Quem veio primeiro? O subfinanciamento do SUS ou valores arraigados de distinção social?
Durante os séculos XIX e XX, partidos políticos,
sindicatos de trabalhadores e entidades empresariais divergiram sobre a
natureza pública ou privada do sistema de saúde. No mesmo momento em que
os socialistas Fabianos implementaram o Estado de Bem-Estar na
Inglaterra, rompendo com as tendências liberais, lideranças sindicais e
empresariais nos EUA se posicionaram radicalmente contra a intervenção
do Estado na saúde. O extravagante consenso dos norte-americanos se
baseou na premissa de que o Estado atrapalharia negociações, mais
vantajosas para os trabalhadores, conduzidas pelas entidades sindicais.
O ponto de convergência entre sistemas opostos foi a participação dos trabalhadores, quer no modelo tripartite tradicional do seguro social quer no orientado para o mercado. Por volta dos anos 1950, as entidades sindicais participaram ativamente do debate sobre a criação dos sistemas universais de saúde europeus e controlaram pelo menos um quarto dos contratos dos planos privados de saúde nos EUA.
No Brasil, a unificação dos institutos de aposentadorias e pensões, conduzida pelo regime militar, efetivou-se mediante a exclusão dos trabalhadores dos núcleos decisórios sobre políticas previdenciárias, inclusive as de saúde. O lugar dos trabalhadores no tradicional modelo bismarckiano foi extinto, dado como retrógrado (politiqueiro e ineficiente).
O portentoso Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) erigiu-se à base de muita tecnocracia e, é claro, nomeações de cargos pela Arena. O idílio tecnicista-arenista durou até o inicio dos anos 1980, quando ficou evidente que a via privatizante da política médica da Previdência Social tinha dado com os burros n’água. Corrupção, ineficiência e esgotamento de uma política de saúde excludente, centralizadora e autoritária foram sinais e sintomas exuberantes de uma promessa não cumprida.
Por um breve intervalo de tempo, logo após a Constituição de 1988 - que inscreveu a saúde como direito de cidadania e aprovou a criação de instâncias de participação social como conselhos e conferências de saúde – parecia que, apesar e por causa das desigualdades, seria construído um sistema brasileiro de saúde público universal. Mas a expectativa de superar a herança privatizante durou pouco. Os trabalhadores que saíram do regime militar vinculados a planos privados de saúde não correram para os braços do SUS e logo depois integrantes de outras categorias, inclusive servidores públicos, também aderiram passiva ou ativamente à assistência suplementar.
Quem veio primeiro? O subfinanciamento do SUS ou valores arraigados de distinção social? Eis a questão que fica na ponta da língua, em todos os debates sobre a saúde, mas não sai da boca para fora. Será que ao fim e ao cabo os trabalhadores brasileiros não querem um sistema de saúde público? Resultados de pesquisas de opinião sobre as preferências sobre saúde pública ou privada (se é que são capazes de mensurar o que se propõem com metodologias adequadas) são contraditórios, quando não tendenciosos. Não existe nada que comprove uma posição ideológica dos trabalhadores contrária à saúde pública. A opção pelos planos privados é circunstancial, uma alternativa ao racionamento da assistência da rede SUS. Todos querem saúde, educação, transportes e outros serviços suficientes e de boa qualidade. A opção pela escola fundamental privada e a universidade pública, o plano privado de saúde e a busca de determinados serviços públicos de excelência para o tratamento de determinados problemas são demonstrações claras de procura pelo melhor atendimento. Se a carapuça da privatização veste bem em alguém não é nos trabalhadores e sim nos sucessivos governos democráticos, que mesmo compostos por coalizões políticas distintas, se comportaram homogeneamente quanto à emissão e renovação de dispositivos institucionais para estimular a oferta e a demanda de planos de saúde.
Como fica muito embaraçoso admitir que um partido assumidamente progressista seja o protagonista da privatização da saúde é melhor botar a culpa em quem está do lado, mas um pouco abaixo na hierarquia do poder real e um tanto acima em termos de prestigio social.
Quem melhor do que os sindicatos de trabalhadores para desempenhar o papel de conservar uma ordem corporativista, desigual?
Anteriormente, a participação dos trabalhadores na definição dos rumos da saúde no Brasil foi tolhida. O Partido dos Trabalhadores, agora no poder, acena com a extensão de subsídios públicos a empresas de planos e seguros de saúde e hospitais privados em consonância com um suposto desejo privatizante dos trabalhadores tradicionais que teria contagiado a “nova classe média”.
