Morre o maior arquiteto brasileiro, o
senhor das curvas que conferiu genialidade e beleza ao mundo com suas
obras espalhadas por todos os continentes
Eliane Lobato e Michel Alecrim
Relembre, em vídeo, a trajetória e algumas obras do homem que desenhou Brasília:
104 ANOS
Em 2012, Niemeyer passou por quatro internações.
Na última, não resistiu, mas virou imortal
"Sinto-me feliz com o reconhecimento de minha obra de arquiteto. Mas
sinto menos orgulho do que uma convicção íntima de que me dediquei ao
máximo à realização de uma arquitetura diferente, mais leve, capaz de
provocar surpresa aos que a conhecem. E que procurei ser solidário aos
amigos e à minha família, e manter uma coerência político-ideológica
diante deste mundo marcado por contradições intoleráveis. A vida é mais
importante do que a arquitetura. A vida, a mulher, a família, os amigos e
este mundo injusto que devemos modificar."
O arquiteto Oscar Niemeyer sintetizou assim, em letras grandes,
soltas por folhas de papel em branco sem linhas, seu pensamento numa
entrevista à ISTOÉ – parte dela ao vivo, parte respondendo as perguntas à
mão – em 2002. Essa reflexão, que pode ser vista hoje como uma revisão
de sua própria história, resume o que era o “arquiteto do século”,
título que chancela a genialidade de suas obras espalhadas pelo mundo. A
tristeza, portanto, atravessa fronteiras. Niemeyer faleceu na
quarta-feira 5 de dezembro, no Rio de Janeiro, aos 104 anos, às 21h55,
após 34 dias internado no Hospital Samaritano, devido a uma infecção
respiratória.
"Quando uma forma cria beleza, tem na beleza a sua própria justificativa"
Niemeyer costumava dizer que não gostava de ângulos retos. Falava que
as retas foram criadas pelo homem e não têm caráter transformador. Por
essa razão, prefere as curvas, essas sim, dádivas da natureza, capazes
de dar beleza e leveza ao horizonte, aos leitos dos rios, e até ao corpo
humano. As curvas de Niemeyer transformaram a paisagem urbana,
inovaram, viraram escola e ganharam o mundo. O arquiteto introduziu as
curvas em nosso cotidiano e, por acreditar que elas podem sempre nos
conduzir a um lugar mais distante, viveu mais de 100 anos acreditando no
novo.
Morreu cercado da família e falando de trabalho até os últimos
momentos de lucidez, horas antes de falecer. Reverenciado em todo o
mundo, ganhou homenagens pelo Brasil. A presidenta Dilma Rousseff cedeu o
Palácio do Planalto, prédio projetado por ele, para o velório.
“Niemeyer foi um revolucionário, o mentor de uma nova arquitetura. O
Brasil perdeu um de seus gênios”, disse a presidenta, que ofereceu
honras de chefe de Estado ao maior arquiteto brasileiro. Pelo Salão
Branco do Planalto, onde até hoje foram velados apenas o presidente
Tancredo Neves e o vice-presidente José Alencar, passaram autoridades e
cerca de três mil pessoas.
HOMENAGEM
O corpo do arquiteto foi velado com honras de
chefe de Estado no Planalto, em Brasília
A simplicidade foi a marca de toda a vida do arquiteto. No escritório
na avenida Atlântica, em Copacabana, onde recebia gente de várias
nacionalidades. Os móveis eram elegantes, alguns desenhados por ele, mas
nada era luxuoso. Já sua casa na rua Prudente de Moraes, via de muito
trânsito e, por isso, das menos nobres de Ipanema, era um refúgio que só
abria aos mais amigos. A coerência entre o que pregava e como levava a
vida é indiscutível. Nunca ostentou, nunca exibiu sinais de riqueza. Na
arquitetura de suas curvas, conseguiu o que queria: realizar obras
belas, marcantes, democráticas, com espaços desenhados para o homem
circular à vontade. Espalhadas por várias cidades brasileiras e por
todos os continentes, elas tiveram impacto em várias gerações. “Seu
trabalho visionário teve uma influência profunda”, afirmou a arquiteta
iraquiana Zaha Hadid, vencedora do prestigiado Prêmio Pritzker. “Ele me
deu coragem para seguir minha própria arquitetura de total fluidez.”
Em Niterói (RJ), o Museu de Arte Contemporânea (MAC), parece uma nave
espacial sobre as águas. A estrutura suspensa no ar e apoiada por uma
fina base também leva à comparação com um cálice. Mas Niemeyer, ao
idealizar a obra, disse que pensou numa flor que se abre na encosta, às
margens da Baía de Guanabara. “Eu andei pelas rampas do museu. Elas são
quase como uma dança no espaço, convidando você a ver o prédio de vários
ângulos antes de entrar. É absolutamente mágico”, resumiu o arquiteto
inglês Norman Foster, também ganhador do Pritzker. “Poucas pessoas têm a
chance de conhecer seus heróis e sou grato por ter tido a oportunidade
de passar um tempo com ele no Rio no ano passado.”
