Um dos mais formidáveis progressos
registrados pela medicina nos últimos anos se deu no entendimento do que
é o câncer, doença que acometerá 27 milhões de pessoas no mundo na
próxima década e cerca de 619 mil brasileiros em 2025, conforme
estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca). O conceito mais
atual a seu respeito dá conta de que ela é muito mais complexa do que se
pensava e que não pode ser considerada uma só enfermidade. “São várias
doenças que têm, em comum, o fato de serem um agrupamento de células
similares com alterações no seu código genético”, explica o oncologista
Paulo Hoff, diretor clínico do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp) e
do Hospital Sírio-Libanês, ambos em São Paulo. “Cada tumor é diferente
do outro”, enfatiza o médico.
Essa constatação – uma das mais importantes na história da luta da
ciência contra a doença – está imprimindo uma revolução na maneira de
combatê-la. Nos hospitais, por exemplo, as equipes responsáveis pelo
atendimento ao paciente estão abrindo espaço para profissionais como
biólogos moleculares, capacitados a identificar com mais precisão a
natureza do tumor. Nos centros de pesquisa, integram os mesmos estudos
patologistas e bioengenheiros, matemáticos e geneticistas. Nos
laboratórios das indústrias farmacêuticas, a busca agora não é mais por
um remédio único que, com uma cartada só, ataque vários tumores ao mesmo
tempo. Procura-se hoje o contrário: drogas com o poder de atingir
substâncias únicas, associadas a tumores específicos, e também
medicações para agir sobre engrenagens envolvidas na proliferação das
células doentes, como seu metabolismo e os tecidos ao seu redor. É
assim que está se criando a nova forma de curar o câncer.
O ponto de partida para as transformações em andamento foi a
descoberta do peso da genética no surgimento e desenvolvimento da
doença. Sabia-se que os genes tinham influência, mas só depois da
divulgação dos resultados do genoma humano, em 2003, ficou claro que
eles são mais decisivos do que se supunha. Por vários motivos. O
primeiro: há uma quantidade impressionante de genes sendo associados a
diferentes tumores. Essas informações estão permitindo, por exemplo, o
estabelecimento de programas de prevenção mais focados e eficazes. No
Brasil, há um ótimo exemplo disso. A oncogeneticista Maria Isabel
Achatz, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo, monitora 102 pacientes
portadores de uma mutação no gene TP53. É o maior grupo do mundo em
acompanhamento em um único centro médico. A alteração deixa os
indivíduos mais predispostos a ter alguns tipos de tumores ao longo da
vida. “São pessoas que precisam de acompanhamento para que a doença seja
detectada no início”, diz a especialista. Desse modo, podem ser
tratadas de forma menos agressiva e com maiores chances de cura.
O maior conhecimento genético está levando também à criação de exames
reveladores. Na Alemanha, o teste BreastNextTM avalia 14 genes
relacionados aos cânceres de mama e ovário. Outros investigam uma gama
maior de genes para tumor colorretal e há opções com o poder de ler em
média 35 mil genes, indicando alterações associadas à enfermidade e
outras com interpretação ainda desconhecida para a medicina.
A detecção de indivíduos com maior risco promove a disseminação do
aconselhamento genético. Nos principais centros de tratamento do mundo,
já existem serviços destinados a orientar pacientes sobre suas chances
de realmente desenvolver a enfermidade por causa de genes mutados. Por
aqui, há opções em universidades e hospitais de referência. Para
expandir esse alcance, oncogeneticistas criaram a Rede Nacional de
Câncer Familial (hereditário). A entidade está avaliando os custos da
aplicação na rede pública de testes genéticos para rastrear a
predisposição a 12 tipos. “Queremos capacitar hospitais e serviços para
ter geneticistas que atendam pacientes com história familiar de câncer”,
diz Marisa Breitenbach, coordenadora de pesquisa do Inca.
Decifrar qual gene está vinculado a que tumor também abriu a porta
para que a ciência começasse a identificar as consequências dessas
associações. Que proteínas são fabricadas – ou deixam de ser liberadas –
por causa da influência genética? Cada resposta obtida torna mais fácil
arquitetar remédios capazes de solucionar os problemas criados pelos
genes. Um dos mais novos dessa categoria é o crizotinibe (Pfizer),
indicado para combater um tipo raro de tumor de pulmão (não pequenas
células – NSCLC) porque corrige um desequilíbrio causado por alterações
provocadas pela mistura de genes batizada de EML4-ALK, associada ao
tumor. O medicamento está em uso na Europa e nos Estados Unidos e no
Brasil aguarda liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa). Na mesma linha há o pertuzumabe e o trastuzumabe-entansina
(Roche), para tratar o câncer de mama metastático em mulheres que
apresentam mutação no gene HER2 (também esperam liberação pela Anvisa), e
o olaparibe (AstraZeneca), em fase final de pesquisa contra o tumor de
ovário.
