7.03.2008

A QUALIDADE EM SAÚDE

A QUALIDADE EM SAÚDE: Por: José Carvalheiro
CONTROLE E GARANTIA
Os últimos meses trouxeram crises importantes na área da
saúde de países em que o controle da qualidade de produtos
é tido como rigoroso. As denúncias sobre os riscos
associados ao uso do silicone para fins restauradores ou
cosméticos, nos E.U.A., não pouparam nem os produtores,
nem os médicos e nem mesmo a festejada agenda
controladora (F.D.A), considerada exemplar. As desculpas
esfarrapadas a respeito das omissões, de quase todos os
envolvidos, quanto às evidências de que os riscos já eram
sabidos há muito tempo, não foram nada convincentes. A
França, onde o controle da qualidade do sangue e
hemoderivados é tido como irrepreensível, viveu momento
dramático. A denúncia comprovada, da liberação para
consumo de sangue contaminado com o vírus da AIDS,
causou demissões e prisões. No caso do silicone, é evidente
que houve um afrouxamento da consolidada rigidez de
critérios técnicos, para benefício de grupos empresariais do
complexo médico, tanto do setor industrial, quanto dos
serviços. No do sangue, um mal esclarecido equívoco nos
testes diagnósticos não levou à interdição da distribuição e
do use do sangue sabidamente contaminado.
Estes exemplos colocam em xeque a credibilidade de
um sistema de vigilância, do qual se espera o exercício
intransigente da defesa da saúde. Razões de outra índole
predominaram A liberdade do mercado para produtos e
processos potencialmente nocivos à saúde, depurando o
ambiente e abrindo caminho à predominância daquele que
reúna as características de menor preço e melhor qualidade,
tem que ser melhor esclarecida. Não se trata, simplesmente,
de avaliar, desqualificando, um liquidificador que não
tritura ou um automóvel para cujas panes nunca é possível
encontrar peças de reposição. Os custos podem ser
demasiado pesados em vidas, sofrimento, incapacitação.
A qualidade de um produto qualquer, ou de um
processo, não é constante. É atributo ao qual está
associada uma variabilidade que deriva das
características essencialmente mutáveis dos processo
concreto desenvolvidos em todas as fases do ciclo
completa piodução - distribuição - comercialização -
uso. A qualidade não é uma variável nominal,
meramente classificatória. Boa ou má qualidade, traz
implícita, no mínimo, uma escala ordinal para esta
variável. As diversas regras de "medida" da variável
qualidade hão de ser claramente enunciadas, para que se
possa associar um valor (da qualidade) a cada exemplar de
um produto. Em suma, não se pode falar na qualidade de
um produto (ou processo) em abstrato. É obrigatório
especificar, de forma detalhada, os padrões de qualidade
desejados, as maneiras de atingi-los e os métodos
empregados na sua avaliação. Somente desta forma,
dizendo claramente quais são as característica desejáveis,
será possível controlar a qualidade de um produto,
geralmente através de algum método de monitoramento do
processo produtivo. Claro, o problema não se circunscreve
à planta industrial. O que precede a produção (matéria
prima e insumos em geral) e o que a sucede (distribuição,
comercialização, uso) são igualmente dignos de
preocupação. Não é por outro motivo que alguns produtores
exercitam rigoroso controle da qualidade da matéria prima,
tem suas próprias redes de distrubuição e alertam o
comprador a respeito dos pré-requisitos (de uso)
indispensáveis a qualquer reclamação quanto à má
qualidade do produto adquirido.
A questão da garantia da qualidade pode ser motivo
de diversas abordagens. Donabedian, referindo-se à
garantia da qualidade da atenção médica, afirma que o
termo pode ser enganoso, pois "nem sempre é possível
garantir um determinado nível de qualidade". Opta pela
alternativa de almejar à salvaguarda da qualidade ou, mais
otimisticamente, à sua melhoria. Para produtos e processo
em geral, não apenas aqueles potencialmente nocivos à
saúde, considera-se que cabe ao produtor garantir a
qualidade. Isto não é pouco, atribui-lhe (ao produtor)
responsabilidade legal e faz dele o alvo predileto das
reclamações, inclusive pela via judicial. Garantir a
qualidade geralmente pressupõe independência da instância
controladora em relação à linha de mando do processo
industrial. Os laboratórios de controle de qualidade
(monitorização) do processo produtivo não deve estar
subordinados à gerência de produção.
Num texto largamente discutido, Marx discorreu a
respeito da questão de "quem educa os educadores?".
