A esperança é a última que morre
Acreditar que as coisas podem ser diferentes é fundamental para a manutenção da própria existência
por Eugênio Mussak |
Creio
que foi a cena mais impressionante que presenciei em toda minha vida.
Eu era um estudante do curso de medicina e estava acompanhando a visita
de um experiente professor à enfermaria de cirurgia cardíaca.No lugar
estavam os pacientes em recuperação, após terem sido operados. Em
geral, as visitas eram de aprendizado meio protocolar, pois víamos
pacientes em estado de controle clínico.Mas naquele dia foi diferente.
Quando entramos, a enfermeira estava acionando o sinal de
alarme,pois um paciente já operado havia sofrido uma parada cardíaca
naquele instante. Foi uma coincidência que salvou uma vida.Mas não foi
fácil, pois minutos preciosos já tinham sido perdidos. O médico
iniciou o procedimento de ressuscitação, com três tipos de ações:
massagem cardíaca, choque e injeção de drogas cardiotônicas. Só que
nada funcionava.
Para tornar o trabalho mais eficiente, o médico colocou o homem
no chão, pois na cama o molejo absorvia parte da massagem. Por mais de
uma hora nos revezamos entre a massagem e a respiração boca-a-boca,
até que o desânimo começou a tomar conta de todos. Foi quando o
professor pediu uma tesoura. Diante de olhares atônitos, ele removeu
os grampos que fechavam o corte no peito recém-operado, cortou os
pontos e simplesmente tomou o órgão com a mão e iniciou uma tentativa
desesperada: uma massagem cardíaca direta. E então, como um milagre, o
coração começou a responder.
Depois, olhando para as caras assustadas dos estudantes, o
professor disse algo como: “Às vezes o paciente parece que morre, mas a
esperança não. Dessa forma conseguimos trazer a vida de volta”. Nunca
mais esqueci, pois aprendi na prática. As coisas só acabam quando não
há mais esperança, por isso dizemos que ela é a última que morre.
A esperança é um mal?
Os gregos da Antiguidade, que têm respostas para tudo a partir de sua
mitologia, dizem que quem criou a humanidade foi o titã Prometeu. Além
disso, ele fez mais duas coisas: roubou o fogo do Olimpo para ser
usado pelos homens e prendeu em uma caixa todos os males, como a
doença, a loucura, a guerra e a morte. E entre todos esses males,
encolhida em um canto, estava a esperança.
Zeus, bravo com o roubo do fogo, prendeu Prometeu e o condenou a um
castigo perpétuo: acorrentou-o a uma rocha, para que seu fígado fosse
comido por um abutre feroz durante o dia e se recuperasse durante a
noite. Assim Prometeu pagaria durante toda a eternidade pela
insolência de tentar comparar-se a um deus. E Zeus fez mais: criou uma
belíssima mulher, a quem chamou de Pandora, e a mandou à Terra, onde
acabou por casar-se com Epimeteu, irmão de Prometeu. Quando encontrou a
caixa que aprisionava os males, Pandora a abriu, liberando-os todos,
que passaram a afligir a humanidade. A partir de então, os humanos
começaram a sofrer com sua condição de fracos, incompletos e mortais,
que só conseguem continuar vivendo e povoando a terra porque da caixa
também saiu a esperança, que passou a habitar entre eles.
Na Grécia, podemos encontrar a estátua dedicada à deusa Elpis –
“esperança”, na língua de Homero. Seu mito é um dos mais repetidos até
os dias de hoje, e também é um dos que suscitam dúvida. Afinal, se a
esperança é uma coisa tão boa, o que estaria ela fazendo junto com os
males humanos, dentro da mesma caixa?
A versão mais aceita para essa questão diz que os criadores dos
mitos acreditavam que a esperança era filha da mentira e, por isso,
considerada má. Segundo eles, a verdade jamais pode ser ignorada, por
mais cruel que seja, e a esperança muitas vezes desvia a atenção dos
homens, afastando-os da realidade, deixando-os ainda mais fracos.
A esperança é boa?
Essa é a questão mais dolorosamente aguda a respeito da esperança. Até
quando devemos nutrir uma esperança sem que ela nos paralise e nos
impeça de tomarmos outro caminho? Será que a esperança só é boa quando
é baseada em probabilidades concretas? Ou ela é boa em si mesma, por
manter a vida ao assumir a forma de uma tocha que nos permite encontrar
algum caminho antes de se apagar? Há defensores para ambas as
alternativas.