Outro resultado igualmente importante do
aprofundamento das informações sobre câncer e DNA é a constatação de
que o perfil genético do tumor é determinante para o tratamento. Hoje,
tão fundamental quanto saber o órgão atingido é conhecer as mutações
genéticas às quais ele está vinculado. Além disso, contam as
características de DNA de cada paciente e como elas influenciam a
resposta à terapia. Um remédio pode funcionar para um, e não para outro,
mesmo que os dois apresentem tumores iguais. “Quanto mais específica a
droga, mais específico é o paciente que irá recebê-la”, diz Luiz
Fernando Reis, diretor de pesquisa do Hospital Sírio-Libanês. Cientes do
desafio, os pesquisadores investem no desenvolvimento de testes para
distinguir quem realmente irá se beneficiar da droga em questão.
Atualmente, há exames do gênero para medicações contra tumor de mama,
pulmão, melanoma, rins, colorretal e certos tumores do sistema nervoso
central. Fora do Brasil há maior variedade relacionada a remédios ainda
não aprovados aqui.
O enfrentamento mais abrangente do câncer foi fortalecido ainda após a
identificação de novos fatores relacionados ao crescimento das células
doentes. O chamado microambiente tumoral é um deles. Trata-se da
avaliação das características do tecido ao redor do tumor para saber em
que medida ele estimula sua evolução. “A estratégia é modificar o
contexto no qual as células tumorais estão inseridas”, afirmou à ISTOÉ
Mina Bissell, chefe da divisão de ciência do Laboratório Nacional
Lawrence Berkeley, dos Estados Unidos, uma das mais renomadas
pesquisadoras de câncer de mama do mundo. Um dos primeiros remédios a
agir no microambiente tumoral foi o regorafenibe (Bayer). Nos EUA, foi
autorizado para o tratamento do câncer de cólon.
Uma condição que também facilita a proliferação das células doentes é
seu metabolismo diferenciado. Para se multiplicar sem freio, elas acabam
se valendo de um estoque fenomenal de glicose, o combustível usado
normalmente por toda célula para funcionar. E também recorrem a
substâncias das quais extraem energia como o aminoácido glutamina.
Grupos de pesquisadores estão trabalhando para encontrar meios de
impedir a utilização das duas substâncias – glicose e glutamina – pelas
células tumorais.
Exploram-se ainda os aspectos ligados à imunidade. A proposta é fazer
com que mecanismos normais do sistema imunológico aprendam a reconhecer
a célula doente, o que não ocorre normalmente no câncer. Um dos
medicamentos em uso no País, o ipilimumabe (Bristol-Myers Squibb),
combate o melanoma, o mais agressivo dos cânceres de pele, por essa via.
“A tendência é dar remédios que curem, sem a necessidade de cirurgias e
mutilações”, afirma Antonio Carlos Buzaid, chefe do Centro Avançado de
Oncologia do Hospital São José, em São Paulo.
Uma das linhas mais recentes em pesquisa investiga o que os
pesquisadores chamam de “assinatura” do tumor. Descobriu-se que as
células tumorais despejam na corrente sanguínea fragmentos de seu
próprio material genético (o DNA tumoral). Esse material, acreditam os
cientistas, pode servir como indicativo de várias situações. Uma delas é
apontar se o tratamento está fazendo efeito. Outra seria auxiliar no
diagnóstico extremamente precoce da doença, em um estágio que até hoje a
medicina não foi capaz de atingir.
Toda essa complexidade que caracteriza a doença está desencadeando o
surgimento de um esquema de trabalho interdisciplinar no qual os
oncologistas e cirurgiões trabalham cada vez mais integrados a equipes
compostas também por oncogeneticistas, patologistas e bioquímicos. O
grupo maneja informações fundamentais para determinar qual será o
roteiro da terapia de cada paciente. O papel de cada membro do
timetambém ganha contornos mais atuais. “Antes fazíamos o diagnóstico
para conhecer as características do tumor e seu estágio. Agora,
procuramos genes que ajudam a definir os medicamentos que serão dados”,
diz Isabela Cunha, responsável pelo Departamento de Patologia Molecular
aplicada ao diagnóstico do Hospital A. C. Camargo.
