PUBLICADO NO CONJUR
POR WILLER TOMAZ
No argumento da absolvição quanto ao crime de corrupção passiva, a defesa alega que não se caracterizou o chamado “ato de ofício” (de Lula, como presidente) que tenha beneficiado a empresa OAS. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio, alega-se que não houve uma conduta autônoma de Lula para tentar ocultar o triplex no Guarujá (SP).
Se acolher a tese de absolvição da defesa, o STJ inocentará Lula. A única sensibilidade deste ponto do recurso da defesa está na possibilidade da Corte invocar a Súmula 7, segundo a qual “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. Ou seja, pode o STJ se negar a analisar esse tema por não lhe caber analisar provas e fatos a fim de apurar se o ex-presidente é culpado ou inocente, restringindo a sua reanálise às questões jurídicas, de direito federal, como a violação a regras do Código de Processo Penal.
Nesse sentido, o recurso do ex-presidente merece melhor atenção, pois as questões de Direito podem afetar o desfecho do processo, resultando ulteriormente, por exemplo, em uma anulação da condenação ou em uma absolvição pela extinção da punibilidade pela prescrição. Ao meu ver, há boas razões para o Superior Tribunal de Justiça acolher o recurso e declarar a nulidade do processo, com efeitos diretos na condenação, podendo levar à absolvição.
Na hipótese da anulação do processo, entre as questões jurídicas levantadas no recurso, a defesa afirma a suspeição do então juiz do caso, Sergio Moro, que atuou sem o dever de imparcialidade ao negar a produção de provas periciais, testemunhais, complementares e violou o princípio de paridade de armas; e a incompetência da 13ª Vara Federal em Curitiba para processar e julgar o caso, ao argumento de que a Petrobras é sociedade de economia mista; além da incompetência da Justiça Federal para julgar o caso, devendo o STJ anular o processo e remetê-lo à Justiça Eleitoral, baseado na afirmação de suspeita de crime eleitoral e na decisão do Supremo Tribunal Federal, do mês de março, que firmou a competência desta Justiça especializada para processar e julgar crimes comuns conexos com crimes eleitorais.
Embora a competência da Justiça Eleitoral para processar crimes comuns conexos com crimes eleitorais seja fruto de um entendimento novo, o fato é que o motivo jurídico desse entendimento, o princípio do juízo natural, já existia desde de 1988, isso para restringir apenas à atual Constituição, pois as anteriores também o previam, com exceção da de 1937. Então não é algo novo, um elemento surpresa para a acusação e nem para os órgãos jurisdicionais. O próprio Código de Processo Penal previa, desde 1948, com a redação dada pela Lei n. 263, de 23 de fevereiro daquele ano, ao artigo 78, inciso IV, que no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.
Tais regras visam garantir a independência e a imparcialidade do órgão julgador, e informam que ninguém será sentenciado senão pela autoridade judiciária competente, e que não haverá tribunal nem juízo de exceção. Os próprios acusadores da Força-Tarefa utilizaram as redes sociais para alardear que os supostos crimes envolvendo a Petrobras e o ex-presidente eram praticados em contexto de crimes eleitorais. Assim, se a Justiça Eleitoral é competente para processar e julgar os atos do ex-presidente, porquanto em contexto de delitos eleitorais, então, por lógica, o julgamento da Justiça Federal deve ser declarado nulo, pois proferido por juízo incompetente, quiçá por juízo de exceção, quando, repito, as regras de competência já existiam há décadas.
Além disso, a própria atuação do ex-juiz revela indícios idôneos de quebra do dever de imparcialidade, pois houve no processo uma sucessão de arbitrariedades que acabaram por fulminar a capacidade da defesa de produzir relevantes provas testemunhais, periciais e documentais, que é exatamente o anseio crucial tanto da acusação quanto da defesa no processo penal.
