12.08.2012

O século de Oscar Niemeyer

Morre o maior arquiteto brasileiro, o senhor das curvas que conferiu genialidade e beleza ao mundo com suas obras espalhadas por todos os continentes

Eliane Lobato e Michel Alecrim

Relembre, em vídeo, a trajetória e algumas obras do homem que desenhou Brasília:
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104 ANOS
Em 2012, Niemeyer passou por quatro internações.
Na última, não resistiu, mas virou imortal
"Sinto-me feliz com o reconhecimento de minha obra de arquiteto. Mas sinto menos orgulho do que uma convicção íntima de que me dediquei ao máximo à realização de uma arquitetura diferente, mais leve, capaz de provocar surpresa aos que a conhecem. E que procurei ser solidário aos amigos e à minha família, e manter uma coerência político-ideológica diante deste mundo marcado por contradições intoleráveis. A vida é mais importante do que a arquitetura. A vida, a mulher, a família, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar."
O arquiteto Oscar Niemeyer sintetizou assim, em letras grandes, soltas por folhas de papel em branco sem linhas, seu pensamento numa entrevista à ISTOÉ – parte dela ao vivo, parte respondendo as perguntas à mão – em 2002. Essa reflexão, que pode ser vista hoje como uma revisão de sua própria história, resume o que era o “arquiteto do século”, título que chancela a genialidade de suas obras espalhadas pelo mundo. A tristeza, portanto, atravessa fronteiras. Niemeyer faleceu na quarta-feira 5 de dezembro, no Rio de Janeiro, aos 104 anos, às 21h55, após 34 dias internado no Hospital Samaritano, devido a uma infecção respiratória.
"Quando uma forma cria beleza, tem na beleza a sua própria justificativa"
Niemeyer costumava dizer que não gostava de ângulos retos. Falava que as retas foram criadas pelo homem e não têm caráter transformador. Por essa razão, prefere as curvas, essas sim, dádivas da natureza, capazes de dar beleza e leveza ao horizonte, aos leitos dos rios, e até ao corpo humano. As curvas de Niemeyer transformaram a paisagem urbana, inovaram, viraram escola e ganharam o mundo. O arquiteto introduziu as curvas em nosso cotidiano e, por acreditar que elas podem sempre nos conduzir a um lugar mais distante, viveu mais de 100 anos acreditando no novo.
Morreu cercado da família e falando de trabalho até os últimos momentos de lucidez, horas antes de falecer. Reverenciado em todo o mundo, ganhou homenagens pelo Brasil. A presidenta Dilma Rousseff cedeu o Palácio do Planalto, prédio projetado por ele, para o velório. “Niemeyer foi um revolucionário, o mentor de uma nova arquitetura. O Brasil perdeu um de seus gênios”, disse a presidenta, que ofereceu honras de chefe de Estado ao maior arquiteto brasileiro. Pelo Salão Branco do Planalto, onde até hoje foram velados apenas o presidente Tancredo Neves e o vice-presidente José Alencar, passaram autoridades e cerca de três mil pessoas.
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HOMENAGEM
O corpo do arquiteto foi velado com honras de
chefe de Estado no Planalto, em Brasília 
A simplicidade foi a marca de toda a vida do arquiteto. No escritório na avenida Atlântica, em Copacabana, onde recebia gente de várias nacionalidades. Os móveis eram elegantes, alguns desenhados por ele, mas nada era luxuoso. Já sua casa na rua Prudente de Moraes, via de muito trânsito e, por isso, das menos nobres de Ipanema, era um refúgio que só abria aos mais amigos. A coerência entre o que pregava e como levava a vida é indiscutível. Nunca ostentou, nunca exibiu sinais de riqueza. Na arquitetura de suas curvas, conseguiu o que queria: realizar obras belas, marcantes, democráticas, com espaços desenhados para o homem circular à vontade. Espalhadas por várias cidades brasileiras e por todos os continentes, elas tiveram impacto em várias gerações. “Seu trabalho visionário teve uma influência profunda”, afirmou a arquiteta iraquiana Zaha Hadid, vencedora do prestigiado Prêmio Pritzker. “Ele me deu coragem para seguir minha própria arquitetura de total fluidez.”
Em Niterói (RJ), o Museu de Arte Contemporânea (MAC), parece uma nave espacial sobre as águas. A estrutura suspensa no ar e apoiada por uma fina base também leva à comparação com um cálice. Mas Niemeyer, ao idealizar a obra, disse que pensou numa flor que se abre na encosta, às margens da Baía de Guanabara. “Eu andei pelas rampas do museu. Elas são quase como uma dança no espaço, convidando você a ver o prédio de vários ângulos antes de entrar. É absolutamente mágico”, resumiu o arquiteto inglês Norman Foster, também ganhador do Pritzker. “Poucas pessoas têm a chance de conhecer seus heróis e sou grato por ter tido a oportunidade de passar um tempo com ele no Rio no ano passado.”