Fernando Henrique Cardoso, enquanto "apenas" um
celebrado sociólogo, parafraseando Marx, indagava "quem
planeja os planejadores?". A questão, aqui, é a mesma:
quem controla os controladores?. Para muitos, esta é a
essência de um Sistema de Garantia de Qualidade. Um
processo de monitorização, exercido por um laboratório
não subordinado à gerência de produção, e um outro
processo de monitorização da qualidade dos procedimentos
empregados pelo laboratório de controle. Não se exige,
portanto, o exame de cada exemplar do produto em todos
os níveis do sistema de garantia. Os níveis de referência
mais elevados ("de excelência") certificam tão somente a
correção dos procedimentos executados pêlos laboratórios
dos demais níveis, ai incluído, muitas vezes, o próprio
desenho aleatório da obtenção das amostras. Esta é a lógica
usual dos sistemas de certificação, que não excluem a
eventual existência de um exemplar de má qualidade, de
um produto certificado. A certificação pressupõe boa
qualidade, definida por atributos acessíveis à observação e
mensuraçâo. Ninguém certifica má qualidade seria
desqualificar-se no cenário competitivo.
No campo da saúde a questão é mais complexa. Não se
trata apenas de certificar a (boa) qual idade dos produtos.
Compete ao sistema de saúde zelar pelo "bem estar" da
população: qualidade em saúde não se confunde
necessariamente com qualidade "tout court". A nocividade
do produto, ou processo, é o elemento primordial da
análise. Um papelote de cocaína de ótima qualidade, ou um
pacote de cigarros com tabaco de melhor procedência, não
são aprovados em nenhum teste sério de qualidade em
saúde, citaremos ao assunto.

Um debate atual refere-se à unificação do que, no Brasil, se
chama as Vigilância: epidemiológica e sanitária. Já se fala
largamente numa única Vigilância em Saúde. Castellanos
coordena na Organização Pan Americana da Saúde,
OPAS/OMS, os esforços para estabelecer "Sistema
Nacionais de Vigilância da Situação de Saúde,
segundo Condições de Vida". Trata-se de monitorizar
condições de vida, identificar necessidades e sua
transformação em problemas (de saúde), além de
avaliar o impacto das ações de saúde (resposta da
sociedade organizada). Este debate não é inédito,
nem recente. A Epidemiologia sempre se interessou
pelas características epidemiológicas: distribuição da
doença na sociedade: no tempo, lugar e pessoa. Esta
atividade redunda numa vigilância de características
necessariamente exercitada "a posteriori" dado não ser
possível estudar a distribuição de casos reais antes que
ocorram. Uma vigilância "a priori", capaz de emitir sinais
de alarme e induzir ações de saúde eficazes, implica
conhecer elementos da estrutura epidemiológica. Enquanto
se valorizaram, nas doenças transmissíveis, elementos
estruturais exclusivamente biológicos, a eficácia das ações
preconizadas dependiam de um conhecimento dos ciclos
dos parasitas e da História Natural da Doença, Inúmeros
dos procedimentos tomaram-se, de tal forma incorporados
como ações valorizadas pela sociedade, que muitas vezes se
esquece sua origem. São ações que poderíamos chamar
Vigilância Epidemiológica de Estruturas toda a
monitorização da qualidade ambiental, ar, água de
abastecimento, poluição de mananciais. Da mesma forma,
todas as ações do que chamamos Vigilância Sanitária. Só
que, agora, incorporando elementos de estrutura
epidemiológica não estritamente biológicos. Embora a
Vigilância de Portos, Aeroportos e Fronteiras se aproxime
de uma Vigilância Epidemiológica convencional, alerta
para todas as fases da História Natural da Doença, o
simples fato de lidar com migrantes confere-lhe caráter
eminentemente de antecipação a um elemento social da
estrutura ( a migração humana ). A Vigilância Sanitária de
Produtos e Processos, das Condições de Trabalho e das
Condições Ambientais, trabalham também, a nível da
estrutura, com elementos de natureza biológica e outras de
natureza social, económica e política.
Embora se considere que ambas as Vigilâncias,
epidemiológica e sanitária, tratem de eventos essencialmente
aleatórios, esta aleatoridade é viesada. Em
ambos, a descoberta dos vieses redunda num aprofundamento
do conhecimento sobre estrutura epidemiológica.