Veja: a prova é o divisor de águas entre a absolvição e a condenação. Mas como resultado da quebra do dever de imparcialidade, de um lado, vimos todas as instituições sólidas do sistema repressivo, um Estado-juiz, um Ministério Público e todos os órgãos da polícia investigativa para acusar, produzir provas e decidir o destino dos acusados. De outro, o réu, solitário, impedido de se defender a contento, muitas vezes desrespeitado inclusive na figura do seu advogado, que sofreu verdadeiro vilipêndio em suas prerrogativas profissionais. É perigoso. É uma violação grave ao sagrado direito de defesa, à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal.
Quem acha que é exagero, basta abrir os olhos para o passado e enxergar na Inquisição os exemplos de julgamentos sumários, sem compromisso com regras objetivas de competência, em que um só indivíduo acusava, investigava e condenava, bastando apenas a sua íntima convicção quanto à culpa.
Sobre a tese de redução da pena de prisão, prescrição e prisão domiciliar, a defesa do ex-presidente alega que houve violação ao princípio da individualização da pena pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que teria aumentando a reprimenda de 9 anos e 6 meses para 12 anos e 1 mês apenas para evitar a prescrição.
A redução da pena, a prescrição e eventual progressão de regime com prisão domiciliar se implicam mutuamente no caso do ex-presidente. A quantidade de pena, em regra, não pode ser revista pelo Superior Tribunal de Justiça, devido ao que diz a Súmula 7, que veda o revolvimento de fatos e provas.
Mas digo em regra porque há exceções. Na minha opinião, o caso do ex-presidente é uma exceção, pois está caracterizado que houve uma exasperação exagerada da pena, de modo que o STJ deve reduzi-la, adequando-a aos critérios legais. Isso porque a Constituição e o Código Penal estabelecem que a reprimenda deve obedecer a princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade, nunca se valendo de dupla punição pelo mesmo fato ou circunstância, o chamado bis in idem, e nem de situação abstrata para agravar a pena.
O juiz, em cada caso, goza de certa discricionariedade para aumentar ou diminuir a pena ao aplicar as causas de aumento ou diminuição, porém deve fazê-lo com temperança, não podendo a sanção se transformar em opressão judicial, nem servir de manobra artificial para evitar a prescrição ou para atender ao clamor social. Os critérios para a dosimetria da pena são objetivos e estão estabelecidos no artigo 59 do Código Penal.
A defesa de Lula fala sobre a possibilidade de prescrição. Se acolher o recurso da defesa, o STJ deverá reduzir o tempo de prisão de Lula, o que poderá resultar em uma progressão de regime ou até em prescrição, considerando que o ex-presidente possuía mais de 70 anos no momento da condenação. Isso porque segundo o Código Penal, o fato de o réu possuir 70 anos no momento da sentença configura circunstância atenuante da pena e reduz pela metade o prazo prescricional, que basicamente é o prazo que o Estado tem para investigar e punir a pessoa.
Uma vez reduzida a pena ou declarada a prescrição de um dos crimes, o ex-presidente poderá ser beneficiado inclusive com a prisão domiciliar, na linha do que tem sido decidido pelo STF em casos semelhantes. Podemos ressaltar, ainda, a possibilidade do acórdão do TRF4 ser mantido na íntegra pelo STJ, não havendo alteração da situação do ex-presidente.
O ministro Félix Fischer, relator da Lava Jato no STJ, é conhecido por uma atuação judicante escorreita, o que deve ser visto com bons olhos, pois é na atuação firme de um juiz imparcial que o acusado tem a última esperança. Todos os caminhos são possíveis, mas o cenário de arbitrariedades praticadas na condução dos processos da Lava Jato eleva a perspectiva de êxito do ex-presidente sob o ângulo de um processo penal constitucional.
Em suma, vale fazer uma distinção. O julgamento a ser proferido pelo Superior Tribunal de Justiça é restrito ao caso de Lula, e, independentemente do seu resultado, não interferirá genericamente na questão jurídica da execução provisória da pena, que está pronta para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Porém, se o STF revisar a jurisprudência atual e decidir pela impossibilidade da prisão sem o trânsito em julgado, Lula deverá ser solto para aguardar em liberdade o esgotamento de todas as possibilidades de recurso, independentemente do resultado do julgamento do STJ.
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