A doutrina cristã, por exemplo, relaciona a esperança à fé e à
caridade, para criar as três principais virtudes teologais, ou seja,
aquelas que, por terem origem divina, não carecem de entendimento
lógico. De acordo com essa idéia, temos fé, acalentamos esperança e
praticamos caridade pelos atos em si mesmos. Se tentarmos entender a
nossa fé e justificar nossa caridade, estaremos tentando racionalizar o
que não precisa de razão para existir. E o mesmo aconteceria com a
esperança.
Dessa forma, a esperança é parte do ser humano, como são os seus
cinco sentidos, e só percebemos que a possuímos quando, por algum
motivo a perdemos. Temos esperança de a vida melhorar, de arrumar um
emprego, de a doença sarar, e nos apegamos a ela para tolerar a dureza
do cotidiano, a falta do emprego, a saúde abalada. A esperança é o
ungüento que, se não cura a inflamação, pelo menos diminui a dor.
Mas é claro que há outros pontos de vista. Nietzsche é um dos que pensam diferente. Em seu livro Humano, Demasiado Humano,
ele afirma que a esperança é o pior dos males, pois ela se refere à
expectativa de um futuro incerto, e por isso é enganosa. O filósofo
interpreta que foi o próprio Zeus que ordenou que ela permanecesse
entre os seres humanos apenas para prolongar seu tormento.“ Atinge-se a
verdade”– disse o cáustico filósofo alemão –, “através da descrença e
do ceticismo, e não do desejo infantil de que algo aconteça de certa
forma.”
Acontece que a esperança é uma qualidade demasiadamente humana, e
imensamente necessária à própria manutenção da existência.
Entretanto, cumpre melhor seu papel ao se ancorar na realidade. Quando
a esperança de sarar de uma doença é prescrita com a caneta da
medicina, reforça nosso ânimo sobre a própria esperança. Mas, quando
quem a propõe é o misticismo ou a superstição, pode morrer a esperança
– e o paciente.
Ela é dispensável?
Nunca foi fácil viver. A visão romântica que temos das décadas ou dos
séculos passados não passa de licença poética dos romancistas e dos
cineastas, acobertando a vida dura de nossos antepassados. As benesses
científicas e as conquistas sociais são frutos colhidos do alto da
árvore da história, nos ramos do século 20. Antes, as doenças e as
injustiças matavam com intensidade e com precocidade. No início do
século passado, a esperança – e é assim mesmo que se diz – de vida de um
recém-nascido no Brasil era de apenas 40 anos, e hoje é de cerca de
72 anos.
Entretanto, viver parece ser uma aventura cada vez mais perigosa, mas
isso se deve ao fato de que a caixa de Pandora moderna tem controle
remoto, e despeja sobre nosso sofá tudo o que “dá notícia”. Tsunâmis
inesperados, furacões esperados mas subestimados, terroristas armados
de bombas e de loucura; políticos corruptos livrando suas caras
através de manobras e conchavos. A própria esperança se surpreende e
se assusta quando é usada como cabo eleitoral, sendo nomeada para
vencer o medo.
Apesar de tudo isso, a esperança não é dispensável. Ter esperança
é acreditar no amanhã. É supor que a vida vai melhorar, que o
dinheiro vai dar, que a febre vai diminuir, que a lavoura vai crescer,
que o sorriso vai perdurar. E tudo isso porque nós vamos fazer nossa
parte. Ter esperança é assumir nosso lado divino e nos
responsabilizarmos pela continuação da obra de criação, pondo o cérebro
para pensar, o braço para trabalhar e o coração para amar o que se
quer, o que se faz e o que se sonha.
A pessoa que perde a esperança perde-se a si mesma, porque
esperança pertence à sua essência. O viver tem a esperança do ser. O
sonho tem a esperança da realização.O trabalho tem a esperança do
resultado e do pagamento. O olhar furtivo tem a esperança do sorriso
malicioso. A piada tem a esperança do riso. A música tem a esperança
da emoção. O beijo roubado tem a esperança de mais um beijo
apaixonado.