Na Vigilância Sanitária, isto é mais claro. Um produto
industrial fraudado (exemplo: leite contaminado na usina e
não pasteurizado corretamente) faz com que se
distribuamos "casos" de doença dai resultantes seguindo a
mesma trilha da distribuição do produto. A descoberta dos
vieses conduz à noção de risco. Uma incidência maior,
associada a determinada exposição, definidora do risco,
corresponde a um indício de viés na distribuição
pretensamente aleatória dos casos da doença. As
características epidemiológicas de uma doença traduzem
exatamente esta distribuição desigual, ou viesada. A
apregoada modernidade nas ações de vigilância (trabalhar
incorporando a noção de risco) é exatamente isto:
identificar irregularidades não aleatórias na distribuição da
doença e vigiar os agentes causais putativos. O risco,
definido epidemiológicamente, vem a ser uma espécie de
substituto técnico da ideia de necessidade. Objetivar
necessidades, através dos riscos, pode levar à definição de
problemas e ao planejamento por problemas, sem a
participação da sociedade. Ai é que mora o perigo, a
tecnificação dos problemas sociais. Em condições normais,
as condições de vida trazem incorporadas insuficiências ou
necessidades. Transformar necessidades em problemas,
pela participação da sociedade, está intimamente associado
ao exercício da cidadania. As ações daí resultantes
dependem da maneira como se chegou à identificação dos
problemas: com a presença da sociedade (cidadania) ou
com a definição técnica de risco. A Vigilância Sanitária
"modeniza-se", incorporando a ideia de trabalhar segundo
as regras do planejamento orientado por problemas. A
sociedade organiza-se", gerando um Código de Defesa do
Consumidor que, bem trabalhado, transforma usuários e
consumidores em cidadãos. Estamos considerando usuários
quem aceita sem discussão o que lhe é oferecido pêlos
serviços e consumidor quem luta, isolado e solitário como
um quixote, pêlos seus direitos. Cidadão, o que luta
integrado a seus pares pêlos direitos coletivos.
A CRISE E SUAS DIMENSÕES
A ONU, em seu "World Economic Survey, 1991" ao
analisar o Estado da Economia Mundial, reconhece um
declínio da atividade económica em todas as partes do
mundo. A despeito da tendência à globalização e do
crescimento da interdependência, considera que operam
diferentes forças nas várias regiões do mundo, não
reconhecendo uma única razão dominante para o declínio.
Previa-se um crescimento zero para o mundo como um
todo no ano da publicação, 1991. Esperava-se alguma
recuperação global para 1992. Para África e América
Latina a expectativa era de manutenção do produto per
capita, sem nenhum acréscimo que acompanhasse a
tendência mundial. Na América Latina, 1990 foi o terceiro
ano consecutivo de declínio do Produto Interno Bruto
(GDP) per capita. Embora disseminado, atribui-se ao forte
declínio de duas das suas maiores economia. Argentina e
Brasil, o efeito maior sobre o mau desempenho económico
da Região. A pressão inflacionária permaneceu elevada, e
mesmo pior, a despeito das políticas de controle adotadas,
que tiveram impacto negativo sobre a produção, levando à
recessão. Os investimentos seguiram estagnados ou
declinantes, ao mesmo tempo cresciam as
dificuldades relacionadas com o pagamento do
serviço da dívida externa da Região. Embora o
controle da inflação permanecesse como objetivo
político mais imponante, não alcançou sucesso apesar
de inúmeras experiências ortodoxas e heterodoxas em
diversos países da Região. Característica importante
das políticas de controle da inflação, mais recente no
quadro latino-americano, é a liberalização do
comércio. Associa-se ás tradicionais medidas,
fracassadas, de controle de déficit público e da
disciplina fiscal. Todas essas medidas tem reflexos
imediatos nas condições de vida e um impacto
extraordinário sobre a parcela mais pobre da
população, ampliando a proporção de pessoas
situadas abaixo da Linha de pobreza (nível de renda
incompatível com aquisição da dieta mínima
nutricionalmente adequada e satisfação de outras necessidades
essenciais). A liberalização do comércio
tem sido entendida, por setores empresariais e operários,
como forte ameaça de sucateamento da indústria
nacional, levando ao desemprego maciço e, portanto,
ao agravamento da situação social (saúde, inclusive)
da população. Exige melhoria da qualidade e da produtividade
da indústria nacional para a necessária incorporação
a um mercado internacional
extremamente competitivo. Traz associada a si a confusão
entre a certificação, inerente ao controle e
garantia da qualidade para fins de competitividade
comercial, e a Vigilância Sanitária. Este é o tema
central do presente trabalho, voltaremos a ele.
A crise econômica mundial, da qual escapam escassamente
apenas Japão e Alemanha, coloca problemas
também para as economias mais vigorosas.
Abalando as promessas de estado de bem estar,
"lançando formidável desafio ao desenvolvimento
humano nos anos 90", conforme assinala o "Human
Development Report 1991", preparado pelo PNUD.
