10.23.2011

O que uma mãe pode esperar do filho

O drama de toda mãe é saber se ela foi boa o suficente, e ser boa significa ter o filho encaminhado na vida, agindo dentro das fronteiras do caráter, que ele encontre um grande amor (não tão grande como ela, claro) e que ele seja feliz. Do momento em que engravida até o último suspiro, uma mãe jamais terá certeza de que deu o melhor de si e que agiu corretamente na maioria das situações difíceis que se apresentaram a ela. A única coisa que uma mãe sabe é que amou profundamente aquele ser, mais às vezes do que a si própria.
Uma mãe com um bebê no colo ignora o que o futuro lhe reserva: se ela terá leite suficiente, se o pai estará presente ainda que eles se separem, se as mães dos amiguinhos dirão que ele é um anjo de comportamento, se o filho vai andar cedo ou tarde, se tirará boas notas na escola, se vai sofrer na mão das mulheres, se vai arrumar um bom emprego, se não vai sofrer nenhum acidente, se vai telefonar quando sair para beber com os amigos, se não sucumbirá às glórias e às ilusões deste mundo. Uma mãe nasceu para ver o coração quicando da boca ao estômago, mas pelo menos ele sempre estará cheio.
Aquele ser indefeso na maternidade pode se tornar um médico competentíssimo, um empresário de sucesso, um advogado cheio de ideais, o presidente do Brasil ou até um perigoso traficante de drogas. Por acaso a mãe do Polegar imaginava que seu bebê um dia seria preso no Paraguai, acusado de chefiar uma das maiores quadrilhas do Rio de Janeiro? Se soubesse, ela o teria abandonado no hospital?
Pois me chocou muito o recente caso dos pais que abandonaram seu bebê com Síndrome de Down num hospital do Rio de Janeiro. Ter um filho com a síndrome não é fácil: a sociedade vira as costas para essas crianças, que precisam lutar muito para descobrir meios para sobreviver num mundo que infelizmente não foi feito para elas. Mas suas deficiências terminam aí.
Não sei o que motivou esse casal a cometer tal ato abjeto, se foi o desespero, a inexperiência, um momento de insanidade. Mas nenhuma das alternativas o isenta do fator crueldade e do desprezo pelo que é humano. Eles se ativeram a um dado genético e mental de seu bebê, e não se deram conta de que colocar um filho no mundo, seja ele deficiente ou não, é um gesto de loteria. Pior do que ter uma criança com Síndrome de Down é criar um filho sem caráter.
Eu tive a sorte de conviver com uma irmã com Síndrome Down, a Emi, que acabou se tornando uma filha e infelizmente se foi no ano passado. Por ter sido abençoado com sua presença iluminada, sempre achei curioso dizer que alguém era especial, excepcional ou deficiente. No meu repertório, essas palavras nunca existiram, porque as diferenças entre os seres humanos sempre foram encaradas por mim e por minha família como uma coisa natural, como ter cabelo preto ou louro, encaracolado ou liso, ter a sobrancelha fina ou mais grossinha. Em casa, essas bobagens jamais tiveram importância, simplesmente não existiam, como não existem até hoje.
Em algum momento da vida, todos nós acabamos por enfrentar alguma deficiência, algum obstáculo. Seja para comprarmos o carro que desejamos, construirmos a casa com que sempre sonhamos, precisarmos de óculos para ler ou assistir a um filme, encontrarmos energia para brincar com os filhos depois de um dia de intensa labuta.
Só fui capaz de entender isso por causa da minha irmã, que realmente era especial, porque ninguém me amou de uma maneira tão profunda, pura e irrestrita, fazendo com que eu e a todos que a cercaram, em seus 53 anos de vida, nos sentíssemos verdadeiramente únicos. E ela também era excepcional, porque, no mundo de hoje, esse amor tão cristalino, tão generoso e sem limites infelizmente virou uma exceção. E excepcional vem dessa palavra: exceção.
Emi ganhou várias medalhas esportivas, foi pintora e grande pianista, fez aula de inglês e recebeu várias faixas de Miss colecionadas nas excursões que fazia pelo Brasil e pelo mundo. Tinha planos de se casar com o Rei Roberto Carlos, mas depois mudou para o Daniel. Gostava de sorvete de abacaxi, sundae de caramelo, banana split, mamão amassado de sobremesa. Era muito amiga dos amigos, dava tchau para todas os desconhecidos da rua como se fosse atriz de cinema,  pedia por favor e dizia obrigada para tudo, adorava cachorrinhos (mas só os pequenos), e ouvia música o dia inteiro. Fossem Natal, aniversário ou Dias das Crianças, não queria carrinhos, bicicletas ou viagens: só gostava de ganhar canetinhas de tampa branca e cadernos para colorir. E usava meias pretas com tênis brancos. Um dia eu perguntei: “porque você só usa meia preta”? E ela: “porque é moda”.
Outro detalhe fundamental: ela tinha a idade que queria. Passou muito tempo com 28 anos, depois aceitou fazer 32 e, nos últimos anos, estava com algo entre 36 e 39 anos. Em sua última festinha de aniversário, já meio fraquinha, alguém comentou que ela estava completando 53. E, quase sem voz, ela corrigiu: 39. Essa também era a Emi, que tampouco nunca confiou em escadas rolantes.
A melhor definição que ouvi sobre Emi e todas as pessoas iguais a ela veio de minha mãe: são anjos de asas curtinhas, que precisam da nossa ajuda para voar. Mas acontece que todos nós nos vemos, mais dia menos dia, com as asas curtinhas, porque viver não é brincadeira. E são pessoas únicas como ela que fazem o movimento contrário, e nos ajudam a voar, num gesto de abundante generosidade.
Tenho muita pena desses pais que abandonaram seu bebê Down no hospital. Eles jamais conhecerão a dor de enfrentar o mundo para torná-lo um lugar mais digno para os nossos deficientes. E tampouco conhecerão a delícia de acordar melhor com as lições que eles nos ensinam todos os dias.
Eis a única coisa que uma mãe pode esperar de seu filho: que ele a surpreenda.

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