9.30.2019

Carta da Asfoc ao Ministro da Saúde

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Senhor Ministro,

 

Parabenizamos V.Exa. pela assunção ao importante cargo de Ministro da Saúde do Brasil e manifestamos nossos votos de sucesso na implantação e no aprimoramento da estrutura de promoção e defesa da saúde requisitada pelo quadro epidemiológico e sanitário do país.

 

Escrevemos a V.Exa. no intuito de inaugurar um canal de diálogo que tenha como foco o aprimoramento das condições de promoção e defesa da saúde da sociedade. Temos um amplo leque de temas de interesse que gostaríamos de debater. Entretanto, chamamos sua atenção para uma questão que requer urgência diante da possibilidade de esgotamento de prazo legal. Nos referimos à formalização da incorporação dos aprovados no último concurso. Solicitamos de forma mais imediata a emissão de Aviso Ministerial em apoio à autorização pelo Ministério da Economia.

 

Gostaríamos também de, em próxima oportunidade de audiência, apresentar a V.Exa. uma pauta mais ampla de interesse dos seus servidores e da saúde pública do país.

 

Encaminhamos ainda um posicionamento inicial da Diretoria Executiva Nacional do Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública (Asfoc-SN, também reconhecido como Sindicato dos Trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz) com objetivo de estabelecer uma linha de diálogo que tenha como foco a elevação dos padrões qualitativos e quantitativos da saúde pública do país, tanto em termos de ampliação da cobertura da atenção como da construção e atualização das plataformas institucionais, cientificas, tecnológicas, educacionais e de serviços que contribuam para o provimento de oportunidades iguais e de condições de vida digna para todos.

 

Nessa perspectiva, tomamos a liberdade de apresentar a V.Exa. a nossa visão sobre a conjuntura que impacta a área da saúde pública em nosso país. Desde já, destacamos nossa extrema preocupação com a eventual desvinculação das receitas destinadas à saúde e outras áreas de atenção social, em alternativa à não aprovação da reforma da Previdência, conforme adiantou o ministro Paulo Guedes, em recente entrevista aos meios de comunicação. A regulamentação da Emenda Constitucional nº 29/2000, sancionada 12 anos depois, definindo o investimento obrigatório em saúde de 12% da receita corrente líquida para estados e 15% para os municípios, foi uma conquista árdua de se obter.

 

Lembramos que o Sistema Único de Saúde já sente os reflexos negativos da Emenda Constitucional n° 95, que não considera as variações demográficas e condicionantes como a inflação médica e a flutuação cambial, elementos que afetam fortemente a dinâmica o setor saúde. Preocupa-nos o comprometimento da capacidade do Sistema Único de Saúde de comprimir com a norma constitucional que coloca a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado.

 

Como é de amplo conhecimento, os trabalhadores da Fundação Oswaldo Cruz guardam em si forte sentimento de espirito público e comprometimento com a promoção e a defesa da saúde da população brasileira. Por força do conceito de saúde que adotamos, estamos comprometidos também com a construção de um projeto civilizatório para o país. Um projeto soberano e inclusivo que tenha o bem-estar da sociedade como objetivo central e prioritário do desenvolvimento. 

 

Acreditamos que o primeiro e principal dever do Estado é a defesa da vida e do bem-estar social.  Acreditamos igualmente que o Estado tem um papel estratégico insubstituível na promoção do desenvolvimento socioeconômico do país. Especialmente nas áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia que, juntamente com a indústria, reputamos como fundamentais para a obtenção de oportunidade e condições de vida dignas para todos. Compreendemos que uma articulação eficiente - como prevê o conceito de Complexo Econômico e Industrial da Saúde - entre as políticas de saúde, educação, ciência, tecnologia e industrialização podem alavancar processos de crescimento econômico, reduzir déficits na balança comercial, criar empregos e plataformas de desenvolvimento autônomo e sustentável.

