2.07.2020

Quem ainda se atreve a dizer que Moro é contra corrupção?

Quem ainda se atreve a dizer que Moro é contra corrupção?

Conveniente com corrupção em seu governo, leniente com caixa dois: alguém ainda tem dúvidas da máscara de Sérgio Moro?

A notícia da última semana foi a adesão de Moro ao time de complacentes com corruptos. Isso em razão de em menos de dois anos após a afirmação de que a prática de caixa 2 era pior que a de corrupção, tê-la tirado de seu “pacote anticrime” por não a considerar tão grave quanto a corrupção. Esse cavalo de pau lhe garantiu, inclusive, alguns segundos de sarro no Fantástico do último domingo[1]. Mas essa suposta contradição representa muito mais do que um sincericídio.
Moro construiu seu capital pessoal como implacável caçador de corruptos. Tudo em cima de uma liturgia incompatível com a magistratura da qual até pouco tempo fez parte. Se os fins justificam os meios, viu-se, como um Raskólnikov togado, moralmente autorizado a massacrar a lei e a Constituição – este abjeto bunker de malfeitores – em nome de sua cruzada desinfetante.
O salvo-conduto para o ex-juiz trocar a lei por seus códigos morais – algo que se vem tentando evitar ao menos desde a edição da Magna Carta em 1215 – o levou a ser emoldurado em capas de jornais e revistas como o adversário de seu mais ilustre réu: o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, cuja prisão era considerada por ele e pela turma de Dallagnol uma espécie de troféu.
Lula já possui duas condenações em processos oriundos da lava jato. Ambas completamente fora das regras convencionais previstas em lei. Por exemplo: quando o ex-juiz se abraçou à delação de Léo Pinheiro, sócio da OAS, que incriminava o ex-mandatário, “ignorou” que, em 2016, o mesmo delator afirmara que as obras que a OAS fez no apartamento tríplex do Guarujá e no sítio de Atibaia não foram contrapartidas a algum benefício que o grupo tenha recebido de Lula.
Por não ter dito o que os procuradores queriam ouvir, estes puxaram o freio de mão da delação – ainda não homologada – e resolveram dar a Pinheiro mais alguns meses de cana para refletir melhor[2]. Sem saber o que Lula fez em favor da OAS no caso do tríplex, Moro o condenou por ter cometido um “ato de ofício indeterminado”. Qual? Não se sabe. Eis exatamente a função do “indeterminado”.

Essa é apenas uma das incontáveis evidências de como o ex-juiz colonizou a lei de acordo com o seu (suposto) propósito messiânico de limpar o país da corrupção.
Mais do que uma bala de prata na imagem de salvador, conforme demonstramos na semana passada[3], seu cavalo-de-pau quanto à gravidade do caixa 2 demonstra que o ministro já não faz mais questão de esconder que suas principais intenções nunca incluíram o combate à corrupção como um arcanjo que desce dos céus varrendo a terra de suas verrugas purulentas ao brandir sua espada flamejante.
O Moro ministro dá a cada dia mais provas de que o que de fato queria quando usava a toga era, no mínimo, inviabilizar o programa representado por Lula e pelas esquerdas de modo geral.
Vamos lembrar que Moro aceitou sem titubear o convite de Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça. Em outro momento, tascou no seu novo chefe as características mais improváveis de “moderado” e “sensato”. É óbvio que tamanho deslumbre deixa claro que compactua pelo menos com boa parte dos valores anti-iluministas e de extrema direita representados pelo bolsonarismo, sem falar no antipetismo.
O iluminismo de Montesquieu, a propósito, nasceu para que juízes não tivessem poderes absolutos.
Livrar-se dessa lembrança inconveniente certamente contribuiu para que fizesse suas trouxas e se despedisse da 13ª Vara Federal de Curitiba.

No final das contas, Moro se encontra muito mais à vontade ao lado de seu colega e amigo Onyx Lorenzoni e do clã familiar que hoje se equilibra diante dos escancarados sinais de que durante anos se amparou eleitoralmente em esquemas obscenos envolvendo laranjas e milicianos.
De algoz da presunção de inocência, Moro considerou as desculpas pedidas por Onyx, confesso praticante de caixa 2, e passou a mão na cabeça de Bebianno e do ministro Marcelo Álvaro Antonio ao ser questionado sobre o laranjal no qual estão envolvidos até o pescoço[4].
Só com uma olhadela bem superficial sobre o ministro é capaz de ainda vê-lo como combatente de práticas de malversação do dinheiro público, pois ele mesmo vem fazendo questão de não deixar dúvidas de que esse enfrentamento, com muita timidez, era secundário diante de suas antes inconfessáveis intenções.

Moro participou decisivamente enquanto juiz na eleição
 de Bolsonaro, o qual o convidou em seguida para ser ministro.
 Foto: Agência Brasil.
“Dilma caiu quando era presidente. Lula foi condenado quando liderava a pesquisa presidencial. Cunha foi poupado até a semana seguinte da aprovação do impeachment”, observa Celso de Rocha Barros[5], o qual, mesmo defendendo a neutralidade na lava jato, reconhece que seus efeitos na luta política pendularam claramente para a direita[6] (como se esse pêndulo não tivesse a ver com a politização da operação): “a direita conseguiu segurar os seus no poder até eles perderem importância. A esquerda perdeu uma presidente e um candidato favorito”.
Barros conclui que “isso é poder, meu amigo, poder em estado puro. Aqui já não tem mais norma, não tem mais instituição. E esse exercício descarado de poder é um sintoma claro de que nossa democracia anda bastante doente”. Alguns meses depois da publicação do artigo, Lula seria preso após um inusitado alinhamento do poder judiciário com o calendário eleitoral e teria sua candidatura indeferida pelo TSE, ainda que, com base no artigo 26-C da própria Lei da Ficha Limpa, já existisse jurisprudência amplamente favorável à sua participação no pleito. À época, estava com 39% das intenções de voto. Bolsonaro, com 19%.
A forcinha eleitoral de Moro foi devidamente reconhecida pelo presidente. “O trabalho dele foi muito bem feito”[7], disse. O convite para o Ministério da Justiça surgiu durante a própria campanha, segundo revelou o vice Hamilton Mourão[8]. Foi também no decorrer da campanha que Moro, ainda juiz, levantou cirurgicamente o sigilo da delação de Palocci[9] na qual repetira as mesmas coisas que dissera em delação anterior a qual nem o Ministério Público Federal levou a sério[10].
Assim como a liberação dos áudios da conversa entre Lula e Dilma minou a última estratégia de sobrevivência do governo petista, o fim do sigilo da delação de Palocci deu munição para o principal adversário de Fernando Haddad (adivinhem quem).
O ex-magistrado deve dormir com a tranquilidade de quem fez o trabalho “muito bem feito”, cumprindo o papel de pôr areia na candidatura de Lula e assim pavimentar o caminho para a ascensão triunfante do bolsonarismo – tudo às custas da sua imagem de paladino.  Mas com essa imagem nem ele se importa mais.

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