparava o lanche para o longo caminho. A gente ia viajar, e antes de começar, o carro já tinha cheiro “de viagem”. Eu enjoava, e não entendia por que a estrada fazia tantas curvas até Lambari(MG). Eu era muito pequena.
 Memórias de infância sempre me intrigaram. Eu queria lembrar mais, porém tenho que me contentar com cenas que aparecem na minha mente como flashes. Movida por minhas curiosidades, fiz algumas (poucas) pergundas ao psicanalista carioca Luiz Alberto Py. Ele me explicou que são muitos (e difusos) os fatores que farão com que a gente se lembre de algo, esqueça outros fatos, mas é certo que tudo, tudinho, ele afirma, vem à tona numa sessão de hipnose. Quer dizer, a gente até acha que nada ficou, mas está tudo lá, registrado no nosso inconsciente. Esse tema me fascina, só que não vai dar para esgotá-lo, nem começar a aprofundá-lo, neste post. Leia só algumas explicações.
Por que é tão difícil acessar esses registros? Qual a lembrança mais remota que se pode ter?
 “Varia muito. Tem gente com lembrança do berço ainda, mas a verdade é que a memória está lá, e é possível acessá-la em estado hipnótico. Vem tudo”, diz o psicanalista carioca Luiz Alberto Py.
 É mais fácil ficar com o registro de momentos traumáticos?
“Não, isso não é verdade. A memória é seletiva, mas não necessariamente para a dor”, diz Luiz Alberto Py.
De que forma o registro do que aconteceu na infância vai influenciar na relação com os pais?
“Vai influenciar em toda relação.  Como psicanalista vejo que pessoas submetidas a determinadas situações das quais não lembram reagem em função daquilo que viveram. Por exemplo: há estudos comprovando que pessoas claustrofóbicas, a maioria delas, passaram por um parto demorado. Outras que passaram fome durante o aleitamento tendem à voracidade, a gula é algo arraigado demais. É a prova da permanência da memória, mesmo quando ela não é consciente”, diz Py.
Eu me pergunto muito sobre o que restará na memória das minhas pequenas filhas sobre esse tempo de intensa dedicação. Das gargalhadas ou das broncas? Das ausências ou da presença até em noites em claro? Dos castelos que construímos e desmontamos a oito mãos ou daquela vez em que a gente viajou e deixou as duas sob cuidados da avó? (ó culpa, culpa…) Do que, afinal, elas se lembrarão?
A memória é curiosa, construída pelo que nos contam e pelo que carregamos. Chega uma hora que tudo se mistura. Por isso, eu posso até nunca saber que episódios a consciência das minhas filhas escolherá para reter, nem por que motivos, mas uma certeza eu tenho. Minhas filhas e quase todas as crianças que conhecemos são parte de uma geração privilegiada em registros da própria  história.
Blogs, fotos digitais, câmeras no celular…nunca foi tão fácil registrar detalhes do presente. O registro é uma vantagem valiosa na construção de uma memória. Municiados de arquivos variados de si mesmos, eles terão à disposição um imenso acervo da vida que passou, sob a perspectiva de pais, tios, avós, primos e amigos. E se desconfiarem da fonte, poderão até confrontar pontos de vista diferentes de um mesmo acontecimento.  O passado dessas crianças será um gigantesco e singular quebra-cabeças que, mesmo sem determinadas peças, oferecerá uma rica paisagem delas mesmas.
Enfim, o que me consola é que elas poderão até não lembrar de muita coisa, mas certamente saberão mais da própria história.
Carol saberá que, com 1 ano e 3 meses, ela pedia pra “zenhar” (desenhar) e adorava cantar. Saberá também que chorava desconsolada quando a irmã ia para a escola, mas não abria o mesmo berreiro se fosse ela a deixar a casa para trás. Saberá que o pai entrou inúmeras vezes em seu quarto só para observá-la dormir e que a gente se divertia pra valer com suas pequenas descobertas.
Letícia saberá que o pai retornou voando e antecipadamente de uma viagem a Belém só para vê-la dançar balé. Saberá também que, aos dois anos, ela tinha um rico vocabulário na língua do T. Reclamava de ficar só no “tarto” (quarto), ficava feliz de chegar em “tasa” e nos convidada sempre a brincar “tomigo”. E saberá também que, num belo dia, ao ser questionada se era mesmo linda, respondeu negativamente com a cabeça e explicou por quê.
“Sô totosa”.*
E você, lembra de quê?
*essa cena impagável foi registrada por um celular. Não tô dizendo?

Isabel Clemente é editora de ÉPOCA no Rio de Janeiro.

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