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Além de desafiar a imaginação, as criações do mestre da arquitetura moderna têm em comum a capacidade de causar empatia imediata. Os traços da vela de uma jangada podem ser vislumbrados nas colunas do Palácio da Alvorada, em Brasília, e um olho humano salta a quem observa o museu que leva seu nome em Curitiba. “De um traço nasce a arquitetura. E quando ele é bonito e cria surpresa, ela pode atingir, sendo bem conduzida, o nível superior de uma obra de arte”, definiu Niemeyer no livro “Conversa de Arquiteto”. A ambição artística foi assim rendendo construções com sua assinatura, que podem ser comparadas a imensas esculturas e se destinam a um duplo papel: ser útil ao homem e embelezar o mundo.
A paisagem da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte ficou muito mais bela com a instalação, na década de 1940, da Igreja de São Francisco de Assis em formato de montanhas, as mesmas que despontam em Minas. A paisagem de São Paulo, dominada pelas linhas retas, ficou mais humanizada com o ondulado edifício Copan, da década de 1950, hoje um cartão-postal da cidade. A Universidade de Constantine, na Argélia, é um conjunto arquitetônico da capital do país africano elevado à condição de arte. Um de seus prédios, feito em formato de livro, é um dos principais encantos de Niemeyer fora do Brasil. Um universo curvo saiu de sua prancheta para entrar no cotidiano das metrópoles. O arquiteto franco-suíço Le Corbusier (1887-1965), referência não só para o brasileiro como para uma geração de profissionais no mundo, dizia que Niemeyer tinha “as montanhas do Rio dentro dos olhos”.
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MODELOS DE CURVAS
Prédios ícones do arquiteto: o Museu de Arte Contemporânea, em Niterói,
o edifício Copan, em São Paulo, e o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba
Carioca, Niemeyer dizia admirar o Rio sob todos os aspectos. Gostava da forma alegre do povo, das praias – às quais raramente ia –, do samba, da natureza exuberante. Da cidade onde nasceu, ele absorveu também a proximidade entre a erudição e o popular, entre pobres e ricos. Neto do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Antonio Augusto Ribeiro de Almeida (1838-1919), sua casa, no bairro das Laranjeiras, zona sul do Rio, chegou a ser frequentada pelo ex-presidente Epitácio Pessoa (1865-1942). A origem elitista não o impediu de fazer inúmeros amigos nas rodadas de sinuca do Café Lamas, no largo do Machado, na mesma região, ou nas noitadas da Lapa, no Centro. Outra paixão da juventude do arquiteto foi o futebol. Quase jogou no Flamengo, mas ingressou mesmo foi no juvenil do Fluminense, onde os negros entravam pela porta dos fundos e tinham que se maquiar de brancos, para profundo desgosto dele, que depois se tornaria um comunista convicto até o fim da vida.
"O que me chama atenção é a curva livre e sensual"
A boemia aproximou Niemeyer do povo, mas o afastou dos estudos. Só com 21 anos ele ingressou na Escola Nacional de Belas Artes para cursar arquitetura, apesar de demonstrar talento para o desenho desde criança. “Nos primeiros anos de escola, pouco compareci às aulas. Ajudava meu pai na tipografia e somente nas horas de folgas podia frequentá-las. Mas em pouco tempo os assuntos da arquitetura absorviam-me inteiramente”, contou Niemeyer. Já casado com Annita Baldo, com quem conviveu até a morte dela, em 2004, ele passou sua época de vacas magras.
Formado, trabalhou com o urbanista Lúcio Costa (1902-1998). O escritório ganhou do ministro Gustavo Capanema a incumbência de projetar a nova sede do Ministério da Educação e Saúde. Sob a batuta do experiente Costa, ele teve seu croqui elogiado pelo consultor do projeto, Le Corbusier. Nele, surgiam os famosos pilotis do prédio, que se tornaram um marco do modernismo no Brasil. A mesma característica já estava presente no prédio da Obra do Berço, instituição filantrópica, na Lagoa Rodrigo de Freitas, o primeiro trabalho individual de Niemeyer. “Curioso, fiz um croqui diferente, em função do primeiro estudo de Le Corbusier. Carlos Leão (outro arquiteto do escritório) gostou da solução, Lúcio quis vê-la e eu, que nenhuma pretensão tinha de mudar o projeto em execução, joguei o croqui pela janela. Lúcio mandou buscá-lo e o adotou. Nesse momento, senti que não seria um arquiteto medíocre, que compreendia a arquitetura contemporânea e nela podia atuar corajosamente”, revelou Niemeyer no livro “Oscar Niemeyer”, do jornalista Marcos Sá Corrêa.
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Em 1940, ele conheceu o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek (1902-1976), que o convidou para projetar o conjunto da lagoa da Pampulha, marco na carreira de Niemeyer. Ele ganhou projeção e, pouco depois, participou da construção da sede das Nações Unidas, em Nova York. O secretário-geral da ONU Ban Ki-moon lamentou o sua morte: “O que fez dele um excelente arquiteto não foi apenas o seu vigor e talento. Ele imbuiu seu trabalho com um forte senso de humanismo e engajamento global”, afirmou. O maior desafio, porém, ainda estava por vir.
