4.23.2018

A prisão de Lula: enfim, o neoliberalismo encontrou seu mártir


por André Marcio Neves Soares* — 
Ato do Judiciário só faz sentido se entendermos que ele presta serviço à subserviência sabuja do mercado
Nelson Almeida/AFP
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Lula e Dilma: alvos de um processo contínuo de retomada truculenta do poder pelo capitalenos de menos de  24 horas depois do STF denegar o Habeas Corpus (HC) de Lula, o Juiz Federal Sérgio Moro - o mesmo que, segundo Rafael Valim (2017, p.42), consoante a Lei n. 9.296/96, praticou crime ao interceptar e divulgar uma conversa telefônica entre a então Presidenta da República Dilma Rousseff e o ex-Presidente Lula -, decretou sua prisão. No momento que escrevo, faltam poucas horas para Lula se apresentar e ser preso.
O açodamento com que essa prisão foi decretada beira o inacreditável. Parece uma orquestra sinfônica totalmente afiada nos passos seguintes de cada nota musical. Basta lembrar que, a despeito do voto indignado do Ministro Celso de Mello em favor do HC de Lula, a Presidente do STF, Ministra Cármen Lúcia, não levou sequer 30 minutos para desempatar em prol da condenação do ex-Presidente.
Nesse sentido, a prisão de Lula só faz sentido se entendermos que ela presta serviço à subserviência sabuja do mercado. Quando Bush pai perdeu a eleição para Bill Clinton nos USA, após a primeira campanha midiática-militar contra o Iraque, ele era barbada, pelo menos no início da corrida eleitoral. Mas perdeu para o que foi muito bem resumido, pelos analistas mais atentos, na famosa frase “é o mercado, estúpido”.
Parafraseando essa pérola, podemos resumir a prisão do ex-Presidente Lula com uma frase parecida, e que diz, no fundo, a mesma coisa: “é a eleição, estúpido”. De fato, não fosse este um ano eleitoral, ou não fosse o ex-Presidente Lula pré-candidato, é possível, por várias razões, que o processo de prisão contra ele não corresse a galopes de Guepardo (considerado o animal mais veloz da terra).
Ao viabilizar sua pré-candidatura com uma narrativa diferente do que o mercado gostaria de ouvir, e mesmo em oposição ao que muitas vezes fez nos seus mandatos, Lula voltou a ser o inimigo n.1 do sistema produtor de mercadorias financeiro-midiático-militar, lembrando, ainda que vagamente, o “sapo barbudo” de 1989. O grande problema é que não vivemos mais naquele momento histórico de redemocratização, ou melhor, de final de festa da ditadura militar.
Ao contrário, desde lá o neoliberalismo internacional tenta se impor ao Estado brasileiro, amparado pela nova ordem global do capitalismo leve de Bauman (2014, p.77). Com recuos e avanços ao longo das últimas três décadas, firmou-se no imaginário popular dos estamentos sociais, até o recente desfecho do impeachment da Presidenta Dilma. Há que se fazer, pois, uma pergunta da maior relevância, a nosso ver: mesmo depois de tomar o poder pela via do golpe parlamentar, o mercado não se deu por satisfeito? E esse questionamento nos remete a um segundo não menos importante: era preciso criar um “mártir”?
A resposta à primeira pergunta é, obviamente, “NÃO”. Mas para respondê-la mais adequadamente, precisamos lembrar que desde 2016, com a subida ao poder do vice-Presidente Michel Temer e seus asseclas, vivemos um período que Agambem denominou de “estado de exceção moderno”, o qual seria, inclusive, criação da própria tradição democrático-revolucionária e não da absolutista (2015, P.17). Ora, se o próprio Estado Democrático de Direito pode, por assim dizer, se submeter a uma modificação no seu ordenamento jurídico, a depender de certas situações que são aceitas como justificáveis, está aberta a lacuna para que o sistema econômico hegemônico, o capitalismo, produza essas mesmas situações inadiáveis de eterna excepcionalidade na política “dos” e “entre” os povos para fazer valer sua obsessão, jamais esgotada, por novas formas de reprodução do capital, mesmo que para isso seja preciso submeter países ao que Carl Schmitt chamou de norma do soberano: soberania, decisão e exceção.
Portanto, como o soberano atual não é mais o antiquado Estado-nação, mas se apresenta na modernidade na forma do Capital, com sua ultra-moderna vestimenta neoliberal, ainda mais visível nos países periféricos, significa dizer que não basta mais absorver a esfera política dos países na sua esfera maior privatista- financeirizada, mas assumir o controle absoluto e ilimitado dos poderes nessas infelizes fronteiras de indivíduos mendicantes.
A resposta à segunda pergunta é um pouco mais simples: sim, era preciso criar um “”, mesmo “mártir” que a ele venham a ser asseguradas regalias incomuns aos presos normais. O próprio juiz que determinou a prisão de Lula já ordenou algumas, como não ser algemado em hipótese alguma, assim como ser recolhido em ala especial, longe de alguns dos seus desafetos também presos, os denominados “buchas- de-canhão”, como o ex-Deputado Eduardo Cunha. Sejamos francos: o objetivo maior é tirar Lula do processo eleitoral, no qual era franco favorito. Não foi à toa toda a correria do citado juiz e dos desembargadores do TRF-4ª Região para admitir a culpabilidade de Lula em corrupção passiva e lavagem de dinheiro, que lhe teria rendido, se é que rendeu mesmo, uma miséria comparada ao apartamento de FHC em Paris.