 

A integração de mercados trouxe consigo uma série de desafios relativos tanto às formas e velocidades de propagação das doenças, como aos mecanismos de produção do conhecimento, e de promoção e atenção à saúde. Atualmente, além das questões acarretadas pela ampliação das chamadas áreas de risco e pela reaparição e o recrudescimento de antigas doenças até então tidas sob controle, a saúde pública se vê frente ao desafio de combater patologias emergentes sobre as quais, muitas vezes, não há ainda conhecimentos suficientes e estruturas organizacionais ágeis e capazes de orientar a formulação de respostas e a implementação de ações de combate mais eficazes.

 

As péssimas condições de moradia da maioria das habitações populares, o armazenamento de alimentos, o lixo, a presença de esgoto não tratado e o cinturão de miséria que marca grande parte das periferias dos centros urbanos acabaram por transformar as cidades em verdadeiros celeiros de agentes nocivos ao homem. Um sobrevoo sobre os centros urbanos nacionais é o bastante para mostrar o oceano de favelas que cerca a maior parte das cidades brasileiras. São milhões de pessoas vivendo em meio a focos de doenças, em habitações precárias e inseguras, não atendidas por serviços de saneamento, fornecimento de água tratada e outros elementos de infraestrutura considerados básicos.

 

A globalização e os processos que a têm acompanhado contribuíram também para a promoção de significativas alterações nos padrões de comportamento das doenças e para a diversificação dos riscos à saúde pública. Aumentaram de modo expressivo a pobreza, a rapidez de disseminação e o alcance geográfico das ameaças à saúde.

 

Testemunhamos, a um só tempo, o crescimento de enfermidades crônico-degenerativas e de doenças transmissíveis. Doenças e problemas derivados do crescimento da pobreza e de novos hábitos de vida também vêm se universalizando. Obesidade, tabagismo, alcoolismo, trânsito, violência, estresse, envenenamento por consumo de agrotóxicos, uso de drogas ilícitas, fome, inadequação alimentar, abusos de medicamentos e depressão assumem dimensões epidêmicas, ganhando relevância no conjunto de fatores que impactam os índices de morbidade e mortalidade de diferentes países. Ao lado disso, vírus e bactérias têm se tornado mais resistentes aos tratamentos disponíveis, ao mesmo tempo em que modificam suas formas e modos de interação com o meio, dificultando o seu controle.

 

Os resultados do processo de globalização têm demonstrado, portanto, a necessidade de enquadramento da saúde como uma parte inegociável do desenvolvimento e da busca por relações internacionais mais simétricas. Têm demonstrado também que a saúde pública é uma área de atenção estratégica essencial para o bem-estar das populações, para a segurança dos países e para o bom desempenho da economia.

 

A configuração do mercado de vacinas e medicamentos demonstra que, também nesse âmbito, a integração econômica possibilitada pelo processo de globalização ampliou a assimetria entre as nações desenvolvidas e os demais países e trouxe consigo mais problemas do que soluções.

 

Impõe-se, invariavelmente, a liberdade de movimentação para o capital, a aplicação do acordo internacional de proteção à propriedade intelectual (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights -TRIPS), a desregulamentação da economia e a redução de direitos sociais. Por outro lado, os ganhos de produtividade têm sido apropriados exclusivamente pela elite econômica, gerando desemprego e concentração de renda. Mesmo em face da sua enorme capacidade de gerar crises, o mercado é visto com o melhor alocador de recursos. Fala-se em Estado mínimo até mesmo onde tudo falta, inclusive mercado.

 

No que toca especificamente aos sistemas de seguridade social e aos sistemas de atenção à saúde, podemos observar que os programas de ajuste econômico impostos pela agenda neoliberal em voga estão estimulando a fragmentação e a privatização desses sistemas, abrindo espaço para planos de saúde e de previdência privada controlados pelo capital financeiro. Uma circunstância que de acordo com alguns analistas podem estar por trás do aumento do número de suicídios entre idosos nos países, como o Chile e a Coréia do Sul, em que tais medidas foram adotadas. Para seus críticos, o sistema, além de não garantir uma aposentadoria digna para todos, sobrecarrega o trabalhador já que, de acordo com o modelo perseguido, o empregador e o Estado estariam isentos de contribuir para a formação dos fundos de pensão a serem criados.  