Além de desafiar a imaginação, as criações do mestre da arquitetura
moderna têm em comum a capacidade de causar empatia imediata. Os traços
da vela de uma jangada podem ser vislumbrados nas colunas do Palácio da
Alvorada, em Brasília, e um olho humano salta a quem observa o museu que
leva seu nome em Curitiba. “De um traço nasce a arquitetura. E quando
ele é bonito e cria surpresa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o
nível superior de uma obra de arte”, definiu Niemeyer no livro “Conversa
de Arquiteto”. A ambição artística foi assim rendendo construções com
sua assinatura, que podem ser comparadas a imensas esculturas e se
destinam a um duplo papel: ser útil ao homem e embelezar o mundo.
A paisagem da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte ficou muito mais
bela com a instalação, na década de 1940, da Igreja de São Francisco de
Assis em formato de montanhas, as mesmas que despontam em Minas. A
paisagem de São Paulo, dominada pelas linhas retas, ficou mais
humanizada com o ondulado edifício Copan, da década de 1950, hoje um
cartão-postal da cidade. A Universidade de Constantine, na Argélia, é um
conjunto arquitetônico da capital do país africano elevado à condição
de arte. Um de seus prédios, feito em formato de livro, é um dos
principais encantos de Niemeyer fora do Brasil. Um universo curvo saiu
de sua prancheta para entrar no cotidiano das metrópoles. O arquiteto
franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), referência não só para o
brasileiro como para uma geração de profissionais no mundo, dizia que
Niemeyer tinha “as montanhas do Rio dentro dos olhos”.
MODELOS DE CURVAS
Prédios ícones do arquiteto: o Museu de Arte Contemporânea, em Niterói,
o edifício Copan, em São Paulo, e o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba
Carioca, Niemeyer dizia admirar o Rio sob todos os aspectos. Gostava
da forma alegre do povo, das praias – às quais raramente ia –, do samba,
da natureza exuberante. Da cidade onde nasceu, ele absorveu também a
proximidade entre a erudição e o popular, entre pobres e ricos. Neto do
ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Antonio Augusto Ribeiro de
Almeida (1838-1919), sua casa, no bairro das Laranjeiras, zona sul do
Rio, chegou a ser frequentada pelo ex-presidente Epitácio Pessoa
(1865-1942). A origem elitista não o impediu de fazer inúmeros amigos
nas rodadas de sinuca do Café Lamas, no largo do Machado, na mesma
região, ou nas noitadas da Lapa, no Centro. Outra paixão da juventude do
arquiteto foi o futebol. Quase jogou no Flamengo, mas ingressou mesmo
foi no juvenil do Fluminense, onde os negros entravam pela porta dos
fundos e tinham que se maquiar de brancos, para profundo desgosto dele,
que depois se tornaria um comunista convicto até o fim da vida.
"O que me chama atenção é a curva livre e sensual"
A boemia aproximou Niemeyer do povo, mas o afastou dos estudos. Só
com 21 anos ele ingressou na Escola Nacional de Belas Artes para cursar
arquitetura, apesar de demonstrar talento para o desenho desde criança.
“Nos primeiros anos de escola, pouco compareci às aulas. Ajudava meu pai
na tipografia e somente nas horas de folgas podia frequentá-las. Mas em
pouco tempo os assuntos da arquitetura absorviam-me inteiramente”,
contou Niemeyer. Já casado com Annita Baldo, com quem conviveu até a
morte dela, em 2004, ele passou sua época de vacas magras.
Formado, trabalhou com o urbanista Lúcio Costa (1902-1998). O
escritório ganhou do ministro Gustavo Capanema a incumbência de projetar
a nova sede do Ministério da Educação e Saúde. Sob a batuta do
experiente Costa, ele teve seu croqui elogiado pelo consultor do
projeto, Le Corbusier. Nele, surgiam os famosos pilotis do prédio, que
se tornaram um marco do modernismo no Brasil. A mesma característica já
estava presente no prédio da Obra do Berço, instituição filantrópica, na
Lagoa Rodrigo de Freitas, o primeiro trabalho individual de Niemeyer.
“Curioso, fiz um croqui diferente, em função do primeiro estudo de Le
Corbusier. Carlos Leão (outro arquiteto do escritório) gostou da
solução, Lúcio quis vê-la e eu, que nenhuma pretensão tinha de mudar o
projeto em execução, joguei o croqui pela janela. Lúcio mandou buscá-lo e
o adotou. Nesse momento, senti que não seria um arquiteto medíocre, que
compreendia a arquitetura contemporânea e nela podia atuar
corajosamente”, revelou Niemeyer no livro “Oscar Niemeyer”, do
jornalista Marcos Sá Corrêa.
Em 1940, ele conheceu o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino
Kubitschek (1902-1976), que o convidou para projetar o conjunto da lagoa
da Pampulha, marco na carreira de Niemeyer. Ele ganhou projeção e,
pouco depois, participou da construção da sede das Nações Unidas, em
Nova York. O secretário-geral da ONU Ban Ki-moon lamentou o sua morte:
“O que fez dele um excelente arquiteto não foi apenas o seu vigor e
talento. Ele imbuiu seu trabalho com um forte senso de humanismo e
engajamento global”, afirmou. O maior desafio, porém, ainda estava por
vir.