Trata-se de uma armadilha difícil de desarmar, mas, que tem um tempo de vida útil curto. Quem será o responsável pela nova crise causada pela privatização da saúde, que já pode ser avistada no horizonte com as todas as cores (basta mencionar as restrições de coberturas e os elevados valores dos reajustes de preços dos planos privados de saúde)? O governo, os partidos políticos ou sindicatos, que da definição dos rumos das políticas de saúde ainda não participam?
Ligia Bahia é Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
O ponto de convergência entre sistemas opostos foi a participação dos trabalhadores, quer no modelo tripartite tradicional do seguro social quer no orientado para o mercado. Por volta dos anos 1950, as entidades sindicais participaram ativamente do debate sobre a criação dos sistemas universais de saúde europeus e controlaram pelo menos um quarto dos contratos dos planos privados de saúde nos EUA.
No Brasil, a unificação dos institutos de aposentadorias e pensões, conduzida pelo regime militar, efetivou-se mediante a exclusão dos trabalhadores dos núcleos decisórios sobre políticas previdenciárias, inclusive as de saúde. O lugar dos trabalhadores no tradicional modelo bismarckiano foi extinto, dado como retrógrado (politiqueiro e ineficiente).
O portentoso Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) erigiu-se à base de muita tecnocracia e, é claro, nomeações de cargos pela Arena. O idílio tecnicista-arenista durou até o inicio dos anos 1980, quando ficou evidente que a via privatizante da política médica da Previdência Social tinha dado com os burros n’água. Corrupção, ineficiência e esgotamento de uma política de saúde excludente, centralizadora e autoritária foram sinais e sintomas exuberantes de uma promessa não cumprida.
Por um breve intervalo de tempo, logo após a Constituição de 1988 - que inscreveu a saúde como direito de cidadania e aprovou a criação de instâncias de participação social como conselhos e conferências de saúde – parecia que, apesar e por causa das desigualdades, seria construído um sistema brasileiro de saúde público universal. Mas a expectativa de superar a herança privatizante durou pouco. Os trabalhadores que saíram do regime militar vinculados a planos privados de saúde não correram para os braços do SUS e logo depois integrantes de outras categorias, inclusive servidores públicos, também aderiram passiva ou ativamente à assistência suplementar.
Quem veio primeiro? O subfinanciamento do SUS ou valores arraigados de distinção social? Eis a questão que fica na ponta da língua, em todos os debates sobre a saúde, mas não sai da boca para fora. Será que ao fim e ao cabo os trabalhadores brasileiros não querem um sistema de saúde público? Resultados de pesquisas de opinião sobre as preferências sobre saúde pública ou privada (se é que são capazes de mensurar o que se propõem com metodologias adequadas) são contraditórios, quando não tendenciosos. Não existe nada que comprove uma posição ideológica dos trabalhadores contrária à saúde pública. A opção pelos planos privados é circunstancial, uma alternativa ao racionamento da assistência da rede SUS. Todos querem saúde, educação, transportes e outros serviços suficientes e de boa qualidade. A opção pela escola fundamental privada e a universidade pública, o plano privado de saúde e a busca de determinados serviços públicos de excelência para o tratamento de determinados problemas são demonstrações claras de procura pelo melhor atendimento. Se a carapuça da privatização veste bem em alguém não é nos trabalhadores e sim nos sucessivos governos democráticos, que mesmo compostos por coalizões políticas distintas, se comportaram homogeneamente quanto à emissão e renovação de dispositivos institucionais para estimular a oferta e a demanda de planos de saúde.
Como fica muito embaraçoso admitir que um partido assumidamente progressista seja o protagonista da privatização da saúde é melhor botar a culpa em quem está do lado, mas um pouco abaixo na hierarquia do poder real e um tanto acima em termos de prestigio social.
Quem melhor do que os sindicatos de trabalhadores para desempenhar o papel de conservar uma ordem corporativista, desigual?
Anteriormente, a participação dos trabalhadores na definição dos rumos da saúde no Brasil foi tolhida. O Partido dos Trabalhadores, agora no poder, acena com a extensão de subsídios públicos a empresas de planos e seguros de saúde e hospitais privados em consonância com um suposto desejo privatizante dos trabalhadores tradicionais que teria contagiado a “nova classe média”.
Trata-se de uma armadilha difícil de desarmar, mas, que tem um tempo de vida útil curto. Quem será o responsável pela nova crise causada pela privatização da saúde, que já pode ser avistada no horizonte com as todas as cores (basta mencionar as restrições de coberturas e os elevados valores dos reajustes de preços dos planos privados de saúde)? O governo, os partidos políticos ou sindicatos, que da definição dos rumos das políticas de saúde ainda não participam?
Ligia Bahia é Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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