Estima em milhões a população, tanto em países subdesenvolvidos
quanto em países industrializados, à
qual "faltam os mais elementares requisitos para uma
vida decente e gratificante - alimento, água potável,
educação, saúde, habitação e um ambiente limpo". A
crise social e política do mundo agravou-se recentemente
com os notáveis acontecimentos dolesteeuropeu
que culminaram, no segundo semestre de 1991 e
começo de 1992, coma desintegração da URSS. O
que os documentos da ONU e Banco Mundial
chamavam, economias em transição passam por uma crise inconcebível há
pouco mais de dois anos. O mundo passa por um rearranjo
não apenas no sentido económico, mas
fundamentalmente neste. As economias dos países
subdesenvolvidos, segundo o Relatório 1991 do
PNUD, estão abalados porque não conseguiram
desviar recursos para usos mais produtivos,
reduzindo despesas interna e perdas em
empreendimentos públicos. Estes últimos estão
intimamente associados ao caráter paquidérmico da
máquina estatal e ao fisiologismo das lideranças políticas
que contribuem para ampliar cada vez mais a
ineficiência da máquina. Além disto, o desperdício
com plojetos pirotécnicos, consumidores de recursos
mas sem nenhum impacto económico e social. Finalmente,
e não menos importante, a corrupção, problema
comum aos países subdesenvolvidos e aos
industrializados. Cada vez mais preocupante, o
relatório do PNUD chega a sugerir a criação de uma
organização nos moldes da Anistia Internacional para
cuidar do assunto. Também no caso da corrupção,
como no da tortura e das prisões ilegais, dites ricas e
poderosas, nos mais altos nívds, estão envolvidas o
que toma difícil a denúncia pêlos meios usuais. Esta
questão da crise do Estado e da corrupção não é
irrelevante no contexto: diante de tanta deturpação do
sentido dos serviços públicos não se poderia esperar
que a Vigilância Sanitária resistisse como cidadela
invicta. No paraíso dourado da liviie concorrência, as
leis do mercado "Não são, assim, uma Brastemp". Há
corruptos porque existem corruptores.
produtividade e da qualidade. Consequência: redução
geral dos preços e controle da inflação. Ninguém
menciona claramente como tratar a questão dos
preços cartelizados, dos monopólios e oligopólios. É
claro que nos estamos referindo a um certo pais
grandão, que ocupa grande parte da América do Sul.
Formulou-se um ambicioso Programa de Qualidade e
Produtividade. Para que não se perdesse pela sigla,
alguém sugeriu mudança substancial: Programa Brasileiro
de Qualidade e Produtividade (PBQP). Traz para o cenário
a discussão sobre o ciclo completo da qualidade, os
sistemas internacionais de certificação, as normalizações do
tipo ISO 9.000 e outras. Recomenda medidas que ampliam
a produtividade do setor industrial do país, para tornar
competitivos os diversos setores da economia. Vale-se de
exemplos internacionais, especialmente do sucesso recente
dos "tigres asiáticos", Coreia e parceiros.
Passa ao largo da questão essencial da qualificação da
força de trabalho. Com a pedagogia da repetência,
instaurada no Brasil, o desperdício de capacidade instalada
da rede de ensino público, a evasão maciça e a duração
excessivamente longa do percurso de um aluno médio pelo
ensino fundamentei, é quase impossível dispor, a curto
prazo, de pessoal qualificado para enfrentar o desafio da
abertura do mercado. Os efeitos previstos, uma economia
subordinada, assustam empresários e trabalhadores. É o que
se depreende das Atas das Reuniões dos Grupos de
Trabalho do "Fórum Capital - Trabalho" que vem sendo
conduzido na USP, com a presença do Reitor e outros
académicos mas, fundamentalmente, das maiores lideranças
empresariais e operárias: FIESP, PNBE, CUT, CGT.
Não é só o ensino fundamental precário. Também o
modelo exclusivamente universitário do ensino de terceiro
grau e o deficiente arcabouço de suporte de financiamento
em C&T preocupam. Ou discutimos a sério as prioridades
em que concentrar esforços de desenvolvimento autónomo,
ou estaremos fadados a não ser competitivos em nada, ou
quase nada. O elemento essencial é a ampliação da base,
pelo aumento da eficiência do ensino fundamental e pelo
esforço conjunto da sociedade para aumentar o nível de
educação da força de trabalho. Associada a este elemento
essencial, uma política clara que priorize os setores em que
investir recursos em C&T, definindo incentivos capazes de
ampliar a participação do setor empresarial no
financiamento.

