4.27.2013

A ficha secreta do presidente do Paraguai

ISTOÉ teve acesso ao prontuário de Horácio Cartes, o qual havia sido apagado dos registros da Justiça paraguaia. Documentos revelam prisão por evasão de divisas e processos por falsidade ideológica, falsificação de documentos e estelionato

Sérgio Pardellas e Mariana Queiroz Barboza

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No domingo 21, o milionário Horácio Cartes foi eleito o novo presidente do Paraguai com 46% dos votos, mas debaixo de uma enxurrada de acusações. Aos 56 anos, Cartes é um nome novo na política paraguaia – só se filiou a um partido, o Colorado, em 2009 –, mas velho conhecido das páginas policiais. Durante a campanha eleitoral, seus adversários enfileiraram pesadas denúncias. Entre as mais graves delas constavam o contrabando de cigarros, lavagem de dinheiro, por operações supostamente ilegais mantidas pelo Banco Amambay, de sua propriedade, e evasão de divisas. Nada do que lhe é imputado, porém, aparece nos registros da Justiça do Paraguai. Para o Judiciário paraguaio, Cartes é um homem limpo e sem antecedentes criminais. “Podem ir à Justiça e checar. Não há uma única denúncia contra mim”, repetiu como um mantra o candidato do Partido Colorado durante as eleições. Conservada em absoluto sigilo há quase dez anos na residência de uma autoridade da Justiça daquele país, a ficha criminal do novo presidente do Paraguai, obtida por ISTOÉ, revela outra realidade. Além de mostrarem que sua biografia é um verdadeiro prontuário policial, os documentos derrubam a versão apresentada durante a campanha de que ele teria sido processado e preso quando o Paraguai esteve submetido a um regime ditatorial e de exceção, durante o governo do general Alfredo Stroessner (1954-1989).
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FOLHA CORRIDA
Documento obtido por ISTOÉ traz descrição de
Horácio Cartes, fotos e digitais colhidas quando ele foi preso, em 1989
O prontuário de Horácio Cartes é composto por três folhas. Numa delas, sob o registro 614006 e o timbre da Polícia Nacional paraguaia, estão contidas as referências de Horácio Cartes – como filiação, data de nascimento, número da identidade –, sua foto e digitais colhidas no dia em que ele deu entrada no presídio nacional de Tacumbú, situado na periferia de Assunção, capital paraguaia. Segundo a folha corrida do novo presidente do Paraguai, ele esteve preso, depois de condenado por evasão de divisas, durante seis meses, entre 27 de abril de 1989, portanto durante o período de redemocratização paraguaia (governo do general Andrés Rodrigues), e 8 de outubro do mesmo ano. A ficha policial que expõe os segredos de Horácio Cartes teria sido apagada dos registros judiciais do Paraguai durante o governo do jornalista Nicanor Duarte (2003-2008). O pedido de eliminação do prontuário teria partido do próprio Cartes, segundo fontes do Judiciário local, um dos principais financiadores da vitoriosa campanha de Nicanor. Uma juíza, no entanto, resolveu guardar uma cópia da documentação, que agora vem à tona, em sua residência em Assunção. A julgar pelo teor da papelada, até agora secreta, o presidente do Paraguai tinha mesmo motivos de sobra para temer a exposição de suas passagens pela Justiça. Em 1996, segundo o documento obtido por ISTOÉ, Cartes respondeu a processo por falsificação de instrumentos públicos, falsidade ideológica por operações de importação e estelionato. Em 8 de setembro de 2000, foi acusado de homicídio culposo, por envolvimento num acidente de trânsito. Horácio Cartes ainda respondeu a processo por violação de correspondências em 2002, sete anos antes de ingressar oficialmente na política com a filiação ao Partido Colorado. “Horácio Cartes tem todo o perfil do que não deve ser um presidente”, diz Chiqui Ávalos, que publicou parte da ficha corrida do presidente do Paraguai em seu livro “La Otra Cara de HC”. A publicação ainda não foi lançada no Brasil, mas circulou no Paraguai durante a campanha eleitoral.