Eleito presidente, Kubitschek o convidou para construir, do nada, a
nova capital federal. Mesmo filiado ao Partido Comunista Brasileiro
(PCB) desde 1945, Niemeyer tinha carta branca para executar suas ideias
mirabolantes – e a maior delas foi mesmo as colunas com pontas finas dos
palácios da Alvorada, do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Naquela época, o voo do Rio para Brasília levava três horas. Na primeira
viagem de Kubitschek, ele foi junto. Sentou-se ao lado do ministro da
Guerra, o general Henrique Teixeira Lott, que lhe disse: “Dr. Niemeyer, o
senhor vai projetar prédios bem clássicos para nós, não é?” Ele
respondeu: “General, o senhor, na guerra, prefere arma clássica ou
moderna?”
NOVOS HORIZONTES
O Palácio da Alvorada, a Catedral de Brasília e o complexo da Pampulha, em Minas
Apesar da proximidade com os políticos e de ser o autor dos projetos
que viraram símbolos das instituições brasileiras, o comunismo declarado
de Niemeyer sempre incomodou os militares. Nunca foi preso, mas foi
chamado a depor diversas vezes, inclusive antes do golpe de 1964. Depois
que os generais tomaram o poder, sua vida ficou mais difícil. A revista
“Módulo”, fundada por ele em 1955, foi saqueada. O projeto para o
aeroporto de Brasília, rejeitado. Niemeyer pediu demissão da
Universidade de Brasília em reação às interferências do regime. A saída
foi o exílio na França, a partir de 1967. Na semana passada, o
presidente francês François Hollande lembrou da ligação do arquiteto com
o país que o acolheu. “Ele tinha uma relação privilegiada com a França,
não apenas porque construiu vários edifícios cuja modernidade e
originalidade causavam espanto aos visitantes, mas também porque ele
morou aqui enquanto esteve exilado”, disse.
"Tanto faz ser feliz ou infeliz, a vida é um sopro, um minuto"
O retorno, aos 72 anos, estava longe de marcar a aposentadoria do
maior arquiteto brasileiro. Quando chegou, Niemeyer iniciou nova fase de
vasta produção, já instalado em seu escritório no topo do edifício
Ypiranga, onde deu expediente até quando pôde. Mesmo com idade avançada,
trabalhou intensamente. Niemeyer produziu até o final e assinou ao
longo da carreira mais de 130 projetos, dos quais um terço nunca saiu do
papel, como um centro de música para a cidade do Rio. Além da
arquitetura, lançou o romance “Diante do Nada”, em 1999. Dedicou-se
também ao design de móveis, à pintura e à escultura.
O comunismo ferrenho de Niemeyer acabou ganhando um tom anedótico. O
próprio ex-presidente cubano Fidel Castro, de quem o brasileiro era
amigo, se referiu aos dois como os últimos comunistas do mundo. O
arquiteto nunca deixou de elogiar o ditador soviético Joseph Stalin
(1878-1953), acusado de uma série de crimes no período em que governou o
país. Quando o regime estava ruindo, em 1991, publicou polêmico artigo
defendendo ação de militares linha-dura que tentaram reverter o fim da
União Soviética. A oposição ao impeachment do ex-presidente Fernando
Collor, em 1992, também causou espanto. Niemeyer sempre justificou suas
posições na coerência e se orgulhou de se manter fiel às suas
convicções. Mas o trabalho não se misturava aos ideais. O fato de ser
ateu não o impediu de projetar quatro igrejas católicas, uma mesquita,
um templo da Igreja Universal do Reino de Deus e a Catedral de Brasília,
além de diversas capelas. Mesmo comunista, elaborou o projeto de várias
mansões e da sede de quatro bancos.
Em 2006, com quase 100 anos, Niemeyer casou-se pela segunda vez com
sua secretária, Vera Lúcia Cabreira. O arquiteto só teve uma filha de
seu primeiro casamento, Anna Maria, com quem trabalhou no design de
móveis. Ela faleceu em junho, aos 82 anos. Embora idolatrado, Niemeyer
também foi alvo de críticas, principalmente por fazer obras que deixavam
a funcionalidade em segundo plano. Ora faltava um corrimão para uma
escada, ora era o espaço para o ar-condicionado não previsto, ora era a
ausência de paisagismo. A própria opção pelas formas curvas e pelas
estruturas que se sobrepõem à utilidade encontrou opositores. Aos
críticos, sempre tinha uma resposta: “Quando uma forma cria beleza, tem
na beleza a sua própria justificativa.”
Colaboraram: Mariana Brugger, Tamara Menezes, Wilson Aquino e Izabelle Torres
Fotos: Adriano Machado; Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press;
JAMIL BITTAR; MARCELO SAYAO; Julio Alcantara/CB/D.A Press; Ichiro
Guerra; Florian Knorn; Rene Burri / Magnum; JUAN ESTEVES