O SISTEMA DE BLOCOS: O
GATT E O MERCADO "LIVRE"
Este apregoado esforço pela melhoria da qualidade dos
produtos, tomando o nome industrial brasileiro mais
competitivo e viabilizando a liberalização do comércio,
com tributação mínima, ou tendente a zero, para artigos
importados, encontra barreiras. Algumas são
tarifárias, ninguém vai desarmado de más intenções
às reuniões sobre liberação do comércio. Os setores
agrícolas dos países da Comunidade Económica
Europeia (CEE), por exemplo, não concordam com o
"liberou geral” apregoado e forçam seus governos a tomar
posições contrárias à eliminação das barreiras tarifárias.
Quando não bloqueiam estradas com tratores, inundam de
penas de galinha as ruas de Paris, reservando generosas
porções para lançar sobre os representantes reunidos para
discutir acordos comerciais, esquecendo-se do piche que
tornaria o protesto mais emocionante.
Ao mesmo tempo, o mundo assiste estupefacto a um
outro protesto, também na França. A padronização, por um
comitê de burocratas da CEE, dos queijos camembert e
roquefort, ameaça um símbolo nacional tão valioso quanto
a tricolor, a Marselhesa e a baguette. A normatização de
produtos está implícita na discussão sobre barreiras
técnicas, não tarifárias, ao comércio exterior. As discussões
travam-se no seio de um organismo multilateral o GATT
(General Agreement on Tariffs and Trade), onde se busca
um consenso diplomático capaz de pôr ordem na briga-defoice-
no-escuro do comércio internacional. As barreiras
tarifárias, mais explícitas, abrem de fato, ou fecham
definitivamente mercados. A questão dos subsídios,
especialmente à produção agrícola, também esta na linha de
frente das medidas antiliberalizantes, tomadas pêlos
governos para proteger setores estratégicos de suas
economias (ou representados por lotístas mais eficientes).
O que mais tem que ver com a Vigilância Sanitária são as
barreiras técnicas.
A questão das barreiras técnicas é tratada em Comités
Especiais, havendo em cada país participante do GATT um
ponto único de contacto diplomático, capaz de orientar os
importadores a respeito das restrições técnicas impostas à
entrada de produto e os exportadores a respeito das que são
impostas pêlos países que serão alvo dos esforços de
comercialização de produtos nacionais. Levados a sério, os
Comités de Barreiras Técnicas seriam essenciais no
estabelecimento de um Sistema Internacional de Vigilância
Sanitária. Na normatização da qualidade técnica dos
produtos e processos está sempre um componente ligado à
proteção sanitária. Geralmente é entendido apenas no
contexto da comercialização dos produtos agrícolas, como
é o controle fitossanitário e veterinário. Está, no entanto,
associado a todo e qualquer produto que seja
potencialmente nocivo à saúde. Não apenas nas óbvias
trocas comerciais de produtos como medicamentos,
vacinas» soluções parenterais, artigos como cirúrgicos,
bolsas de sangue, camisinhas e similares.
Também nas especificações de eletrodomésticos
capazes de emitirem radiações ionizantes, automóveis sem
dispositivo antipoluição, etc. Na realidade, o que se tem
visto nas negociações da Rodada Uruguaia do GATT é um
verdadeiro jogo de lobo e coídeiro. A chiadeira dos
produtores de queijo franceses é exemplar um alemão
definir tecnicamente o que é um camembert é o mesmo que
permitir que um americano defina caipirinha, pisco e mojito
As discussões na Rodada Uruguaia do GATT chegaram a
um impasse. O relatório final não esta incluído e já á
contestado. Mostrando, claramente, a natureza das posições
reais escondidas atrás da apregoada liberalização do
comércio: a defesa dos interesses de grupo mais eficientes
na ação lobística. Todos querem "liberar geral" para colocar
seus produtos no exterior e "proteger legal" para preservar
seus respectivos mercados nacionais. Nesta proteção dos
mercados nacionais estão os subsídios, as barreiras
tarifárias e as barreiras técnicas. Nesta última, a Vigilância
Sanitária.
Há uma tendência generalizada à formação de blocos,
embora esta questão seja extremamente confusa. O
exemplo marcante é o da Comunidade Econômica
Europeia, prestes a entrar em plena Vigência e ainda às
voltas com sérios problemas, como referido atrás. No
extremo oriente, Japão e os tigres asiáticos podem compor
outro bloco. O leste europeu, as economias em transição
como as chama o Banco Mundial, são um verdadeiro
mistério, após a derrocada fragorosa do "socialismo real".
Mas tendem a articular-se, quanto mais não seja, pela
proximidade da experiência recente e não apenas
geográfica. Na América do Norte, o México celebra pactos
com EUA e Canadá, mas já quer excluir o petróleo do
acordo. Na América do Sul, o Pacto Andino, o Pacto
Amazônico e, especialmente, o MERCOSUL vão no
mesmo caminho. Preparado para entrar em vigor 1994, o
MERCOSUL reúne num mercado comum Argentina,
Brasil, Paraguai e Uruguai. A integração não parece fácil,
mas busca-se intensamente, ao menos a nível do discurso.