 

Segundo os opositores, o regime de capitalização tende a só atender aos interesses das Administradoras dos Fundos de Pensão que ficam livres para especular com recursos obtidos compulsoriamente da população. Para eles, a insatisfação e os problemas observados no sistema do Chile – pioneiro na adoção da capitalização para fins de aposentadoria - podem ser agravados em países como o Brasil, devido a condicionantes como o desemprego, a informalidade e precariedade do mercado de trabalho, que muitas vezes impossibilitam a formação de poupança para fins de aposentadoria.

 

Como já vem ocorrendo em muitas partes do mundo (incluindo o Brasil), a redução do alcance do Estado e o corte dos gastos e investimentos públicos, defendidos pelo pensamento dominante, tende a deixar desamparadas grandes parcelas dos contingentes populacionais dos países que, voluntária ou forçosamente, optarem pelas receitas econômicas recessivas propaladas pelos adeptos das políticas de austeridade como medida de combate ao déficit nas contas públicas.

 

Não há como negar que estamos diante de um processo de concentração de renda que tem avançado sobre os recursos da seguridade social em seu sentido mais amplo. Segundo analistas de renome internacional, a opção pela austeridade tem efeitos catastróficos, que vão muito além dos empregos e da renda perdida nos primeiros anos. Na verdade, segundo eles, as estimativas mais confiáveis apontam para danos de longo prazo suficientemente grandes e bastante sólidos para comprometer fortemente o futuro do país.  Para muitos, a adoção de tais políticas atende aos interesses daqueles que lucram com a rolagem das dívidas públicas e com a aquisição, a baixo custo, de ativos privatizados pelos Estados endividados.

 

É preciso esclarecer que, no nosso entendimento, a produção de déficits pode conviver, de modo funcional, com o conjunto da economia. Consideramos que déficits produzidos para fazer girar a economia podem ser sanados pelo retorno das receitas derivadas do aquecimento do mercado. Por outro lado, déficits originários de rolagem de dívidas e destinados, quase que exclusivamente, a remunerar o rentismo em detrimento do setor produtivo, podem produzir um ciclo vicioso difícil de controlar e interromper.

 

Em direção diametralmente oposta ao receituário recessivo, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD na sigla em inglês)  propõe reativar a economia global por meio de medidas destinadas a:  regulamentar e controlar a movimentação do capital; promover maior equilíbrio nas relações internacionais e entre capital e trabalho; promover a concorrência como estratégia de combate à formação de oligopólios e monopólios; aumentar significativamente os recursos financeiros multilaterais e incentivar a capitalização dos bancos de desenvolvimento; equalizar a resolução das dívidas públicas; flexibilizar os direitos de propriedade intelectual, principalmente aqueles relacionados à produção científica e tecnológica voltada para a saúde pública; ampliar os gastos e investimentos públicos, notadamente em infraestrutura, meio ambiente e políticas sociais;  gerar empregos;  aumentar salários conforme o aumento da produtividade; proteger as organizações sindicais; recompor as receitas do Estado e desconcentrar a renda via combate à sonegação e a instituição de sistemas de tributação progressiva sobre a propriedade e os rendimentos.

 

Nessa mesma perspectiva, analistas têm observado que a associação entre capitalismo rentista e monopolista tende a reduzir o ritmo da introdução de inovações no mercado e, consequentemente, a frear o dinamismo econômico, gerando muitas vezes desemprego e redução de receitas fiscais.

 

Observa-se, ainda, um recuo na cota de crescimento dos ganhos do capital e do trabalho em relação a elevação dos ganhos originários de renda. Um declínio da atividade produtiva frente ao avanço do rentismo. A concentração daí derivada retira recursos do consumo, enfraquecendo a demanda que, por sua vez, desencoraja investimentos, inclusive em pesquisa e desenvolvimento. Um jogo em que a imensa maioria perde.