Para ficar só no exemplo de um ex-Chefe de Estado, portanto alguém do mesmo nível de Lula. O atual presidente, patrono do golpe parlamentar, já se livrou de duas acusações no Congresso Nacional. Uma terceira está em gestação. Será dado a ele o mesmo tratamento “inquisidor”? Porém, ainda remanesce a inquietação: por que um “mártir” a essa altura do campeonato, quando as forças do capitalismo ultra- liberal aqui vicejam, como não vicejam como lá (parodiando Pero Vaz de Caminha, em sua carta sobre esses trópicos ao Rei de Portugal)? Elementar, meu caro Watson, diria o famoso detetive Sherlock Holmes, personagem-mor do médico e escritor britânico de histórias policiais ficcionais Sir Arthur Conan Doyle: há muito era preciso dar um recado mais firme às forças progressivas e populares da América Latina e, por tabela, ao resto do mundo. Sim, o atual sistema reprodutor de mercadorias ainda é forte o suficiente para cortar a cabeça da teimosa fênix da justiça social.
Como se sabe, várias vezes foi sendo tentado algo do tipo recentemente, como na Venezuela de Hugo Chávez, no Equador de Rafael Correa, ou mesmo na Argentina de Cristina Kirchner. Só para ficarmos no nosso continente, pois várias outras tentativas ocorreram nos outros continentes. Nesse sentido, não causa surpresa a participação nada modesta do Poder Judiciário no teatral momento histórico que vivenciamos. Logo ele, o Poder Judiciário, que nas palavras de Valim, “deveria ser a última fronteira de defesa da ordem constitucional” (obra cit., p.52).
É preciso que o establishment dê um fim, de uma vez por todas, nos que tentaram um acordo menos bélico entre as camadas sociais, estas cada vez mais díspares, precisamente entre mais os pobres e miseráveis e os denominados “1%”. Afinal, por que se importar em dar explicações para populações inteiras de seres descartáveis pelo atual sistema econômico dominante? Infelizmente, muitos outros fins se avizinham no cenário global. Como disse Robert Kurz no início do seu livro O Colapso da Modernização (1992, p.13), “Nunca houve tanto fim”. De fato, desde que o muro de Berlim caiu, a dinâmica capitalista está mais do que nunca a derrubar novas barreiras, novos muros, novas lideranças em prol da sua supremacia mercadológica.
Se não for pela cooptação, como no caso do sindicalista e depois Presidente polonês Lech Walesa, vai pela força mesmo, como no episódio recente do ditador iraquiano Saddam Hussein. Ou alguém ainda acredita que a invasão do Iraque teve algum cunho humanitário e/ou ideológico? No nosso caso, o jogo perigoso de Lula de promover uma aliança supra-partidária que lhe proporcionasse a condição necessária para atender, em parte, a parcela mais necessitada da população brasileira, enquanto oferecia ganhos financeiros ainda maiores aos reais donos do poder aqui em “pindorama”, lhe rendeu benefícios políticos enquanto foi encarado como um mal necessário, diante da conjuntura de total desmantelamento do tecido social promovido pelos governos neoliberais anteriores a ele.
Assim, era preciso pacificar a nação com um líder efetivamente popular, mas que não  fosse intransigente aos apelos do mercado. Mas quando sua sucessora, a ex-Presidenta Dilma, diante do tsunami da crise financeira de 2008 chegando à soleira do nosso país, tentou modificar o “acordo de cavalheiros” feito por Lula, explicitado na Carta aos Brasileiros elaborada ainda antes de assumir o seu primeiro mandato, o pano caiu, como bem podemos lembrar do clássico livro da escritora de romances policiais britânica Agatha Christie.
Com efeito, nesse último romance policial do principal personagem criado por ela, o detetive Hercule Poirot, livro intitulado “Cai o Pano”, talvez cansada de tanto desvelar crimes cometidos por personagens de menor importância, resolveu Agatha Christie encerrar com chave de ouro a série, colocando o próprio detetive Poirot como autor de um crime perfeito, o qual só é revelado em carta posteriormente escrita pelo próprio. Se pudéssemos pedir a todos a devida vênia para uma associação de livre pensar, estenderíamos ao abjeto banimento de Lula da próxima eleição presidencial, via o novo “acordo de cavalheiros” entre o mercado e o Poder Judiciário, a mesma pulsão que motivou a escritora britânica.
Em outras palavras, cansadas que estavam as forças mercadológicas de engolir, por mais de uma década, políticas públicas em favor de uma “ralé” que não consegue se erguer contra as imposições desse mesmo poder hegemônico, sobrevivendo das migalhas que são oferecidas, e diante da provável volta do principal articulador dessas odiosas políticas (na visão do mercado), o que ocasionaria novas perdas (ou mortes na perspectiva do livro) de receitas oriundas do Estado, notadamente do pagamento dos juros e amortizações da dívida pública, eis que o capitalismo internacional, em conluio com os lacaios nacionais, resolveu, ao fim e ao cabo, que o ex-Presidente cometeu crime de natureza gravíssima, sem direito à proteção da Carta Magna contra a prisão antes do trânsito em julgado, retirando-lhe o direito de escrever suas memórias com o crime “quase” perfeito de transformar o Brasil em um país mais digno e igual.
* "Sócio" desde 2018

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