7.29.2010

Vidas passadas:Quantas e quais você já teve?

Luís Antônio Giron

Aprenda a contá-las com Paulo Coelho
O escritor e mago Paulo Coelho, em seu novo livro, O aleph, sugere uma técnica para conhecer nossas vidas passadas. Ele a aprendeu durante a viagem que realizou na ferrovia Transiberiana em 2006. Na linha sinuosa descendente que lembra um tobogã ligando Moscou a Vladivostok, Coelho foi orientado pelo xamã do lago Baikal, no meio do caminho, a’ praticar o ritual do anel do fogo dourado. “Viver é treinar”, diz ele em O aleph. “Quando treinamos, nos preparamos para o que está adiante. Vida e morte perdem o significado, existem apenas os desafios que são recebidos com alegria e superados com tranquilidade”. Será possível contar e conhecer nossas existências anteriores?

Jamais cogitei da possibilidade de um exercício para recuar às transmigrações espirituais pregressas. Quem não viveu outras encarnações? Já fui um padeiro egípcio que preparava os alimentos para que o faraó os levasse ao outro mundo. Frequentei a Academia, onde assisti às aulas de Platão. Invadi Roma acompanhando as hordas do rei godo Alarico, em 476 d.C. Arei os campos da Panônia na Idade Média. Compus a ópera Il Ritorno di Euridice, na condição de membro da Camerata Bardi em Florença, em 1590. Sertaneja, escapei da Chacina de Canudos em 1896, levando na trouxa uma coleção de prédicas do Antônio Maciel, meu padrinho Conselheiro. Em 1931, médium cego, psicografei a obra de diversos fantasmas, entre eles o espírito do escritor Isidore Ducasse, mais conhecido como Lautréamont. Ele me ditou o livro Les nouveaux chansons de Maldoror (As novas canções de Maldoror), uma sequência do misterioso volume publicado em 1868... Minhas vidas passadas são incontáveis, desde que possa imaginá-las. Sou capaz de viajar por horas nesse tipo de devaneio. E posso até eventualmente acreditar no que penso que vivi.

Mas como o leitor já deve ter percebido, as fantasias que me assaltam são condicionada por leituras de filosofia, história de Roma e do Brasil., musicologia e a vida de Chico Xavier. Tudo, enfim, que me tem fascinado de alguma forma ao longo desta existência. Não tenho autoridade para afirmar que aquilo que imagino ter vivido eu de fato vivi. A gente se acostuma a reprimir tais pensamentos como heresias contrárias à formação monoteísta. Os católicos, por exemplo, repudiam a reencarnação. Na infância, aprendi que Deus é invisível e infungível e a morte, um evento único e irremediável. A transmigração das almas não existe. O que, para mim, soou a princípio como um alívio, já que permanecer neste carrossel às escuras do mundo, a passar de um corpo a outro até que alma se purifique, parecia-me o próprio inferno.

Agora, porém, ao ler O aleph, sinto que devo dar à ideia da metempsicose o benefício da dúvida. Conheço Paulo Coelho há 12 anos e tenho tido a oportunidade de conversar com ele em diversas ocasiões. Já li todos os livros dele: este é o décimo quinto em 28 anos de atividade bibliográfica. Ele se diz um católico temente a Deus e membro de uma ordem secreta de cavaleiros papistas, a Ordem de RAM, ou Regnus Agnus Mundi, ou Reino Mundial dos Cordeiros, fundada em 1492. Uma organização sem sede que só tem um ensinamento: “Só se aprende quando se dá um passo adiante”, nas palavras de Coelho. Seguindo esse princípio, ele percorreu em 1986 o Caminho de Santiago de Compostela e, em 1989, o Caminho de Roma. No primeiro, perseguia o sonho de ser escritor. No segundo, de completar sua formação espiritual. Ambas serviram para que Coelho buscasse a resposta para o que estava faltando em sua vida. Quem quer seguir os passos do escritor deve ler O diário de um mago (1987) e As valkírias (1992), narrativas autobiográficas coalhadas de esoterismo de que O aleph é a continuação.

Depois de duas décadas se devotando à ficção, o escritor finalmente retorna a seu altar beatífico. Mas agora, em vez de buscar respostas para sua vida, o místico peregrinou para reconquistar sua percepção e sensibilidade para o mundo. Uma nova busca espiritual. Na conversa que teve com seu mestre, J. (que um dia já foi Petrus, talvez nomes que se refiram a Pedro, fundador da Igreja Católica, e a Jesus Cristo) na sua casa nos Pireneus, no Sul da França, J. o aconselhou a viajar no tempo e no espaço, rumo a vidas passadas. Coelho responde a seu mestre já ter visto suas duas reencarnações. “Cometi erros que não posso consertara gora”, diz Coelho. “E você me disse que não tornasse a fazer isso, pois só iria aumentar minha culpa”. Explica Coelho que viajar por vidas passadas “é como abrir um buraco no solo e deixar que o fogo do andar de baixo incendeie o presente.” J. se mostra irredutível: “Não adianta ficar aqui usando palavras que não querem dizer nada. Vá experimentar. Hora de você sair daqui. Reconquistar o seu reino, agora corrompido pela rotina. (...) Comprometa-se!” É então que, em maio de 2006, ele inicia o que ele vem chamar de Caminho de Jerusalém. Isso porque na cidade sagrada ele recebeu um oráculo segundo o qual ele conheceria em breve uma mulher turca que derramaria seu sangue. Deixando-se carregar pelo acaso, ele acabou por embarcar no vagão de luxo de um trem em Moscou, seguido por uma equipe de editores, o tradutor Yao, também praticante de aikido, e pela jovem violinista Hilial, estudante de música em Moscou, mas... de origem turca. A bela moça o persegue e o tenta ao longo dos 9 mil quilômetros do trajeto. Ao contemplar o fundo dos olhos verdes dela, o viajante mergulha no aleph, “o ponto onde tudo está no mesmo lugar ao mesmo tempo”. E é neste fulcro de sincronicidade ele volta a uma de suas vidas passadas, em 1492, ano em que ele, na condição de monge dominicano na cidadela de Córdoba, na Espanha, torturou na roda e enviou á fogueira oito jovens hereges, inclusive a alma de Hilal.

