4.03.2020

Coronavírus: ‘fomos abandonadas pela USP durante a pandemia, e não podemos nem morrer porque nossos filhos dependem de nós’

Foto: Acervo pessoal/Cíntia Silva de Deus
Por estar com uma infecção desconhecida que teme ser coronavírus, a soteropolitana Cíntia Silva de Deus vive isolada da própria filha em um apartamento de 25 m². Todas as noites ela observa se a criança está respirando ao dormir e só tem contato com a filha usando máscara e luvas. Ela teme que a menina de oito anos seja infectada com a doença, já que tem problemas respiratórios e está no grupo de risco. A professora e estudante de pedagogia, de 31 anos, é moradora do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, o Crusp, que abriga cerca de 1.600 estudantes. Junto de outras onze famílias — formadas majoritariamente por mães solo —, ela vive no bloco conhecido como “bloco das mães”. Há ainda cerca de 50 mães vivendo com filhos em outros blocos da universidade.
Construído para abrigar atletas dos Jogos Pan-Americanos de 1963, a moradia estudantil da melhor universidade da América Latina, segundo a consultoria britânica Quacquarelli Symonds, parece ter parado naquela década. Os estudantes de baixa renda vindos de fora de São Paulo ou de bairros da periferia que conseguem uma vaga ali são confrontados com uma realidade cheia de rachaduras, vazamentos e riscos de incêndio.
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A situação é ainda mais difícil para as alunas que vivem com os filhos, já que as mães precisam inspirar calma em suas crianças. Em meio à pandemia de covid-19, a condição ganha contornos ainda mais distópicos, uma vez que, segundo os moradores, a universidade os abandonou à própria sorte. Conversei com Cíntia, que há dois anos preside a Comissão de Mães do Crusp, no fim da semana passada. Ela detalhou a rotina angustiante da quarentena dessas estudantes. O relato foi editado para fins de clareza.

Se fosse para traduzir o que estou sentindo agora, eu diria que estamos vivendo um filme de terror. Desde que recebemos a informação do primeiro caso confirmado de coronavírus na USP, em 11 de março, o bloco das mães, onde eu vivo, entrou em isolamento total aqui no Crusp, seguindo as recomendações oficiais. Nosso bloco é formado por 12 apartamentos que ficam no térreo, mas existem cerca de outras 50 mães morando em apartamentos comuns.
As medidas de isolamento que a gente tomou começaram a ser usadas como referência para os outros blocos. Mas não recebemos nenhuma ajuda da USP, fomos completamente abandonadas. Visivelmente, é uma situação de guerra.
Dispensamos os funcionários terceirizados para evitar riscos e para que eles pudessem cumprir a quarentena em casa. Foi uma decisão acertada, porque uma semana depois descobrimos que uma das moças que limpa aqui estava com suspeita de covid-19. Passamos a nos responsabilizar pela limpeza, mas a universidade sequer nos forneceu sabão e água sanitária.
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Aviso colocado pelas mães no portão do dormitório.
Foto: Acervo pessoal/Cíntia Silva de Deus
Uma das primeiras preocupações que a gente teve foi com os medicamentos. Temos crianças com asma e pneumonia aqui, mas a universidade não deu nenhuma orientação. A assistência estudantil fechou as portas e só nos responde por e-mail. Eu mesma estou com um quadro de infecção, sinto dor no corpo e de cabeça. Preciso tomar antibiótico por dez dias, porque estou com a garganta inflamada, mas não sei exatamente o que tenho. Os médicos só fazem exame em quem chega com falta de ar e em quem precisa ser internado. Tive que me afastar das aulas que dou para o ensino fundamental e médio. Os alunos gostam muito de abraçar, seria uma tragédia.
Além disso, tenho uma filha de oito anos que depende mim, não posso ficar no hospital. Estou evitando contato com ela, dentro do meu próprio apartamento. No ano passado, ela operou amígdala, adenoide e tímpano. Fizemos um exame no dia 17 de março e descobrimos que as amígdalas aumentaram o dobro do tamanho, o que dificulta a respiração. Então, minha filha não pode ficar doente. Eu vivo em pânico. Nem durmo direito vendo se ela está respirando, medindo a febre. A vida virou uma luta para manter minha filha viva no meio de uma pandemia.
E aí tem a questão emocional também, já que estamos evitando nos tocar. Ela chora, reclama, fica brava, porque quer carinho, quer dormir junto, mas não dá. Passamos a nos cumprimentar com um gesto. Do ponto de vista psicológico, é bem triste. Também porque, apesar de termos o corredor e uma área comum, as crianças estão isoladas umas das outras. Elas ficam dentro dos apartamentos de 25 m². É um processo de sofrimento complicado. Isso porque já tiveram dois casos de covid-19 na creche da USP, onde nossos filhos estudam. Algumas deles tossem, mas não temos como saber qual é a real situação, uma vez que a universidade não disponibiliza nem um agente de saúde.
O abandono ficou mais evidente agora, mas ele não é de hoje. Teve uma vez que uma das crianças fez uma operação séria na coluna. A mãe, que tem mais duas crianças em casa, além do filho operado, precisava entregar a dissertação de mestrado, mas não tinha como terminar porque não temos wi-fi liberado. Eu supliquei à superintendência para olhar por essa mãe, que está sozinha, implorei para começarem a fazer o cabeamento da internet no nosso bloco. Mas eles disseram que a gente devia usar o computador na sala de estudos. Agora, como uma mãe vai deixar três filhos sozinhos para ir ao laboratório à noite? Isso prova que a universidade não tem a mínima noção do que é ser mãe dentro de uma instituição como essa. Não deixamos nossas crianças sozinhas, consequentemente nossa dificuldade de estudar acaba sendo maior do que a dos outros estudantes que já passam por situações terríveis.
Mesmo agora, durante a pandemia, alguns professores estão dando avaliações e trabalhos com prazo. E nós continuamos sem wi-fi. A Superintendência de Assistência Social diz que as paredes dos prédios são muito grossas, e que exigem um projeto de internet diferente que está “em desenvolvimento”, mas não deu nenhum prazo. Enquanto isso, falam para a gente continuar usando a sala de estudos. Mas como ir até lá diante de um surto pandêmico? Não é uma medida de segurança. É uma situação cada vez mais degradante.

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