MODERNIDADE
A sociedade turca se formou em torno do pequeno comércio e do pequeno agricultor,
mas hoje a paisagem muda com o surgimento de shoppings como o Kanyon Mall
Quem examina a Turquia pela paisagem de Istambul, sua maior cidade,
recorda que vivemos num mundo onde geografia é destino, enquanto a
história é uma permanente construção de homens e mulheres. Único país do
planeta que se divide entre a Europa e a Ásia, a Turquia é um monumento
à própria grandeza. Durante seis séculos, foi governada por uma
dinastia de sultões que vivia em palácios habitados por dois mil servos
para todo tipo de trabalho, inclusive dezenas de mulheres residentes em
seus haréns. Seu império se espalhou sobre uma área imensa, que incluía a
Argélia e a Áustria, passando pelo Egito, pelo Iraque e pela Bulgária,
para chegar à fronteira da Rússia. Noventa anos depois de uma guerra de
independência na qual venceu ingleses e franceses, proclamando assim a
República, a Turquia assombra o mundo mais uma vez.
Na última década, seu crescimento econômico atingiu a média de 7%
anuais ? a previsão para o ano magro de 2013 é de um avanço de 4%.
Depois de passarem um quarto de século pedindo ingresso na União
Europeia, sendo rejeitados por exigências descabidas e até humilhantes
de Bruxelas, os 75 milhões de turcos só têm motivo para ironizar tamanha
arrogância: o país, afinal, está a salvo do desastre pós-2008, que
aniquilou tantas economias aparentemente saudáveis do Velho Mundo. Com
uma renda per capita de US$ 15 mil, quase 20% superior à brasileira, a
Turquia não possui miseráveis naquela quantidade em que eles se tornam
visíveis em toda parte. Seus índices de criminalidade são baixos e é
possível caminhar pelas ruas das grandes cidades com a sensação de
segurança típica de países desenvolvidos. Com um pequeno número de
famílias no topo da pirâmide social, que alimentam o mercado milionário
de iates de luxo e de palacetes às margens do estreito de Bósforo, o
país se beneficia de uma prolongada política de bem-estar social.
TRADIÇÃO
Um dos bazares mais antigos do mundo, o Mercado Egípcio,
em Istambul, é a prova viva do peso da tradição
A qualidade da saúde pública não inspira protestos muito estridentes e
a rede pública de ensino atende os mais pobres e também a classe média.
O índice de alfabetização é respeitável: apenas 5% da população não
sabe ler nem escrever. Mas até ali se registra a notável diferença entre
homens e mulheres, muito menos dramática do que em outros países de
cultura muçulmana, mas terrível mesmo assim. Entre os homens, só 1,7%
pode ser chamado de analfabeto. Entre as mulheres, o índice é quase
cinco vezes maior: 8,4%.
O grande personagem da Turquia é Kemal Ataturk (1881-1938), líder
militar com vários momentos de genialidade e um chefe político corajoso.
Ataturk organizou uma guerra de resistência que, em 1923, expulsou as
potências que haviam ocupado o país após a Primeira Guerra Mundial e
mandou o sultão Mehmed VI e seus descendentes para o exílio. Numa série
de decisões rápidas e radicais, Ataturk proibiu a poligamia, dissolveu
as irmandades muçulmanas, substituiu o alfabeto otomano pelo ocidental e
adotou o calendário gregoriano. Num esforço absoluto para separar a
religião do Estado, proibiu o ensino religioso nas escolas e não
permitia que mulheres frequentassem locais públicos portando véu ou
qualquer outro traje religioso. Os homens ficaram impedidos de usar o
fez, aquele chapéu de formas arredondadas com um adereço semelhante a um
puxador de cortinas no topo. Um dos intelectuais mais influentes do
círculo de Ataturk resumiu o espírito daquele momento ao dizer que ?não
existem duas civilizações, mas apenas uma, e ela é europeia?.
Mulherengo e alcoólatra, Ataturk morreu de cirrose em 1938, mas é
símbolo nacional até hoje. Seu retrato é exibido nas festas nacionais e
trechos de seus escritos são recordados em tom respeitoso. Em abril,
quando lia uma biografia de Ataturk durante uma escala num aeroporto no
litoral da Turquia, um viajante brasileiro foi cumprimentado em tom
efusivo por uma funcionária do setor de bagagens. Ela queria expressar
um tipo de orgulho que muitos brasileiros experimentavam em passado já
distante, quando entravam em contato com estrangeiros interessados em
histórias sobre Pelé.
DESAFIO
Bolsa de Valores de Istambul e o primeiro-ministro Erdogan:
ele abriu a economia, mas a democracia é uma obra em construção
O protagonista da Turquia de hoje é Recep Tayyip Erdogan, prefeito de
Istambul e primeiro-ministro com três vitórias consecutivas ? na
última, seu partido ficou com 52% dos votos. Perseguido e até preso no
passado em função de sua militância numa organização religiosa proibida
pela legislação, Erdogan expressa um outro movimento na articulação
entre geografia e história. Beneficiária dos recursos milionários do
Plano Marshall que o governo americano alavancou para reconstruir a
Europa no pós-guerra, a Turquia é um país onde o Estado sempre teve ? e
ainda tem ? um papel importante na economia. Ministros costumam
reunir-se com empresários para estabelecer metas de crescimento, seja na
produção de automóveis, seja na expansão de franquias no exterior e
mesmo na exportação de ovos de granja. O Estado possui hotéis de luxo e
subsidia até a exportação dos célebres tapetes feitos à mão que,
orgulho cultural, nos últimos anos enfrentam uma dolorosa situação de
risco (leia quadro).
