12.24.2011

Direitos humanos


Ajuda humanitária depende cada vez menos dos mais ricos

Colaboração e doações do Brasil e outros países emergentes são essenciais, principalmente no momento atual, em que se vive uma 'crise sem precedentes'

Cecília Araújo
Sobreviventes das enchentes tentam subir em helicóptero do exército que distribuía comida em Lal Pir, Paquistão Sobreviventes das enchentes tentam subir em helicóptero do exército que distribuía comida em Lal Pir, Paquistão (Arif Ali/AFP)
"O lado positivo é que cada vez mais o humanitarismo se torna realmente universal, não apenas visto como um produto dos países desenvolvidos do Ocidente."
Michael Barnett, professor da Elliott School of International Affairs
O ano de 2011 se encerra preocupante para o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), que alerta para uma crise humanitária "sem precedentes na história recente" - resultado de uma série de conflitos intensos, como as revoltas árabes, e graves desastres naturais, como a seca que agravou a fome na África, que meses depois ainda apresentam profundas consequências. O número de barracas mobilizadas pela Acnur para abrigar quem precisou deixar sua casa triplicou em relação a 2010, enquanto o número de pessoas que decidiu retornar a seu país de origem caiu de quase 1 milhão para somente 200.000 por ano. "Em comparação aos anos 1990, os grandes conflitos abertos no mundo diminuíram em intensidade. Porém, há muito mais pontos de emergência relativamente mais amena. Então, o desafio de levar medicamentos e assistência a alguns desses lugares é imenso", diz ao site de VEJA Unni Karunakara, presidente internacional da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF).
Confira, no infográfico abaixo, os países mais afetados pela crise humanitária:
Infográfico: Os 11 países mais afetados pela crise humanitária em 2011
s Para Unni Karunakara, a própria noção de humanitarismo foi alterada: hoje, não importa onde as pessoas vivem, todas têm o mesmo direito a ajuda médica de boa qualidade. "Não adianta apenas conseguir medicamentos e se deslocar aos países em situação de crise. É preciso saber lidar com a falta de estrutura e com os pacientes", destaca. O crescimento do processo de migração em todo o mundo também influencia nessa transformação, além das mudanças climáticas, que fazem com que algumas doenças alcancem lugares antes inimagináveis. "Em Genebra, por exemplo, estamos com um surto de Doença de Chagas", conta. E todas essas mudanças vêm se desenhando há pelo menos 100 anos, período no qual a ajuda humanitária evoluiu significativamente: o que se resumia a iniciativas impulsionadas pela possibilidade de conversão, como o movimento missionário no século XIX, ganhou dimensão internacional.
"A religião deixou de ser o critério, e todos os necessitados passaram a ser visados, especialmente por motivos políticos", explica Michael Barnett, professor da Elliott School of International Affairs, integrada à Universidade George Washington. E à medida que o enfoque religioso se enfraquecia, o papel dos estados e das organizações governamentais ganhava relevância. Antes, os governantes não passavam tanto tempo manejando suas finanças para o humanitarismo, como fazem atualmente. Os missionários eram protegidos pelos militares, mas quase todo o dinheiro vinha da Igreja. "Hoje, mais ou menos 70% da ajuda humanitária vêm de governos. Está crescentemente ligada aos estados e cada vez mais política", observa Barnett.
Todd Wevaert/AP
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Essa "racionalização" das doações, fez com que solidariedade deixasse de ser a principal motivação. "Os EUA são líderes em ajuda humanitária, mas não necessariamente 'bonzinhos'", ressalta o professor. Os americanos acreditam que ajudando outros países conseguem projetar uma imagem melhor da sua nação ao mundo. Por isso, divulgam tantas fotos de soldados distribuindo mantimentos e de campanhas contra a fome. "Cada vez mais, os países querem ser associados a essas emergências. É uma boa publicidade", analisa, citando como exemplo o terremoto do Haiti, em 2010, que mobilizou um número impressionante de nações. Ao mesmo tempo em que existia a real vontade de ajudar, os governos viram na ocasião uma forma de ostentar sua capacidade, o que contribuiu para institucionalizar o humanitarismo. "A área se transformou em um campo profissional, em que as pessoas fazem carreira e viram experts. O lado positivo é que cada vez mais o humanitarismo se torna universal, não apenas visto como um produto dos países desenvolvidos do Ocidente", pondera o especialista.
Países emergentes - E quando deixa de ser função apenas das grandes potências, as mais atingidas pela recessão mundial, abre-se espaço para o envolvimento de países que estão ganhando cada vez importância na economia. É a vez dos países emergentes, como Índia e China, destacarem-se também nas questões humanitárias. Além do Brasil, claro, que este ano fez a maior doação de alimentos de sua história: 710.000 toneladas, inicialmente, segundo um relatório da Coordenação-Geral das Ações Internacionais de Combate à Fome (CGFOME), do Ministério das Relações Exteriores. "O que impulsionou a crescente ajuda de países emergentes foi o aumento da cooperação. O Brasil está olhando para fora do país, ajudando outros em situação pior, criando novas parcerias e projetos. O foco da política externa brasileira é cooperação técnica, em especial a de reaplicar em outros lugares projetos que deram certo aqui", diz Tyler Fainstat, diretor-executivo da Médicos Sem Fronteiras no Brasil.

Como fazer uma doação

Médico Sem Fronteiras (www.msf.org.br)
Cadastro - O primeiro passo é se cadastrar no site da instituição ou pelo telefone (21) 2215-8688, e se tornar Doador Sem Fronteiras.

Valores - Depois, é preciso escolher a forma de contribuição. Os possíveis valores (superiores a 10 reais) são associados ao tratamento que é possível ser feito com aquela quantia: com 30 reais, por exemplo, é possível ajudar uma criança com menos de 5 anos a cada mês.

Repasse - Após a transferência, o dinheiro doado vai para um fundo geral da MSF, que será repassado aos projetos de maior necessidade.
Para o embaixador brasileiro Gilberto Saboia, recém-eleito para a Comissão de Direito Internacional da ONU, a participação de nações em desenvolvimento cresceu como resultado de uma "tendência intuitiva" de envio de ajuda entre países vizinhos em situações de catástrofes ambientais, por proximidade e solidariedade. "Mas essa ajuda existia de forma um tanto desorganizada. Agora, procura-se cada vez mais promover ações humanitárias de maneira mais sistemática", ressalva. Contudo, mais do que ordenar o trabalho, é preciso direcionar melhor a área de atuação, lembra Michael Barnett, porque ainda se gasta mais com o tratamento de pessoas doentes do que com prevenção. "Os profissionais que atuam no setor admitem que seria uma estratégia mais eficiente para salvar vidas. Porém, é mais difícil arrecadar dinheiro para algo que ainda não ocorreu", diz, completando que ainda há muito trabalho a ser feito em um processo que vive em constante mutação. "Aliviar a dor dos outros deixou de ser um direito e passou a ser um dever. Vivemos em uma era humanitária, e é preciso identificar o papel dos cidadãos nesse novo contexto."

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