 

Defendemos, portanto, a revisão criteriosa das políticas de austeridade e a implementação de um projeto que pense a dinâmica das relações entre Estado, desenvolvimento econômico e sistemas de proteção social a partir dos impactos das políticas sociais sobre o crescimento econômico e não somente deste último sobre as primeiras, como tradicionalmente se fez. Ou seja, um direcionamento voltado para a capacidade do conjunto de políticas sociais de promover e facilitar o crescimento, concomitantemente ao desenvolvimento social. Defendemos também a existência de um serviço público de qualidade como garantia do exercício efetivo da cidadania.

 

É preciso preservar as funções do Estado como defensor da vida; indutor de um desenvolvimento econômico sintonizado com o bem-estar da sociedade; com a proteção ao meio ambiente; e com os interesses nacionais. É preciso um Estado defensor da democracia e promotor da cidadania. É preciso construir um Estado que zele pelo equilíbrio nas relações de poder na sociedade. O fato é que o país necessita, pode e deve equacionar e resolver os gargalos que impedem que o Estado cumpra plena e eficientemente o seu papel. Para tanto, é preciso forjar consciência pública e vontade política republicana, solidária e atenta aos interesses nacionais e à defesa da soberania.

 

A Fiocruz foi criada por Oswaldo Cruz em 1900 para fabricar soros e vacinas contra a peste bubônica e erradicar essa doença e a febre amarela no Rio de Janeiro. Transformou-se em uma das mais importantes e conceituadas instituições de Saúde Pública, não apenas na América Latina, mas em âmbito mundial. São 118 anos de dedicação à ciência e à saúde da população brasileira. Foi responsável pelo isolamento do vírus HIV pela primeira vez na América Latina e outros grandes avanços científicos, como o deciframento do genoma do BCG, bactéria usada na vacina contra a tuberculose.

 

É a instituição que mais forma especialistas, mestres e doutores no campo da Saúde Coletiva nas Américas e que publica em revistas científicas indexadas e conceituadas internacionalmente. É responsável por parcela importante da produção nacional de medicamentos, vacinas, protótipos, biofármacos, reativos para diagnósticos e controle da qualidade de insumos, produtos, ambientes e serviços sujeitos à ação da Vigilância Sanitária. Foi responsável pelo trabalho para o estabelecimento da relação entre o vírus zika e a microcefalia em bebês, além do registro de testes para zika, dengue e chikungunya - exemplos da importância destacada da Fiocruz para a saúde e a ciência brasileira. A Fiocruz possui as maiores e mais importantes Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, com laboratórios nacionais e internacionais, fundamentais para a sustentabilidade do SUS, a inovação tecnológica e produção científica.

 

A Fiocruz cada vez mais reafirma, diante da sociedade, o seu compromisso, construído diariamente, de produzir ciência em benefício da saúde da população brasileira. Seus trabalhadores sempre demonstram a capacidade de pronta resposta em situações de emergências sanitárias: seja por meio do monitoramento, diagnóstico e vigilância de casos de zika, dengue, chikungunya e febre amarela ou análise de amostras suspeitas de infecção por hepatite A; além de um crescente surtos de sarampo em alguns estados do país.

 

A Fiocruz é um patrimônio do povo brasileiro. Uma instituição estratégica de Estado reconhecida internacionalmente que orgulha os seus trabalhadores, sanitaristas, homens de ciência e a sociedade, que aplaude os seus sucessos e incentiva o trabalho aqui realizado. Uma ponta de lança que vasculha a fronteira do conhecimento que não pode se atrasar em relação aos seus concorrentes. Um raro potencial de articulação entre demandas sociais, ciência, tecnologia, industrialização e desenvolvimento socioeconômico sustentável. Um patrimônio que precisa ser cuidado. Uma instituição em constante e necessária atualização.

 

Nos despedimos na expectativa de uma breve agenda para um diálogo permanente em prol da saúde e da valorização dos trabalhadores.

 

Diretoria Executiva Nacional e Regionais

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