Passando por cima de questões tão "triviais"quanto a
disparidade de políticas cambiais, energéticas, de
transporte, agrícolas, etc. Na área de saúde, os ministros
reunidos em Brasília produziram um documento ("Carta de
Brasília") em que sugerem duas medidas políticas: a
criação no seio do MERCOSUL de uma Secretaria Especial
destinada a tratar das repercussões sanitárias da integração
e a inclusão de Bolívia e Chile, pelo menos na área da
saúde, em vista da impossibilidade de tratar alguns
problemas sanitários sem a presença de todos os países do
Cone Sul. Foram tomadas decisões no âmbito técnico e
produzido um Sumário Executivo que prevê ações
desejáveis e fontes de financiamento. Neste sumário, a
Vigilância Sanitária é presença constante. As dificuldades
encontradas, nos acordos bilaterais entre Argentina e Brasil,
para obviar barreiras técnicas à livre comercialização de
fraldas, absorventes femininos e soluções parenterais de
grande volume, são um indício claro do que nos espera:
sermos atropelados, os sanitaristas, por comerciantes,
lobistas e dirigentes pouco diligentes (para dizer o menos...)
CERTIFICAÇÃO E VIGILÂNCIA
SANITÁRIA (VISA)
Já mencionamos a óbvia relação entre a certificação de
produtos e a Vigilância Sanitária ( VISA ). Até porque uma
das facetas da qualidade, que entra na certificação, é a
dimensão sanitária. Há, portanto, uma assimetria: a VISA
não pode ser cofundida com a certificação, que a inclui mas
pode subordiná-la. Aqui entra uma discussão candente à
respeito do papel do Estado na viabilização de um comércio
tão livre quanto possível e rígida execução de uma VISA
tão severa quanto desejável. O que é desejável, da óptica da
VISA, é a rigorosa proteção da saúde da população
mundial. Isto é o que desejam os sanitaristas ("queriiias",
diz o personagem do Jô Soares). A história recente está
atulhada de exemplo em que a VISA veste a camiseta dos
interesses comerciais nacionais ( de cada país ), por baixo
da camisa de "estado de completo bem estar" da
humanidade. Mas isto não invalida a esperança num
sistema mundial não denominado pêlos interesses
mercantis. Enquanto isto não ocorre, a VISA conduzida
com seriedade será permanentemente vista como embaraço.
Mas é assim mesmo: tanto a nível individual quanto
coletivo a prevenção primária é sempre limitadora da
liberdade absoluta.
Ao negarmos a identificação de VISA com certificação
estamos denunciando uma espécie de pecado original
nessa confusão. A certificação associa-se ao intercâmbio
comercial, especialmente (mas não exclusivamente)
internacional. Confere marca ou selo de garantia, que
assegura estar o produto sujeito a uma rede como foi
exposto anteriormente a qualidade ("tout court") admite
categorias independentes dos riscos potenciais para a saúde.
Certos atributos, que podem incluir fatores ligados à saúde,
permitem classificar a qualidade dos produtos: superior,
primeira e segunda, por exemplo. A certificação estabelece
a comparação entre nível de qualidade de um determinado
produto e o nível de qualidade da produção mundial. Uma
vez que isto pressupõe a existência de uma lede de
certificação, está aberto o espaço para a formação de redes
privadas que incluem laboratórios e introduzem a figura da
franquia ("franchising"). Nada a opor, até porque
consideramos a garantia da qualidade responsabilidade do
produtor, como mencionado anteriormente. O pecado
original está em colocar a VISA a serviço desta rede de
certificação comprometendo-a com o desempenho do setor
produtivo e retirando-lhe a necessária imparcialidade e
independência que lhe confere a natureza pública. E ai está
a questão essencial: a VISA é necessariamente pública,
quase fatalmente estatal. Está comprometida com a
qualidade em saúde e pode ser entendida como uma
Vigilância Epidemiológica de Esttuturas, um trabalho de
Saúde Pública. Trabalha o conceito de risco, embora seja
questionável se deve ou não seguir os passos
metodológicos sugeridos pelo chamado enfoque de risco.
AVISA é exercida sobre produtos de qualquer nível de
qualidade (comercial) e não apenas sobre produtos
competitivos, ou de qualidade superior. Podem ser
liberados ao consumo, pela VISA, produtos de qualidade
(comercial) superior, de primeira ou mesmo de segunda.
Esta contradição pode ser superada, negando a negação
ou transformando o pecado original em pecadilho venial.
Disto trataremos adiante.
