6.12.2009

Marketing científico


Marketing científico

A divulgação de dados científicos é uma das formas mais comuns de que a sociedade dispõe para se educar a respeito do que se passa nos laboratórios de pesquisa, amplamente financiados com dinheiro público, fortalecendo a confiança da sociedade em seus cientistas.

Quando um resultado científico é divulgado através da mídia, a sociedade acaba por aceitar a informação como correta. Isso porque ela não possui conhecimento suficiente para questionar experimentos sofisticados ou ultraespecializados. Acaba confiando demasiadamente no jornalista e/ou meio de comunicação, assumindo que está lidando com dados científicos, comprovados, revisados e publicados. Infelizmente, hoje em dia essa é uma atitude passiva e não combina com o rápido crescimento do conhecimento gerado através das novas tecnologias.

Um dos problemas é a divulgação de resultados preliminares ou ainda não publicados em revistas científicas de impacto internacional. Em geral, esses dados preliminares estão sempre reportando grandes avanços ou descobertas fenomenais. Infelizmente, a maioria dessas pesquisas acaba por não passar pelo crivo da revisão por pares (forma que os cientistas encontraram de julgar a qualidade de um trabalho científico) e nem chega a ser publicada. Outras acabam por alterar as conclusões originais, invalidando o que foi previamente divulgado.

Quando isso acontece, as conseqüências são sérias.
Cada vez que a mídia divulga algo errado, acaba por abalar a credibilidade de ambos: cientistas e jornalistas. Além disso, pode-se causar pânico ou esperança desnecessária, uma vez que as pessoas começam a imaginar as conseqüências da nova descoberta, como a descoberta de um vírus mortal ou a cura para uma doença. Por último, diria que as agências de fomento ou doadores filantrópicos em potencial podem evitar o investimento em determinada área científica, atrasando o conhecimento. Todo mundo perde.

Em alguns casos, o estrago é difícil de consertar. Vou exemplificar com um caso conhecido e que, apesar de ter sido solucionado cientificamente, ainda não está claro para a sociedade em quem acreditar.
Em 1998, a famosa revista médica inglesa “The Lancet” publicou um artigo de autoria de Andrew Wakefield sobre uma possível ligação entre autismo e a vacina contra sarampo. Essa ligação nunca foi confirmada, e diversos trabalhos científicos foram publicados posteriormente negando qualquer correlação entre vacinação e incidência de autismo. Infelizmente, o mal já estava feito, e os dados preliminares originais foram amplamente divulgados pela mídia inglesa e mundial. Pais assustados com a nova informação deixaram de vacinar seus filhos, aumentando drasticamente o número de casos de sarampo na Inglaterra.

A história tem um apelo quase novelístico, mantendo-se na mídia quase diariamente. Os pais de crianças autistas têm, finalmente, uma explicação conveniente para justificar o desenvolvimento da doença. Alguns até hoje acreditam que essa é realmente a causa, rejeitando qualquer outro dado científico que mostre o contrário. Preferem acreditar que exista uma conspiração mundial para esconder a verdade. A história rende.

Mas não quero passar a impressão que sempre a culpa é do jornalista, que não entende o que, nós, nobres cientistas, querem dizer. Muitas vezes, o cientista também se apóia na mídia.
Esse apoio, em geral, tende a ser saudável, auxiliando a compreensão e digestão das novas descobertas pela sociedade, que passa então a julgar se a pesquisa é relevante ou não. Agências de fomento estimulam, corretamente, os cientistas a divulgar seus dados na mídia. O problema é quando a divulgação acontece antes da publicação ou confirmação dos dados. Essa é uma área cinza e, a meu ver, só existe uma solução: jamais divulgar dados não publicados.
Lembro de um orientador que costumava dizer que dados não publicados simplesmente não existem. É verdade, na ciência é assim. Nos EUA, onde a competição e a massa crítica científica são maiores, isso é levado muito a sério, e a divulgação antes da hora é vista quase como charlatanismo. Além de perder potenciais diretos de patente, o cientista perde o respeito de colegas e da instituição de vínculo que, dependendo do estrago, pode até repreender o pesquisador com a expulsão.

Jornalistas também poderiam adotar medida semelhante, colocando o sarrafo na mesma altura. Aliás, a sociedade poderia elevar o nível e se proteger ao exigir que as matérias de divulgação científica mencionem sempre onde o trabalho foi, ou está, sendo publicado. Reparem que toda grande matéria, ou respeitável jornalista, menciona a publicação dos dados como referência para maiores detalhes, caso o leitor deseje saber mais. Ao perambular pelos dois mundos, eu mesmo tenho me deparado com leitores exigindo as referências corretas das pesquisas que cito nos textos. Os leitores dessa coluna estão corretos e passei a me preocupar ainda mais com isso quando escrevo um texto de divulgação científica.

A excitação com os resultados preliminares é perfeitamente natural, mas não justifica os potenciais danos sociais. Além disso, que lição estaríamos dando aos novos pesquisadores? Que é suficiente ou melhor publicar no jornal ou na TV do que numa revista científica? E aos novos jornalistas? Que pouco importa se o trabalho foi publicado ou não? Que o furo é melhor do que o conteúdo? Infelizmente, tanto jornalistas quanto cientistas são seres humanos, vaidosos, que dividem um medo em comum: o medo da insignificância, de passar desapercebido. A fórmula contra esse medo é achar valor no próprio trabalho. Para os cientistas esse valor pode estar na publicação nas melhores revistas. Para os jornalistas, na matéria imortal.

Globo.com

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