A verdadeira esperança é aquela que acalanta sem enganar, que
motiva sem iludir, que apóia com bases sólidas, construídas pela
responsabilidade. Essa é a esperança que não morre. E, se morrer, será
a última, pois depois dela não há mais nada.
Eugênio Mussak é consultor em desenvolvimento humano e
colunista de VIDA SIMPLES desde o primeiro número – e tem a esperança
de continuar sendo. www.eugeniomussak.com.br.
Quando entramos, a enfermeira estava acionando o sinal de alarme,pois um paciente já operado havia sofrido uma parada cardíaca naquele instante. Foi uma coincidência que salvou uma vida.Mas não foi fácil, pois minutos preciosos já tinham sido perdidos. O médico iniciou o procedimento de ressuscitação, com três tipos de ações: massagem cardíaca, choque e injeção de drogas cardiotônicas. Só que nada funcionava.
Para tornar o trabalho mais eficiente, o médico colocou o homem no chão, pois na cama o molejo absorvia parte da massagem. Por mais de uma hora nos revezamos entre a massagem e a respiração boca-a-boca, até que o desânimo começou a tomar conta de todos. Foi quando o professor pediu uma tesoura. Diante de olhares atônitos, ele removeu os grampos que fechavam o corte no peito recém-operado, cortou os pontos e simplesmente tomou o órgão com a mão e iniciou uma tentativa desesperada: uma massagem cardíaca direta. E então, como um milagre, o coração começou a responder.
Depois, olhando para as caras assustadas dos estudantes, o professor disse algo como: “Às vezes o paciente parece que morre, mas a esperança não. Dessa forma conseguimos trazer a vida de volta”. Nunca mais esqueci, pois aprendi na prática. As coisas só acabam quando não há mais esperança, por isso dizemos que ela é a última que morre.
A esperança é um mal?
Os gregos da Antiguidade, que têm respostas para tudo a partir de sua
mitologia, dizem que quem criou a humanidade foi o titã Prometeu. Além
disso, ele fez mais duas coisas: roubou o fogo do Olimpo para ser
usado pelos homens e prendeu em uma caixa todos os males, como a
doença, a loucura, a guerra e a morte. E entre todos esses males,
encolhida em um canto, estava a esperança.
Zeus, bravo com o roubo do fogo, prendeu Prometeu e o condenou a um
castigo perpétuo: acorrentou-o a uma rocha, para que seu fígado fosse
comido por um abutre feroz durante o dia e se recuperasse durante a
noite. Assim Prometeu pagaria durante toda a eternidade pela
insolência de tentar comparar-se a um deus. E Zeus fez mais: criou uma
belíssima mulher, a quem chamou de Pandora, e a mandou à Terra, onde
acabou por casar-se com Epimeteu, irmão de Prometeu. Quando encontrou a
caixa que aprisionava os males, Pandora a abriu, liberando-os todos,
que passaram a afligir a humanidade. A partir de então, os humanos
começaram a sofrer com sua condição de fracos, incompletos e mortais,
que só conseguem continuar vivendo e povoando a terra porque da caixa
também saiu a esperança, que passou a habitar entre eles.
Na Grécia, podemos encontrar a estátua dedicada à deusa Elpis – “esperança”, na língua de Homero. Seu mito é um dos mais repetidos até os dias de hoje, e também é um dos que suscitam dúvida. Afinal, se a esperança é uma coisa tão boa, o que estaria ela fazendo junto com os males humanos, dentro da mesma caixa?
A versão mais aceita para essa questão diz que os criadores dos mitos acreditavam que a esperança era filha da mentira e, por isso, considerada má. Segundo eles, a verdade jamais pode ser ignorada, por mais cruel que seja, e a esperança muitas vezes desvia a atenção dos homens, afastando-os da realidade, deixando-os ainda mais fracos.
A esperança é boa?
Essa é a questão mais dolorosamente aguda a respeito da esperança. Até
quando devemos nutrir uma esperança sem que ela nos paralise e nos
impeça de tomarmos outro caminho? Será que a esperança só é boa quando
é baseada em probabilidades concretas? Ou ela é boa em si mesma, por
manter a vida ao assumir a forma de uma tocha que nos permite encontrar
algum caminho antes de se apagar? Há defensores para ambas as
alternativas.