FUTURO
Garota segura a bandeira turca:
nova geração mais próxima da cultura europeia
As mudanças trazidas por Erdogan têm sinais múltiplos. Numa ousada
iniciativa para encerrar um conflito que já produziu 40 mil mortos, o
primeiro-ministro monitorou pessoalmente negociações de seu serviço
secreto com os líderes curdos, que recentemente se comprometeram a
deixar o país em ambiente de trégua. Na economia, os capitais externos
não param de chegar, atraídos por vários programas de concessão de
serviços públicos e privatização de estatais. Na Turquia, onde a fé
frequentemente se mistura com a economia, investidores bilionários do
petróleo árabe tornaram-se grandes fiadores do crescimento.
Na discussão sobre o lugar da religião e da política, as novidades
tornam o país mais próximo de seu passado. Se 95% da população se define
como muçulmana, grande parte limita-se a seguir regras básicas da
religião, procurando preservar a liberdade individual. Nos últimos
tempos, a influência de líderes religiosos não parou de crescer nos
debates sobre cultura, comportamento e política. Autoexilado nos Estados
Unidos, o mais conhecido deles, Fethullah Gülen, com mil escolas
espalhadas em vários países, é hoje personalidade influente nos assuntos
de governo e nos negócios. De uns tempos para cá, o uso de trajes
religiosos foi autorizado nas universidades e instituições públicas em
geral. Em decisão recente, a Turkish Airlines, que pertence ao governo,
proibiu as comissárias de bordo de utilizar batons vermelhos e pintar as
unhas com cores chamativas, uma decisão que os sindicatos denunciam
como uma interferência indevida de valores religiosos no ambiente de
trabalho.
OFÍCIO PENOSO
Artesã confecciona tapetes: o progresso trouxe
novas oportunidades de trabalho para elas
Num país onde a sociedade se formou em torno do pequeno comércio e do
pequeno agricultor, a paisagem se modifica com o surgimento de grandes
shopping centers e grifes estrangeiras, num processo que desloca valores
tradicionais e modifica laços sociais, gerando adeptos e críticos. A
popularidade de Erdogan, favorito absoluto nas eleições para presidente
da República no ano que vem, é um bom termômetro do número de
satisfeitos. Já o empresário Zya Das Deler, fabricante de joias na
região da Capadócia e inspirador do personagem Zya, da novela ?Salve
Jorge?, é um exemplo da visão contrária. ?A Turquia está perdendo
valores que permitiam uma vida mais humana e solidária?, lamentou, em
depoimento à ISTOÉ. ?Hoje, o dinheiro compra tudo.?
A Turquia é um país onde a democracia é uma realidade palpável, mas é
também uma obra em construção. Não há restrição à existência de
partidos políticos, que só podem ter representantes no Parlamento caso
consigam um mínimo de 10% dos votos. Mas a força de um poder militar
construído nos anos de Guerra Fria, quando o país se tornou um aliado
fidelíssimo de Washington, com direito a verbas polpudas e exclusivas do
Exército americano, permanece como uma instituição de tutela. O país
assistiu a quatro rupturas institucionais de 1960 para cá, em processos
que invariavelmente concluíam pela deposição de um governante eleito, a
prisão de autoridades civis e a convocação, em prazo relativamente
curto, de novas eleições. Durante seu governo, Erdogan processou
militares acusados de tortura e outros abusos contra direitos humanos.
Estima-se que um quinto dos oficiais de alta patente já tenha cumprido
pena de prisão em função disso.
VALORES
O empresário Zya Deler, inspirador do personagem Zya, da novela "Salve Jorge":
"A Turquia está perdendo valores que permitiam uma vida mais solidária."
Abaixo, a Mesquita Azul, em Istambul: 95% da população se define como muçulmana
Herança do poder militar, permanece em vigor uma lei que é usada,
também, para intimidar a liberdade civil. O artigo 301 do Código de
Processo Penal prevê detenção de até três anos de toda pessoa acusada de
?denegrir? os valores do país. Em 2012, prejudicados pelos termos
especialmente vagos da legislação, 61 jornalistas cumpriram pena de
prisão por esse motivo. Há um mês, o pianista Fazil Say foi condenado a
dez meses de cadeia por ?blasfêmia?, em razão de uma frase no Twitter
(celebridade internacional, ele teve a pena suspensa sob condição de não
reincidir). As mudanças de paisagem social e política foram imensas na
última década, mas há muito por fazer. Lembrando os movimentos
contraditórios de tantos processos históricos, a escritora Elif Shafak,
que mora em Londres, resume a evolução da seguinte forma. ?A Turquia
evolui com dois passos para a frente e um para trás.?
Fotos: Yoray Liberman/Getty
Images; Glow Images; Osman Orsal/ap; JOEDSON ALVES/DPA/ZUMApress.com;
Umit Bektas/REUTERS; Tales Azzi; SEUX Paule/hemis.fr
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