POR LUIS NASSIF
Circula na Internet um vídeo editado de palestra que proferi
no mês passado em um evento em São Paulo. O vídeo é fiel ao que eu disse. Mas o
título e o texto podem induzir a conclusões taxativas que não fiz ou passar a
ideia de que o vídeo faz parte dessas guerrilhas que ocorrem periodicamente
em
redes sociais.
As informações foram divulgadas em 2014 e 2015. Estão sendo
agitadas agora.
O trecho em questão faz parte de um seminário no mês
passado, do qual participei com a colega Helena Chagas
Limitei-me a apontar indícios, indícios fortes, sem dúvida,
que merecem ser investigados, mas não acusações frontais.
Aqui, o que falei sobre o tema, não editado.
A história é a seguinte.
Historicamente, as APAEs (Associações de País e Amigos de
Excepcionais) fizeram-se contando, na ponta, com cidadãos bem intencionados,
mas passando a trabalhar com recursos públicos, sem prestar contas para os
órgãos formais de controle.
Essas liberalidades abriram espaço para desvios e uma
utilização política da estrutura das APAEs, através da Confederação e das
Federações estaduais de APAEs, incluindo a do Paraná.
Na sua gestão, o ex-Ministro da Educação Fernando Haddad
decidiu assumir a tese da educação inclusiva – segundo a qual, o melhor local
para desenvolvimento de crianças com necessidades especiais seria as escolas
convencionais, convivendo com crianças sem problemas.
Sabendo da resistência que seria feita pelas APAEs – já que
a segregação de crianças com deficiência, apesar de tão anacrônica quanto os
antigos asilos para tuberculoses, é o seu negócio – Haddad pensou em um modelo
de dupla matrícula: a escola pública que acolhesse um aluno com deficiência
receberia 1,3 vezes o valor original da matrícula; e uma segunda matrícula de
1,3 se houvesse um projeto pedagógico específico para aquela criança.
Imaginava-se que essa parcela seria destinada à APAE de cada cidade, atraindo-a
para os esforços de educação inclusiva.
As APAEs mais sérias, como a de São Paulo, aderiram
rapidamente ao projeto, sabendo que a educação inclusiva é pedagogicamente
muito superior ao confinamento das pessoas,
tratadas como animais.
O jogo das Federações de APAES foi escandaloso. Trataram de
pressionar o Congresso para elas próprias ficarem com as duas matrículas,
preservando o modelo original.
O ápice desse jogo é a proposta do inacreditável senador
Romário, nesses tempos de leilão escancarado de recursos públicos, visando
canalizar para as APAEs e Institutos Pestalozzi todos os recursos da educação
inclusiva.
É um jogo tão pesado que, na época da votação do Plano
Nacional da Educação, a própria Dilma Rousseff pressionou senadores a abrandar
a Meta 4, que tratava justamente da educação inclusiva, com receio de que as
APAEs do Paraná boicotassem a candidatura da então Ministra-Chefe da Casa Civil
Gleise Hoffmann.
O caso do Paraná
Comecei a acompanhar o tema através da procuradora da
República Eugênia Gonzaga, uma das pioneiras da luta pela educação inclusiva.
Em 2002, Eugenia levantou princípios constitucionais – do
direito à educação – para forçar o poder público a preparar a rede para
crianças com deficiência. Na ocasião, foi alvo de 3.500 ações judiciais de
APAEs de todo o país.
No auge da pressão política das APAEs, ainda no governo
Dilma, decidi investigar o tema.
As APAEs tem dois lobistas temíveis. A face “boa” é a do
ex-senador Flávio Arns, do Paraná; a agressiva de Eduardo Barbosa, mineiro,
ex-presidente da Federação das APAEs, que pavimentou sua carreira política com
recursos das APAEs.
Uma consulta ao site da Secretaria da Educação do Paraná
confirmou o extraordinário poder de lobby das APAEs. O então Secretário de
Educação Flávio Arns direcionou R$ 450 milhões do estado para as APAEs, com o
objetivo de enfrentar a melhoria do ensino inclusivo da rede federal.
No próprio site havia uma relação de APAEs. Escolhi
aleatoriamente uma delas, Nova California.
Indo ao seu site constatei que tinha um clube social, com
capacidade para 2.500 ou 4.500 pessoas; uma escola particular. Tudo em cima das
isenções fiscais e dos repasses públicos dos governos federal e estadual.
O argumento era o de que o clube era local para os
professores poderem confraternizar com a comunidade; e a escola privada para
permitir aos alunos com necessidades especiais conviverem com os demais.
Telefonei para a escola. Não havia ninguém da direção.
Atendeu uma senhora da cozinha. Indaguei como era o contato dos alunos com
deficiência e os da escola convencional. Respondeu-me que havia um encontro
entre eles, uma vez por ano.
A república dos Arns
As matérias sobre as APAEs, especialmente sobre o caso Paraná, tiveram
desdobramentos. Um dos comentários postados mencionava o controle das ações das
APAEs do estado pelo escritório de um sobrinho de Flávio, Marlus Arns.
Entrei no site do Tribunal de Justiça. Praticamente toda a
ação envolvendo as APAEs tinha na defesa o escritório de Marlus.
Uma pesquisa pelo Google mostrou um advogado polêmico,
envolvido em rolos políticos com a Copel e outras estatais paranaenses,
obviamente graças à influência política do seu tio Flávio Arns.
Quando a Lava Jato ganha corpo, as notícias da época falavam
da esposa de Sérgio Moro. E foi divulgada a informação de que pertencia ao
jurídico da Federação das APAEs do estado.
Por si, não significava nada.
No entanto, logo depois veio a dica de um curso de direito à
distância, de propriedade de outro sobrinho de Flávio Arns, irmão de Marlus, o
Cursos Online Luiz Carlos (http://www.cursoluizcarlos.com.br).. No corpo
docente do cursinho, pelo menos um da força tarefa da Lava Jato.
Finalmente, quando Beatriz Catta Preta desistiu de
participar dos acordos de delação, um novo elo apareceu. Até hoje não se sabe o
que levou Catta Preta a ser tão bem sucedida nesse mercado milionário. Nem o
que a levou a sair do Brasil.Mas, saindo, seu lugar passou a ser ocupado
justamente por Marlus Arns que, pouco tempo antes, escrevera artigos condenando
o instituto da delação premiada.
Sâo esses os elementos de que disponho.
Recentemente, fui convidado pela Polícia Federal para um
depoimento em um inquérito que apura um suposto dossiê criado pela inteligência
da PF supostamente para detonar com a Lava Jato – conforme acusações veiculadas
pela Veja.
Fui informado sobre o dossiê na hora do depoimento.
Indagaram se eu tinha tomado conhecimento das informações.
Informei que o dossiê tinha se limitado a reproduzir os
artigos que escrevi acerca da República dos Arns.
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