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Augusto Nunes e Jair Bolsonaro durante entrevista exclusiva realizada no Planalto em abril de 2019. 
Foto: Marcos Corrêa/PR
ALGUNS JORNALISTAS brasileiros entraram em parafuso após as primeiras publicações da Vaza Jato. De repente, um veículo pequeno e independente revelou ao país não apenas um conluio político entre parte do judiciário e do Ministério Público, mas a vassalagem de parte do jornalismo mainstream brasileiro. Ficou escancarado que as arbitrariedades da Lava Jato e os seus sucessivos ataques à Constituição não seriam possíveis sem a cobertura dócil dos grandes meios de comunicação, que ajudaram a impulsioná-la e acabaram se tornando reféns da sua popularidade. Os jornalistas lavajatistas passaram anos comprando acriticamente as versões oficiais, tolerando ilegalidades flagrantes e transformando maus funcionários públicos em heróis nacionais. Prestaram um serviço de assessoria de imprensa que foi fundamental para transformar uma operação policial na maior força política do país. A Vaza Jato jogou luz sobre esse mau jornalismo.
Esse é o contexto fundamental para compreender a agressão de Augusto Nunes contra Glenn Greenwald no programa Pânico da Jovem Pan. Desde o início da Vaza Jato, Nunes vem tratando os profissionais do Intercept como “receptadores de material roubado”, fingindo ignorar que um dos seus empregadores, a Veja, publicou textos com base no mesmo arquivo. Mesmo sabendo que as publicações são plenamente amparadas pela Constituição, Nunes usou os espaços nobres que tem na grande mídia para atacar colegas que revelaram o que os poderosos da Lava Jato pretendiam esconder. O jornalismo vassalo não se conforma
Com Greenwald, Nunes foi além e incitou publicamente o juizado de menores a investigar se seus filhos são bem tratados. Envolver crianças em um debate político, partindo de um pressuposto homofóbico (alguém acredita que ele faria essa insinuação sobre os filhos de um casal hétero?), é a mais perfeita definição de covardia que pode existir. Chamá-lo de “covarde”, portanto, é nada além do que uma constatação óbvia.
Augusto Nunes hoje é contratado da Record, uma empresa na qual poderá continuar puxando o saco do bolsonarismo à vontade, agora com a bênção do bispo Macedo. Mas este não é um texto sobre ele. Não há muito o que acrescentar sobre a sua notória covardia e seu histórico de alinhamento aos ricos e poderosos. Prefiro tentar entender como chegamos ao ponto em que formadores de opinião relativizam ou até mesmo aplaudem um agressão de jornalista transmitida ao vivo.
Após a agressão, o apresentador do Pânico Emílio Surita pediu desculpas para a vítima, mas também para o agressor. Relativizou a agressão, passou pano para o agressor e partiu para o deboche para cima do convidado que acabara de ser agredido: “nem mulher briga tão feio quanto vocês”“você (Glenn) chamou o cara de covarde. É muito forte chamar de ‘covarde'”“eu sei que você é gringo e tem dificuldade pra conversar”“não venha se fazer de vítima, não, porque você provocou”.
O apresentador cumpriu o protocolo do isentão. Tratou a agressão física de um funcionário da casa contra um convidado como uma consequência natural de um debate acalorado. A Jovem Pan, a casa do reacionarismo brasileiro, emitiu uma nota igualmente hipócrita, exaltando a liberdade de expressão e a pluralidade de opiniões, mas sem condenar expressamente a agressão de seu funcionário.
Nas redes sociais, houve três tipos de reações entre os jornalistas: a de repúdio absoluto à agressão (a única reação aceitável), a de repúdio relativizando com “mas” e “poréns” e a de exaltação da violência de Nunes.
Os que aplaudiram abertamente a agressão fazem parte da minoria. São os lavajatistas mais fanáticos e reacionários que assumem abertamente suas posições, mas retorcem a realidade para que caiba dentro delas. José Roberto Guzzo já trabalhou como diretor de redação da Veja e foi colunista da revista por mais de dez anos. Assim como os filhos de Bolsonaro e seus militantes fascistoides, Guzzo saiu em defesa da agressão de Augusto Nunes e classificou uma prática jornalística recorrente no mundo democrático de “receptação de material furtado de criminosos”.
Guzzo é um lavajatista que se esbaldou com todos os vazamentos ilegais da força-tarefa e jamais chamou seus colegas de Veja ou de qualquer outro veículo de “escroques” associados a criminosos. Mas, convenhamos, não chega a ser espantoso ver um jornalista que criminaliza o jornalismo defendendo e exaltando a violência contra um colega de profissão.
Entre os relativizadores, muitos jornalistas iniciaram um festival de “tenho críticas à Vaza Jato, mas…”, “não concordo com o Glenn, mas…” ou “eu já fui atacado pelas esquerdas, porém…”, ou ainda “não, porque a polarização…”. É o cacoete do “doisladismo”, que impede que se condene atitudes de um lado de um espectro político sem criticar o outro. Sabe aquele TOC (transtorno obsessivo compulsivo) em que a pessoa esbarra com braço direito em algum lugar e sente uma necessidade mortal de esbarrar o braço esquerdo também? Então, o jornalista mainstream brasileiro sofre de um TOC parecido. E assim se vai relativizando a barbárie porque, afinal de contas, a civilização também já cometeu suas barbaridades, não é mesmo?
No Twitter, a Folha chamou a agressão de “troca de socos”. Como se as imagens não fossem suficientemente claras para identificarmos um agressor e um agredido se defendendo. Claro, o jornalismo isentão precisa sempre se colocar numa posição de equidistância para não magoar ninguém. Mesmo que para isso seja necessário mentir.
Essa obsessão em busca de uma falsa imparcialidade é bastante comum entre jornalistas. Há um temor constante em ser associado com algum dos lados. Quando precisa se posicionar, o isentão pode distorcer a realidade com uma falsa simetria qualquer para não ficar mal na fita. Ter convicções políticas, algo natural para qualquer um, virou quase um crime para alguns jornalistas, que preferem o conforto da bolha falsa do isentismo.
Isso tem um custo alto para a democracia. Quantas vezes vimos nas últimas eleições, Lula e Bolsonaro sendo apresentados como dois lados de uma mesma moeda? Enquanto o primeiro é inegavelmente um democrata que liderou por oito anos um governo de coalizão com partidos de centro e centro-direita e saiu com quase 90% de aprovação popular, o segundo é um homem autoritário que atacou sistematicamente a democracia, as minorias, e carregava um histórico em defesa de milícias, torturadores e assassinos do regime militar. Não importa se você não gosta de Lula ou de Bolsonaro. Esses são os fatos. Bolsonaro foi um deputado assumidamente homofóbico que pregou o fuzilamento de um presidente democraticamente eleito. Colocá-lo na mesma balança com qualquer outro democrata e tratá-los como dois personagens equivalentes é falsificar a realidade — e isso, sim, deveria ser considerado um crime no jornalismo.
Se os fascistoides chegaram ao poder foi em parte também por culpa do jornalismo que relativizou a barbárie. Portanto, se for para criticar a agressão a um jornalista fazendo ponderações sobre o outro lado, é melhor bater palmas para o agressor logo de uma vez. O fascisminho nosso de cada dia deve ser repudiado de maneira absoluta, firme, sem “mas” nem “poréns”. A relativização das práticas fascistas contribuíram para que chegássemos onde estamos hoje.