Para compreender melhor a situação, numa das primeiras paradas na Sibéria, Yao conduz o escritor ao esconderijo do xamã do lago Baikal para tomar parte do ritual do fogo dourado . O velho feiticeiro acende o fogo em um buraco sobre a terra, pega um tambor, abre uma garrafa e inicia o ritual. Coelho nota que o xamã siberiano (foi na Sibéria que surgiu o termo “xamã”) comanda um ritual que é o mesmo dos seus colegas mexicanos, dos pajés da floresta amazônicas, dos pais-de-santo do candomblé, dos aborígines da Austrália, dos espíritas na França, dos mórmons em Utah e dos carismáticos da Igreja Católica. É sempre uma cerimônia que objetiva libertar a alma do corpo. O ritmo do tambor se acelera, à medida que as chamas douradas dançam com selvageria. “Neste momento seu corpo está na terra, mas seu espírito está comigo aqui nas alturas, e isso é tudo o que posso lhe oferecer:um passeio nos céus de Baikal”, diz o sacerdote. “Você já viveu isso antes e tornará a viver muitas vezes. Um amigo de seus amigos é um amigo da águia do Baikal. Nada de especial vai acontecer esta noite; você não terá visões, experiências mágicas, transes para se comunicar com os vivos nem com os mortos. Não receberá nenhum poder especial. Apenas exultará de alegria enquanto a águia do Baikal mostrar o lago para a sua alma. Você não está vendo nada, mas seu espírito neste momento se delicia nas alturas”.

Cercada pelos anéis de fogo, a alma do antigo pecador se purifica e descobre sua missão nesta em outras vidas. “Da mesma maneira que está transformando sua vida, transforme a dos outros à sua volta”, diz o xamã. “Quando pedirem, não se esqueça de dar. Quando baterem à sua porte, não deixe de abrir. Quando perderam algo e vierem até você, faça o que estiver ao seu alcance e encontre o que se perdeu. Mas, antes, peça, bata à porte e descubra tudo o que está perdido em sua vida. Um caçados sabe o que o espera: a caça ou ser devorado por ela.”

De volta ao trem, Paulo Coelho enfrenta seu último obstáculo: a tentação. Hilal se despe diante dele e faz um solo arrebatador de violino. Ela lhe impõe um ferimento que sangra. Coelho pede perdão à jovem, e, sem tocá-la uma só vez, tanto reencontra a paz que perdera como reconquista o seu reino: o reino da liberdade e do imprevisível. No último encontro secreto com Hilal, quando o trem se aproxima da estação final, o escritor revê o aleph nos olhos dela, e, enquanto solta sua mão, ilumina-se: “Vou para todas as vidas que vivi, viverei e estou vivendo.”

. Para chegar à constatação definitiva, fruto de um novo aprendizado místico, Paulo Coelho teve de recorrer ao xamã siberiano, como podia tê-lo feito junto a outros sacerdotes de muitas outras religiões Tal consciência de todas as vidas ao mesmo tempo e de purgação simultânea dos pecados me parece uma situação insustentável. Até porque estamos falando de um dos bastiões do catolicismo laico, um imortal da Academia Brasileira de Letras, devoto de São João e Guerreiro da Luz. Vidas passadas são incompatíveis com um cavaleiro romano, mesmo que mergulhado no sincretismo brasileiro. E até a indulgência plenária que o escritor recebeu me parece estranha. Ao revolver minhas vidas passadas imaginadas, percebo que em nenhuma delas (exceto a do saque de Roma) eu necessitaria de atos de contrição para a remissão de erros. Isso porque, talvez, eu não tenha descoberto nenhuma vida antes desta, ou tenha sido excessivamente limitado para tanto por ter sido doutrinado que há uma única vida na Terra..

Quantas e quais vidas você já teve? E se as teve será que sentiria a compulsão de treinar um exercício mágico e acender a fogueira para que as existências passadas invadissem e massacrassem o seu presente com lembranças ruins? De minha parte, prefiro me manter em um perpétuo agora e enterrar até mesmo o que já experimentei nesta vida - que já parece compreender muitas. Meu misticismo é precário.
Luís Antônio Giron
Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA,

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