Eleito presidente, Kubitschek o convidou para construir, do nada, a nova capital federal. Mesmo filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1945, Niemeyer tinha carta branca para executar suas ideias mirabolantes – e a maior delas foi mesmo as colunas com pontas finas dos palácios da Alvorada, do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF). Naquela época, o voo do Rio para Brasília levava três horas. Na primeira viagem de Kubitschek, ele foi junto. Sentou-se ao lado do ministro da Guerra, o general Henrique Teixeira Lott, que lhe disse: “Dr. Niemeyer, o senhor vai projetar prédios bem clássicos para nós, não é?” Ele respondeu: “General, o senhor, na guerra, prefere arma clássica ou moderna?”
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NOVOS HORIZONTES
O Palácio da Alvorada, a Catedral de Brasília e o complexo da Pampulha, em Minas
Apesar da proximidade com os políticos e de ser o autor dos projetos que viraram símbolos das instituições brasileiras, o comunismo declarado de Niemeyer sempre incomodou os militares. Nunca foi preso, mas foi chamado a depor diversas vezes, inclusive antes do golpe de 1964. Depois que os generais tomaram o poder, sua vida ficou mais difícil. A revista “Módulo”, fundada por ele em 1955, foi saqueada. O projeto para o aeroporto de Brasília, rejeitado. Niemeyer pediu demissão da Universidade de Brasília em reação às interferências do regime. A saída foi o exílio na França, a partir de 1967. Na semana passada, o presidente francês François Hollande lembrou da ligação do arquiteto com o país que o acolheu. “Ele tinha uma relação privilegiada com a França, não apenas porque construiu vários edifícios cuja modernidade e originalidade causavam espanto aos visitantes, mas também porque ele morou aqui enquanto esteve exilado”, disse.
"Tanto faz ser feliz ou infeliz, a vida é um sopro, um minuto"
O retorno, aos 72 anos, estava longe de marcar a aposentadoria do maior arquiteto brasileiro. Quando chegou, Niemeyer iniciou nova fase de vasta produção, já instalado em seu escritório no topo do edifício Ypiranga, onde deu expediente até quando pôde. Mesmo com idade avançada, trabalhou intensamente. Niemeyer produziu até o final e assinou ao longo da carreira mais de 130 projetos, dos quais um terço nunca saiu do papel, como um centro de música para a cidade do Rio. Além da arquitetura, lançou o romance “Diante do Nada”, em 1999. Dedicou-se também ao design de móveis, à pintura e à escultura.
O comunismo ferrenho de Niemeyer acabou ganhando um tom anedótico. O próprio ex-presidente cubano Fidel Castro, de quem o brasileiro era amigo, se referiu aos dois como os últimos comunistas do mundo. O arquiteto nunca deixou de elogiar o ditador soviético Joseph Stalin (1878-1953), acusado de uma série de crimes no período em que governou o país. Quando o regime estava ruindo, em 1991, publicou polêmico artigo defendendo ação de militares linha-dura que tentaram reverter o fim da União Soviética. A oposição ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, também causou espanto. Niemeyer sempre justificou suas posições na coerência e se orgulhou de se manter fiel às suas convicções. Mas o trabalho não se misturava aos ideais. O fato de ser ateu não o impediu de projetar quatro igrejas católicas, uma mesquita, um templo da Igreja Universal do Reino de Deus e a Catedral de Brasília, além de diversas capelas. Mesmo comunista, elaborou o projeto de várias mansões e da sede de quatro bancos.
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Em 2006, com quase 100 anos, Niemeyer casou-se pela segunda vez com sua secretária, Vera Lúcia Cabreira. O arquiteto só teve uma filha de seu primeiro casamento, Anna Maria, com quem trabalhou no design de móveis. Ela faleceu em junho, aos 82 anos. Embora idolatrado, Niemeyer também foi alvo de críticas, principalmente por fazer obras que deixavam a funcionalidade em segundo plano. Ora faltava um corrimão para uma escada, ora era o espaço para o ar-condicionado não previsto, ora era a ausência de paisagismo. A própria opção pelas formas curvas e pelas estruturas que se sobrepõem à utilidade encontrou opositores. Aos críticos, sempre tinha uma resposta: “Quando uma forma cria beleza, tem na beleza a sua própria justificativa.”
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Colaboraram: Mariana Brugger, Tamara Menezes, Wilson Aquino e Izabelle Torres
Fotos: Adriano Machado; Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press; JAMIL BITTAR; MARCELO SAYAO; Julio Alcantara/CB/D.A Press; Ichiro Guerra; Florian Knorn; Rene Burri / Magnum; JUAN ESTEVES

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