E cresce a aproximação entre os médicos e os cientistas que estão no
laboratório. “A troca de informações e sua aplicação no tratamento são
cada vez mais essenciais”, diz o biólogo e bioquímico Emmanuel
Dias-Netto, do Centro Internacional de Pesquisa do hospital paulista. No
cotidiano, Dias-Netto, que participou dos principais estudos
internacionais do genoma, é peça-chave na discussão de casos intrincados
de cânceres hereditários. Em seu laboratório, há máquinas que
sequenciam o genoma inteiro de um tumor ou do paciente em um dia. Mas é
um recurso ainda usado em caráter experimental e reservado a raros
casos.
A nova dinâmica já se reflete em mudanças na estrutura física dos
principais hospitais. No Hospital do Câncer de Barretos, no interior de
São Paulo, foram abolidos os consultórios individuais para ver
pacientes. No dia destinado ao atendimento dos doentes com tumores de
cabeça e pescoço, por exemplo, os especialistas dessa área ficam em uma
sala coletiva onde se consultam mutuamente sobre os casos. Lá estão
oncologistas clínicos, cirurgiões, radioterapeutas, especialistas em
quimioterapia. Na hora de examinar alguém, vão a um consultório onde são
aguardados pelos pacientes e por seus prontuários. Para o mesmo andar
destinado a esse ambulatório também foi remanejado o serviço de
odontologia. “Isso agiliza o atendimento e permite que ele seja mais
completo”, diz Vinícius Vasquez, diretor clínico do Hospital de
Barretos. O modelo foi adaptado do hospital MD Anderson, nos EUA.
Ver-se diante do fato de que o câncer não pode ser tratado com uma só
receita também obrigou a medicina a tornar mais maleável a sua definição
de cura da doença. Segundo o conceito clássico, podia se dizer curada a
pessoa que estivesse cinco anos sem a enfermidade. Hoje, com o
conhecimento a respeito das peculiaridades de cada tumor, isso não é
mais aplicável a todos os casos. “Em cânceres de estômago e pulmão, que
são muito agressivos, é possível falar em cura quando a doença não se
manifesta depois de cinco anos após o tratamento. Mas para alguns tipos
de câncer de mama esse prazo é maior”, diz Rafael Kalics, diretor do
Instituto Oncoguia, entidade de apoio aos pacientes.
Apesar das diferenças, é incontestável que a medicina alcançou um
patamar histórico de vitória. Segundo o Instituto Nacional de Saúde dos
EUA, há 38 anos, naquele país, metade das pessoas com câncer era curada.
Hoje, são 68%. Entre as crianças, a taxa média de cura era de 62%.
Atualmente, está em 81%. Nos casos de tumor de tireoide flagrados no
começo, as estatísticas americanas mostram que, após cinco anos, 99,9%
dos pacientes estão livres da doença.
É sabido também que dificilmente haverá uma única fórmula que cure todos
os gêneros de tumor. “O caminho será o da personalização do
tratamento”, diz o oncologista Stephen Stefani, do Instituto do Câncer
do Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre. Tudo isso graças ao avanço na
compreensão da enfermidade. “E quanto mais estudarmos de que forma as
células envelhecem, mais saberemos sobre a doença”, garantiu à ISTOÉ
Phillip Sharp, prêmio Nobel de Medicina em 1993 e hoje diretor do
Laboratório de Estudos do Câncer do Massachusetts Institute of
Technology, nos Estados Unidos.
Fontes: Laboratórios Amgen, AstraZeneca, Bayer, Boehringer Ingelheim do Brasil, GlaxoStmithKline, Pfizer, Eli Lilly e Roche
Fotos: Pedro Dias/ag. istoé; tininho jr./ag. istoé
Fotos: Pedro Dias/ag. istoé; roberval a. oliveira/foto central; Kelsen Fernandes
Fotos: João Castellano/Ag. Istoé; pedro dias/ ag. istoé
2 comentários:
Excelente matéria!
Hei de voltar, com certeza.
Importantíssimo, esse lugar...
Bom domingo,
um abraço,
da Lúcia
Lúcia
Muito obrigado pela sua visita.
principalmente neste dia das mães.
Fique com Deus
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