O procurador da República Deltan Dallagnol publicou nas redes sociais um vídeo
em tom emotivo para anunciar, em setembro, passado, que estava saindo
da operação Lava Jato. À época coordenador da operação no Paraná, ele
explicava que iria se afastar do cargo para cuidar da filha, que segundo
ele começava a apresentar sinais de regressão no desenvolvimento.
“Ela
parou de falar algumas palavras que ela já falava, deixou de olhar para
gente quando é chamada e parou de olhar em nossos rostos e nossos
olhos”, descreveu.
Preocupado,
como qualquer pai ficaria, Deltan disse que era hora mudar de foco.
“Depois de anos de dedicação intensa à Lava Jato, eu acredito que agora é
hora de eu me dedicar de forma especial à minha família. Aquelas horas
extras que eu investia [na operação] em noites, finais de semana e
feriados, eu vou precisar focar agora na minha família.”
À
época, não foram poucos os analistas que viram naquela justificativa
uma maneira encontrada pelo procurador para sair pela porta da frente da
Lava Jato após as inúmeras suspeitas lançadas contra a operação para
reportagens da série Vaza Jato, publicadas pelo Intercept e veículos
parceiros. O fato é que, três meses depois de expor seu drama pessoal e
familiar, Deltan parece ter mudado de ideia.
Ele
abriu mão de 20 dos 60 dias de férias anuais a que tem direito para
voltar a trabalhar antes do que precisaria. Não de graça, lógico. Com
isso, embolsou quase R$ 30 mil extras. Pagos com dinheiro público.
A grana foi creditada no contracheque de novembro
do procurador. Só naquele mês, Deltan recebeu mais de R$ 42 mil
líquidos – referentes ao salário do mês e ao terço de férias a que
trabalhadores formais têm direito. Acrescente-se a isso a pilha de
gratificações e auxílios pagos a membros do Ministério Público Federal e
o período de férias vendido. Ao todo, foram mais de R$ 76 mil,
líquidos, num único mês.
Vender
as férias não é ilegal. Qualquer trabalhador que já passou por um
aperto já fez isso. Mas a lei impede que empregados do setor privado
troquem mais de dez de seus trinta dias anuais de descanso por dinheiro.
Deltan não tem o perfil de quem passa necessidade: seu salário habitual
é de R$ 33 mil, quase o máximo que um servidor público pode receber no
Brasil.
Em novembro, quando vendeu as férias, o procurador recebeu quase duas vezes o chamado teto constitucional. Hoje, ele é de quase R$ 39,3 mil.
Acontece que auxílios não entram nessa conta, tampouco o abono
pecuniário – nome formal do valor recebido pela venda de férias.
Procuradores
da República são alguns dos poucos privilegiados no Brasil com 60 dias
de férias por ano – juízes e promotores dos ministérios públicos
estaduais também estão no grupo. É o dobro das férias de quem atua no
setor privado – e olha que nem estamos falando de trabalhadores
informais, a maioria no Brasil, que se pararem de trabalhar ficam sem
dinheiro algum.
As férias em dobro, aliás, foram colocadas na balança por Deltan quando ele ponderou uma candidatura ao Senado
em 2018. "é uma turbulência na vida familiar, ganha menos, tem menos
férias, fica tomando pedrada na vitrine num jogo de menitras, correria
um risco grande ao me desligar do MPF", ele escreveu no Telegram em
março de 2017 – a grafia original foi mantida. Estava respondendo a uma
voluntária da campanha pelas dez medidas contra a corrupção por que não
gostaria de largar o cargo de procurador e se aventurar na política
eleitoral. A mensagem faz parte do arquivo da Vaza Jato.
Trabalho ‘desumano’
No
final de 2019, os 60 dias de férias dos procuradores viraram tema de
debate. Uma proposta de emenda à Constituição que tramitava no Congresso
Nacional queria cortá-los pela metade, igualando os membros do MPF aos
reles mortais com as da maioria que trabalham para a iniciativa privada.
Na
época, o procurador-geral da República, Augusto Aras, insurgiu-se
contra a tentativa de acabar com o privilégio. Em nota divulgada em
novembro de 2019, Aras disse que a carga de trabalho dos procuradores da
República era “até certo ponto desumana” e, por isso, as férias de 60 dias eram justificáveis.
Aras,
entretanto, demonstrou alguma preocupação com o peso que os direitos
dos membros do MPF exercem sobre os cofres públicos quando determinou em
portaria que todos os trabalhadores do órgão esgotassem seus bancos de horas e tirassem as férias
pendentes de 2018 e 2019 logo que a pandemia os obrigou a priorizar o
trabalho remoto. Isso, segundo a portaria de Aras, deveria ocorrer até o
final de julho de 2020.
As
férias parcialmente vendidas por Deltan eram de 2018. O procurador
acertou a venda de parte delas em setembro de 2020. Mas só em novembro é
que uma portaria publicada pela PGR em novembro tornou regular o atraso
no cumprimento da ordem de Aras.
"Deltan
Dallagnol e os demais procuradores da força-tarefa, por diversas vezes
ao longo da operação, trabalharam durante as férias formalmente
usufruídas. O abono pecuniário se refere à venda de 20 dias de férias,
referente a parte das férias acumuladas, direito derivado de regras
legais (Lei Complementar 75/93) e institucionais aplicáveis a todos os
membros do Ministério Público Federal", disse a assessoria do MPF. Só
não comentou que 60 dias de férias são um privilégio de poucos no
Brasil.
Assim,
com metade das férias no bolso e aparentemente alheio ao avanço da
pandemia no Paraná e em Santa Catarina – agravada pela inação criminosa
de Jair Bolsonaro, que a Lava Jato ajudou a eleger e a governar –,
Deltan encontrou tempo até para se dedicar a uma atividade que
adora: surfar. No fim de semana passado, ele postou uma foto com amigos
na praia. É o "time do surf", ele explicou na legenda.
Nenhum deles usava máscara.
***
Deltan
não está sozinho: na segunda, a gente te conta qual foi o jeitinho que
promotores e procuradores encontraram para engordar seus contracheques
no MP da Bahia.
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