SISTEMA TRIPARTITE DA
VIGILÂNCIA SANITÁRIA (VISA)
Um sistema de VISA deve ser concebido de maneira a
contemplar o exercício democrático do direito de defesa de
interesses coletivo. A maneira de dar conta deste complexo
jogo de interesses tem sido a da formulação de um sistema
tripartite Um dos ramos, representado pelas antigas
Câmaras Técnicas do Conselho Nacional da Saúde, com
participação de elementos de diversos setores sociais:
produtores, consumidores, especialistas (técnicos de cada
área). Responsável pela normalização contextualizando à
luz do conhecimento técnico os interesses peculiares dos
setores sociais interessados tendo como produto final uma
norma mínima que traduza um compromisso social. Este
primeiro ramo é o responsável pelo marco referendai de
todo o Sistema de VISA Tratando-se de um compromisso
entre o grau de desenvolvimento das forças produtivas, o
nível de exigência da sociedade consumidora, o
conhecimento técnico dos especialistas e o poder de
política do Estado, as normas são essencialmente mutáveis,
devendo ser periodicamente revistas. Apenas para
exemplificar, é o que fazem, a nível internacional, os
Comités de Padrões Biológicos da OMS, para
medicamentos, substâncias orgânicas e imunobiológicos.
Num exemplo mais próximo, a introdução do violeta de
genciana no sangue para transfusão em área endémicas de
doenças de Chagas desprovidas de laboratórios clínicos
confiáveis: é uma contextualização do ideal, sangue isento
de tripanossomos, adequado ao grau de desenvolvimento
do Sistema de Saúde.
O segundo ramo é representado pelas instâncias
responsáveis pela condução da política de governo. Em
nosso caso, a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária
(SNVS) do Ministério de Saúde e seus equivalentes a nível
Estadual e Municipal. Em vista deste papel, é a cabeça do
sistema VISA orientando a definição das prioridades e o
alcance das ações. Se um dado governo, ungido pelo voto
popular para administrar por 4 ou 5 anos, decide que o
controle sanitário dos produtos hortícolas in natura é mais
importante que o do sangue e hemoderivados, traça suas
táticas de ação política condizentes com essa prioridade. A
beringela e o chuchu serão alvos prioritários e, eventualmente,
os culpados pela miséria da saúde do povo, como,
no passado, foram os culpados pela inflação. Se, ao mudar
o governo, mudam a política e as prioridades, a ênfase pode
passar às soluções parenterais de grande volume, aos
medicamentos, aos cosméticos ou aos domissanitários. O
ideal é que existam estruturas relativamente permanentes,
conduzindo programas com metas claras, que recubram
toda a área da VISA As prioridades serão mais de ênfases
do que propriamente de opção por algum programa, com
exclusão dos demais. Ser considerada a cabeça do sistema
visa não faz da SNVS gerente suprema, subordinando
administrativamente as demais instâncias. Até porque a
independência das três partes é imprescindível ao bom
funcionamento do Sistema VISA Aliás, trata-se de um
Sistema e não de um Serviço. A obviedade da
independência entre os dois ramos até aqui analisados pode
ser lembrada em associação com duas crises relativamente
recentes: a dos sucos de fruta engarrafadas e a da carne de
Chemobyl. Em ambos os casos ocorreu uma desagradável
alteração dos limites máximos permitidos pelas normas
então existentes, de S02 e de radiação.
O terceiro ramo é a rede de Laboratórios, com função
eminentemente técnica. Não vamos discutir o formato e o
modo de operar da rede. Apenas mencionar que é
necessariamente pública e trabalhar segundo os princípios
da Garantia da Qualidade Analítica, já enunciados
anteriormente. No caso do Brasil, a questão ainda não teve
equacionamento adequado. Em que pese os esforços
desenvolvidos, a rede não conseguiu decolar como
estrutura aceita a reconhecida. O papel formal de
Referência Nacional, ou cabeça da rede, pertence ao
Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde -
INCQS. Que nunca o exerceu de fato, por insuficiência
própria e indefinição externa. Cada Estado da Federação
conta com um Laboratório Central (LACEN) e um número
variável de outros laboratórios de análises. A SNVS, sem
contar com quadios técnicos, reivindica a coordenação da
Rede. Os LACENs reagem e, não respeitando instâncias
hierárquicas, reunem-se regionalmente (Ex.: Grupo do Sul)
para traçar programas conjuntos. O Conselho Nacional de
Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) cria Câmara
Técnica de VISA, connpetindo em atribuições com as
desativadas Câmara Técnica do Conselho Nacional de
Saúde. Comendo o risco de traçar normas regionais, sem
abrangência nadonal. Enfim, uma verdadeira plantação de
beringelas!
NEGAÇÃO DA NEGAÇÃO
O Sistema VISA repousa numa rede Articulada de
Laboratórios funcionando segundo os princípios de
Garantia da Qualidade Analítica; num conjunto de normas
definidas pela sociedade, respeitados os prindpios técnicos
e o grau de desenvolvimento das forças produtivas; num
conjunto de políticas públicas articuladas entre os diversos
níveis de governo e os diversos setores de interesse
nadonal. É impossível pensar tal sistema sem respeitar de
maneira transparente os diversos interesses em jogo e o
superior interesse coletivo. O poder executivo não está
sozinho na condução do Sistema VISA. Legislativo e
Judiciário devem ter acesso às diversas instâcia do Sistema.
A condução democrática das ações nesta área passa por
extrair de cada uma dessas instâncias o que de melhor elas
puderem oferecer. Marcos peferenciais permanentemente
atualizados, pela instânda normativa. Competentes
programas de fiscalização do processo produtivo em seu
dclo completo, da matéria prima ao consumo, passando
pela produção propriamente dita e pela comercialização,
pela instânda executiva da política governamental de VISA
Competência técnica analítica reconhecida, pela Rede de
Laboratórios.
Já foi mencionada e exemplificada a distorção ocasionada
pela falta de independência entre a instânda
normativa e a executiva. Ninguém pode aceitar sem
piotesto a alteração das normas estabelecidas, ao sabor de
interesses conjunturais. O que não exclui uma discussão
pública e transparente das razões que impõe a mudança.
Acredito que seja o caso das soluções parenterais de grande
volume, para as quais os padrões estabelecidos no Brasil
são mais rigorosos do que os que vigoram na Argentina.
Acordos comerciais bilaterais, ou a instauração do
MERCOSUL podem exigir um termo de compromisso com
tempo de vigência definido. É também o caso do sangue e
hemoderivados em relação à presença de anticorpos (não
antigeno!) da hepatite B. Diversos países desenvolvidos
têm níveis de exigência inferiores aos da norma brasileira,
em vista da elevada prevalência da presença desses
anticorpos que condenaria, de forma absolutamente antieconômica,
parcela ponderável do sangue coletado na
população.
E ainda mais radicalmente necessária a independênda
da Rede de Laboratórios. A excelência técnica das análises,
garantida pela Rede, não pode estar ao sabor de mudanças
de humor dos dirigentes de turno. Até porque a rede há de
ser disponível ao Judidário e a ONGs interessadas na defesa
do consumidor. O alvo das reclamações e das ações
judiciais ou políticas pode muitas vezes ser o executivo,
nos diversos níveis de governo. Ainda mais, nas análises
fiscais o produtor (ou o comerciante) é uma das partes, a
outra é o executivo. A rede de Laboratórios é um terceiro,
isento e independente das partes. Há ainda uma razão
institucional que toma desejável a independência: a Rede e
cada laboratório integrante devem ter equipes permanentes,
atuando no sentido do contínuo aprimoramento técnico e
científico. Isto tem um tempo indefinido de maturação,
geralmente incompatível com a urgência de mostrar
resultados no curto período de uma administração
governamental provisória. O laboratório deve desenvolver
permanentemente seu aprimoramento técnico para analisar
beringelas ou vacinas, sem ser acossado pelo açodamento
imediatista da instância executiva. Se esta opta pelas
beringelas, nada a opor. Desde que sejam obedecidas as
normas e empregado os procedimentos técnicos de análise
mais apropriados.
Uma derradeira menção ao pecado original enunciado
anteriormente. Não é contradição insuperável. Embora a
certificação não seja objetivo prioritário do Sistema VISA,
pode ser objetivo secundário, atendendo interesses. Um
sistema VISA, com uma Rede de Laboratórios reconhecida
nadonal e internacionalmente, operando com seriedade,
confere um aval inestimável aos produtos oriundos da
região onde está implantado. É, de certa forma, o que fazem
países subdesenvolvidos sem capacidade técnica de
produzir e/ou controlar medicamentos. Impõem, para
registro, a comprovação de aprovação pelo Controle do país
de origem do produto e de outros (2 ou 3) controles
reconhecidos internacionalmente (EUA, Inglaterra,
Alemanha, etc.). Um alerta final para o relacionamento
entre a Rede de laboratórios e o sistema produtivo. Desde
as famosas audiências Kefauver-Harris no Senado dos
E.U.A, envolvendo as evidências de corrupção no FDA,
que se tem evitado o que os senadores americanos
chamaram, na época, de "promiscuidade entre a indústria e
a instância controladora". Não parece que a corrupção
tenha sido exclusiva daqueles países daquela época.

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