A entrada de Cartes na política colocou sua vida particular e empresarial sob os holofotes. As dúvidas vieram não só de seus rivais, mas também de correligionários do próprio partido. A presidente da legenda, Lilian Samaniego, chegou a sugerir que Cartes teria vínculos com grupos do narcotráfico. Não por acaso. Em 2000, um avião monomotor registrado no Brasil foi encontrado em suas terras, carregado de cocaína e maconha. A desculpa usada, então, foi a de que a aeronave havia feito um pouso de emergência e não tinha qualquer relação com o dono do terreno. Nenhuma investigação foi ordenada pela Justiça.
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Outro episódio trazido à baila durante o processo eleitoral o envolveu com o contrabando de cigarros para o Brasil. O novo presidente do Paraguai dirige o Grupo Cartes, um conglomerado de empresas que produzem bebidas, cigarros e charutos. A tabacaria leva o nome de Tabesa. Em junho do ano passado, a Souza Cruz denunciou à chancelaria paraguaia que a participação dos produtos da Tabesa, do Grupo Cartes, corresponde a 41,9% do mercado total de contrabando brasileiro. “Todos os dias, incontáveis caixas de cigarro cruzam as fronteiras, sendo provenientes, em sua maior parte, do Paraguai, sem pagar impostos, abastecendo um próspero mercado paralelo”, diz o documento divulgado pelo jornal paraguaio “Última Hora”. A conclusão da Souza Cruz é de que a Tabesa pratica “concorrência desleal”, já que seus cigarros são vendidos a um preço médio de R$ 1,41, enquanto o produto mais barato da Souza Cruz custa R$ 3. Procurada por ISTOÉ, a Souza Cruz disse que, “por se tratar de uma ação judicial em curso, não fará qualquer comentário sobre o caso”. Estima-se que as empresas de Horácio Cartes produzam três vezes a quantidade de cigarros consumida no Paraguai. Sem atentar para este fato, Cartes recorre a evasivas: “Tudo o que eu produzo, eu vendo e pago imposto.” A organização de controle do tabaco Framework Convention Alliance calcula que o Paraguai deixa de arrecadar US$ 130 milhões por ano por causa da produção ilícita, grande parte oriunda das empresas do presidente.

Outro negócio muito rentável ao Grupo Cartes é a produção do refrigerante Pulp, que compete com a Coca-Cola no mercado paraguaio. Durante a eleição, era comum observar garrafas de Pulp acomodadas sobre as mesas de votação. Para a oposição, tratou-se de uma referência indevida à imagem do então candidato, que também ganhou popularidade no país por sua ligação com outra paixão paraguaia: o futebol. Desde 2001, ele é presidente do Libertad. O clube foi campeão nacional no ano passado, participou das últimas dez edições da Copa Libertadores da América e se tornou uma febre entre os jovens paraguaios. Cartes também é membro do comitê executivo da Associação Paraguaia de Futebol, a CBF do país vizinho. Para tentar neutralizar o efeito pró-Cartes entre os aficionados por futebol, a oposição passou a associá-lo à imagem do enrolado ex-premiê italiano Silvio Berlusconi, presidente do Milan. A estratégia não foi suficiente para reverter os votos necessários para a eleição do adversário Efraín Alegre, do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA). Mas parte expressiva da população já desconfia do que pode estar por vir durante a nova gestão do líder colorado.
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Eleito com um discurso de “renovação” num partido tão calejado por um histórico de ditadura e corrupção – o Partido Colorado sustentou a ditadura de Stroessner por 30 anos –, Cartes entregou a chefia de sua campanha a Francisco Javier Cuadra, ex-ministro e porta-voz do ditador chileno Augusto Pinochet. Cuadra é investigado pelo assassinato de quatro militantes pela central de espionagem do regime de Pinochet. Segundo o jornal paraguaio “E’a”, Cuadra chegou a Assunção pouco antes do juízo político que resultou no impeachment de Lugo, há dez meses, e foi visto muito ativamente assessorando Cartes no período. Desde então, o Paraguai esteve suspenso do Mercosul pela “ruptura da ordem democrática”. Agora, o novo presidente diz que retomar as relações com o bloco comercial é uma prioridade.
Foto: Jorge Saenz/ap
Foto: santi carneri/efe

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