A doutrina cristã, por exemplo, relaciona a esperança à fé e à
caridade, para criar as três principais virtudes teologais, ou seja,
aquelas que, por terem origem divina, não carecem de entendimento
lógico. De acordo com essa idéia, temos fé, acalentamos esperança e
praticamos caridade pelos atos em si mesmos. Se tentarmos entender a
nossa fé e justificar nossa caridade, estaremos tentando racionalizar o
que não precisa de razão para existir. E o mesmo aconteceria com a
esperança.
Dessa forma, a esperança é parte do ser humano, como são os seus cinco sentidos, e só percebemos que a possuímos quando, por algum motivo a perdemos. Temos esperança de a vida melhorar, de arrumar um emprego, de a doença sarar, e nos apegamos a ela para tolerar a dureza do cotidiano, a falta do emprego, a saúde abalada. A esperança é o ungüento que, se não cura a inflamação, pelo menos diminui a dor.
Mas é claro que há outros pontos de vista. Nietzsche é um dos que pensam diferente. Em seu livro Humano, Demasiado Humano, ele afirma que a esperança é o pior dos males, pois ela se refere à expectativa de um futuro incerto, e por isso é enganosa. O filósofo interpreta que foi o próprio Zeus que ordenou que ela permanecesse entre os seres humanos apenas para prolongar seu tormento.“ Atinge-se a verdade”– disse o cáustico filósofo alemão –, “através da descrença e do ceticismo, e não do desejo infantil de que algo aconteça de certa forma.”
Acontece que a esperança é uma qualidade demasiadamente humana, e imensamente necessária à própria manutenção da existência. Entretanto, cumpre melhor seu papel ao se ancorar na realidade. Quando a esperança de sarar de uma doença é prescrita com a caneta da medicina, reforça nosso ânimo sobre a própria esperança. Mas, quando quem a propõe é o misticismo ou a superstição, pode morrer a esperança – e o paciente.
Ela é dispensável?
Nunca foi fácil viver. A visão romântica que temos das décadas ou dos
séculos passados não passa de licença poética dos romancistas e dos
cineastas, acobertando a vida dura de nossos antepassados. As benesses
científicas e as conquistas sociais são frutos colhidos do alto da
árvore da história, nos ramos do século 20. Antes, as doenças e as
injustiças matavam com intensidade e com precocidade. No início do
século passado, a esperança – e é assim mesmo que se diz – de vida de um
recém-nascido no Brasil era de apenas 40 anos, e hoje é de cerca de
72 anos.
Entretanto, viver parece ser uma aventura cada vez mais perigosa, mas
isso se deve ao fato de que a caixa de Pandora moderna tem controle
remoto, e despeja sobre nosso sofá tudo o que “dá notícia”. Tsunâmis
inesperados, furacões esperados mas subestimados, terroristas armados
de bombas e de loucura; políticos corruptos livrando suas caras
através de manobras e conchavos. A própria esperança se surpreende e
se assusta quando é usada como cabo eleitoral, sendo nomeada para
vencer o medo.
Apesar de tudo isso, a esperança não é dispensável. Ter esperança é acreditar no amanhã. É supor que a vida vai melhorar, que o dinheiro vai dar, que a febre vai diminuir, que a lavoura vai crescer, que o sorriso vai perdurar. E tudo isso porque nós vamos fazer nossa parte. Ter esperança é assumir nosso lado divino e nos responsabilizarmos pela continuação da obra de criação, pondo o cérebro para pensar, o braço para trabalhar e o coração para amar o que se quer, o que se faz e o que se sonha.
A pessoa que perde a esperança perde-se a si mesma, porque esperança pertence à sua essência. O viver tem a esperança do ser. O sonho tem a esperança da realização.O trabalho tem a esperança do resultado e do pagamento. O olhar furtivo tem a esperança do sorriso malicioso. A piada tem a esperança do riso. A música tem a esperança da emoção. O beijo roubado tem a esperança de mais um beijo apaixonado.
A verdadeira esperança é aquela que acalanta sem enganar, que motiva sem iludir, que apóia com bases sólidas, construídas pela responsabilidade. Essa é a esperança que não morre. E, se morrer, será a última, pois depois dela não há mais nada.
Eugênio Mussak é consultor em desenvolvimento humano e colunista de VIDA SIMPLES desde o primeiro número – e tem a esperança de continuar sendo. www.eugeniomussak.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário