10.23.2008

Sangue é a base da vida para organismos complexos

Você nasce com pouco mais do que meio litro dele, na idade adulta tem aproximadamente quatro litros e, se em qualquer momento você repentinamente derramar mais de um terço da sua parte, faça uma transfusão ou prepare-se para conhecer seu coveiro.

As culturas humanas há tempos reconheceram que o sangue é essencial à vida e atribuíram a ele uma vasta disposição de poderes mágicos e sub-rotinas metafóricas. Dizia-se que emplastros e bebidas de sangue curavam cegueira, dores de cabeça, gota, bócio, lombriga e cabelos brancos. A Bíblia menciona o sangue mais de 400 vezes, William Shakespeare se aproxima de 700. Está tudo no sangue, seu temperamento, seu destino. Você é uma princesa mesopotâmica de sangue azul ou um macho americano de sangue vermelho?

Mesmo assim, para os cientistas que estudam o sangue, mesmo os mais extravagantes conhecimentos sangüíneos empalidecem se comparados às maravilhas bioquímicas, evolucionárias e de engenharia do artigo genuíno. O tecido fluido que chamamos de sangue não só nos alimenta e limpa, entregando oxigênio fresco e outros nutrientes para todos os 100 trilhões de células do corpo e expulsando o dióxido de carbono, amônia e outros lixos metabólicos. Ele não só abriga o sistema imunológico que nos defende de todo mundo.

Nosso sangue é a fundação de nossa própria existência como animais multicelulares, diz Andrew Schafer, professor do Weill Cornell Medical College e presidente da Sociedade Americana de Hematologia. O sangue é aquele tecido que entra em contato com todos os outros tecidos do corpo, e é através do sangue que nossas distintas partes se comunicam, que nossos órgãos cooperam entre si. Sem o sistema circulatório, não haveria civilização interna, nem meios de garantir a devoção ordenada à causa comum – que somos nós. “Trata-se de uma enorme rede de comunicações”, diz Schafer – o sistema de telefonia celular original, com 100 trilhões de usuários.

O sangue também pode ser imaginado como um oceano particular, uma recapitulação de como era a vida durante todos os anos que passamos boiando como organismos unicelulares microscópicos, recolhendo nutrientes da água do mar e eliminando dejetos de volta à água do mar, diz Schafer. Não somente o sangue é formado principalmente por água, mas sua porção aquosa, o plasma, tem uma concentração de sal e outros íons que é surpreendentemente similar à água do mar.

É claro, não podemos nos basear no vento e no clima para manter nossos mares ocultos saudavelmente revolvidos e arejados, então desenvolvemos um respirador e um mecanismo ativo de bombeamento – os pulmões e o coração. Nossos quatro litros de sangue circulam através do dueto da energia talvez 60 vezes por hora, absorvendo oxigênio fresco diretamente do tecido estilo colméia dos pulmões e se dirigindo ao musculoso coração, que então dispara o fluido enriquecido para fora.

Distribuir oxigênio é tarefa das células vermelhas do sangue, às quais os pesquisadores de hematologia se referem com um misto de afeição e pavor. “As células vermelhas possuem enormes habilidades”, diz Stanley Schrier, da Escola de Medicina da Universidade de Stanford. Elas abrem mão de muita coisa para criar espaço para suas hemoglobinas, proteínas que conseguem se juntar ao oxigênio e que dão ao sangue seu brilhante resplendor de granadina. Sozinhas entre células do corpo, células vermelhas na maioridade descartam seus núcleos e DNA para acomodar a carga.

E quão rudemente elas são tratadas. Uma célula vermelha em repouso parece um pãozinho gorducho e mede cerca de 8 mícrons (um mícron equivale a um milionésimo de metro) de diâmetro. Mas para alcançar todos seus distantes clientes sedentos de oxigênio, as células precisam se espremer através de vasos capilares com menos da metade de sua largura – o que elas executam se achatando em fios e se arrastando em fila única ao longo da parede capilar, como esteiras de tanques agarrando a estrada.

O sangue também é um gênio, capaz de sustentar dois estados contraditórios sem ficar louco. Para ir e voltar incessantemente ao longo dos 90 mil quilômetros de artérias, veias e capilares do corpo humano, o sangue precisa ser fluido.

Entretanto, embora os componentes de nosso sangue sejam constantemente substituídos, encaminhando os envelhecidos e desgastados ao baço e ao fígado – as “sepulturas de células sanguíneas”, segundo Schafer – e completando o tecido sangüíneo com células novas produzidas na medula óssea, o ciclo de troca é gradual e não podemos perder tudo numa grande corrente criada pelo ferimento de um predador. O sangue, então, se distingue da água do mar, ou até do leite materno – outro premiado fluido corporal –, de uma excepcional maneira: ele está sempre pronto para coagular, para abandonar a liquidez e adotar a solidez.

Para decidir se flui ou coagula, o sangue segue as pistas de suas cercanias. À medida que o sangue desliza através do tamanho de seu circuito tubular, as comparativamente pesadas células vermelhas são direcionadas ao centro do redemoinho, diz James N. George, hematólogo do Centro de Ciências da Saúde da Universidade de Oklahoma, enquanto dois outros personagens, mais leves, são empurrados para a periferia: as células brancas que agem como guerreiros de imunidade, e as plaquetas, minúsculas células que já foram chamadas de band-aids do corpo humano. Sua marginalização não é acidental. “Elas são células de vigilância”, diz George. “É quase como se elas estivessem patrulhando em busca de problemas.”

As células brancas buscam sinais de micróbios invasores, enquanto as plaquetas procuram vazamentos. Enquanto as plaquetas encontrarem intacta a lisa superfície do endotélio, tecido que forma a camada interna dos vasos sanguíneos, elas continuam se movendo.

Mas até mesmo o mais insignificante corte ou falha na lisa parede da veia irá expor algumas das fibras que estão por trás, e as plaquetas são preparadas para detectar instantaneamente a imperfeição. Uma plaqueta de passagem se grudará à fibra destruída e mudará de forma, de arredondada para octópode, que por sua vez atrai outras plaquetas, formando um pequeno calombo. “Se o corte é pequeno, isso é tudo de que você precisa”, diz George. Se não, tem início a próxima fase de controle de fluxo. Sinais das plaquetas estimulam os fatores de coagulação do sangue, proteínas de flutuação livre que conseguem se juntar e formar band-aids maiores e melhores. “Plaquetas e fatores de coagulação foram um casal perfeito”, diz Schafer.

Até certo ponto. Assim como nossas células de imunidade podem sofrer disfunções e começar a atacar nosso próprio tecido corporal, um coágulo exageradamente zeloso pode trazer conseqüências terríveis. Se acontecer de um coágulo cortar o fluxo de sangue a um órgão vital como o coração ou o cérebro, o único a tocar harpa será você.

Fonte: Globo.com

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