- Mas como assim? Estupro é crime e não cultura!
- Opa, espera aí, eu nunca ouvi ninguém dizer que tolera estupro! Esse é um crime horrível e severamente punido. Todo mundo sabe que dentro dos presídios os estupradores são, inclusive, punidos por outros detentos.
- Quem inventou isso de que a vítima sempre acaba sendo culpabilizada? Isso não existe.
- Parem de falar sobre essa tal "cultura do estupro", isso só serve para tirar a culpa do criminiso e tentar transferí-la para a sociedade.
O termo cultura do estupro não é novidade dentro das ciências sociais e do feminismo, mas o debate ainda está cercado de dúvidas entre a maioria das pessoas. Estupro é um assunto muito delicado e, por isso, falamos dele menos do que deveríamos, seja dentro de casa, na grande mídia ou nas escolas. Sexo ainda é tabu. Violência envolvendo sexo é duplamente tabu.
Não é agradável debater o tema, mas é ainda mais
desagradável se deparar com a estimativa de que a cada 11 minutos uma
mulher é estuprada no Brasil. A gente precisa falar sobre isso, pois
para que uma realidade mude ela antes precisa ser compreendida.
Primeiramente a gente tem que entender, de uma vez por todas, que o
estupro não acontece só na favela, ele também se faz presente no trote universitário,
nas baladas de classe média e dentro de casa. Um a cada 11 minutos! É
urgente compreender por que a violência sexual ganhou traços pandêmicos
no Brasil, e isso que a gente pretende mostrar aqui.
Começando do começo: é cultural, sim.
Isso porque a palavra "cultura" não está apenas relacionada a artes, folclore e coisas bonitas. Ela também é usada para falar sobre comportamento coletivo. ?'Cultura' é uma palavra que tem muitas definições e uma delas se refere a maneira como as pessoas vivem em sociedade, isso quer dizer que a cultura tem a ver com nossas práticas socais, com nossa socialização, com a maneira como a gente entende o mundo e vive estabelecendo uma relação social com o outro. Nossa maneira de ser, de pensar e de agir não está solta no mundo mas, faz parte de uma cultura", explica Izabel Solyszko, assistente social, professora e doutora em Serviço Social pela UFRJ."Pois bem: esse olhar de lince do Casanova do rio São Francisco vasculhara de entrada o íntimo de Dona Flor, varando-lhe o pensamento, apossando-se de seus segredos, após tê-la despido de roupas e adornos. Tão deslavado olhar não tinha outro sentido: seu Aluísio a desnudava por fora e por dentro e, em conclusão, achando-a a seu gosto, achava-a também desfrutável e até fácil." (trecho extraído de "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Jorge Amado)
Mulheres são desfrutáveis, homens desfrutam. Esse conceito é cultural e está intimamente ligado aos números alarmantes de estupro no Brasil e em diversas outras partes do mundo. Também está 100% ligado à visão de que uma garota com saia curta "estava pedindo" e que aquela outra "teve o que mereceu, pois sempre se comporta de maneira provocante".
Ser cultural não significa que não seja crime.
Violência
sexual não é algo cometido por meia-dúzia de psicopatas, não é coisa de
gente doente. Estupro está em todo o lugar e é um dos crimes menos
denunciados do mundo. Tratar isso como problema sócio-cultural é tentar
mudar um triste quadro de silenciamento massivo, em que 10% das
ocorrências são levadas à justiça, segundo dados nacionais do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A culpabilização da vítima é uma realidade!
Rio de Janeiro, 3 de maio de 2013. Após sequestrar um ônibus na Avenida Brasil, um homem rende os passageiros, manda que eles se recolham ao fundo do veículo e, no vão do espaço destinado a deficientes, estupra uma mulher escolhida ao acaso. A mulher é golpeada a coronhadas e todos assistem à cena, que também é capturada pelas câmeras de segurança.Nessa história os traços estavam muito bem demarcados. Havia um sequestrador armado, haviam testemunhas, haviam câmeras. E é por isso que ninguém ousou perguntar àquela mulher qual era o tamanho da saia que ela usava, ninguém questionou absolutamente nada e o Brasil inteiro sabia exatamente a quem julgar.
Acontece que casos como esse são exceção à regra. Estupro é geralmente um crime que acontece entre quatro paredes. Muitas vezes envolve álcool e outros entorpecentes. Muitas vezes envolve ameaças e a violência física nem transparece no corpo da mulher estuprada. Muitas vezes envolve um marido a violentar sua própria esposa. E quando envolve um flerte prévio por parte da mulher, aí sim é que a culpa logicamente cai sobre a vítima. Flertou? Aceitou um copo de cerveja? Beijou na boca? Permitiu mão na bunda? Aceitou carona? Então sabia exatamente no que estava se metendo!
E para além da sociedade, a própria Justiça acaba por culpabilizar essas vítimas. Lembra do delegado que perguntou à adolescente carioca se ela costumava fazer sexo grupal na
tentativa de justificar a violência sofrida? Ele é só mais um dos
milhares de profissionais de justiça que agem dessa forma. Pasmem,
inclusive em casos de pedofilia!
?A prova trazida aos
autos demonstra, fartamente, que as vítimas, à época dos fatos,
lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas,
inconscientes e desinformadas a respeito do sexo. Embora imoral e
reprovável a conduta praticada pelo réu, não restaram configurados os
tipos penais pelos quais foi denunciado", diz a sentença de um caso julgado em São Paulo quatro anos atrás
. Na ocasião, um homem estava sendo denunciado por estruprar três
meninas de 12 anos. Ele foi absolvido, pois relatos davam conta de que
as meninas costumavam se prostituir.
E a culpabilização gera silenciamento.
Dados do Ipea estimam que 575 mil estupros acontecem por ano no Brasil. Deste total, apenas cerca de 47 mil são denunciados, o que representa 10% dos casos.O estupro é um dos crimes mais subnofiticados que existem e não muito difícil compreender a razão. "Quando a gente analisa tudo o que aconteceu com a adolescente do Rio de Janeiro, todo o julgamento moral, o massacre, a devassidão que foi feita na vida dessa menina, a gente entende parte do porquê as mulheres hesitam tanto em denunciar esse tipo de violência", aponta Silvia Chakian.
E qual é o resultado disso tudo? Impunidade.
Culpabilização + silenciamento = impunidade! A equação é muito simples, e é ela que explica a razão pela qual os estupradores da adolescente carioca não hesitaram em divulgar fotos e vídeos do crime na web. A certeza da impunidade também fez com que Raí de Souza, um dos principais acusados, depois de deixar a delegacia sorrindo, simplesmente tenha decidido guardar na casa de um amigo o celular que o incriminaria.Raí e Laércio apostaram altíssimo e a justiça reagiu, mas não se engane: eles são exceção à regra. Mais uma vez, a própria Justiça age de forma arbitrária na maioria dos casos de estupro e é aí que a bola de neve se forma. As denúncias já são escassas e, quando acontecem, ainda encontram muita burocracia, perícia mal feita e investigação negligente. Isso resulta em menos denúncias ainda... e mais impunidade!
A juiza Teresa Cristina dos Santos, especialista em violência doméstica, é categórica em dizer que a perícia policial costuma ser muito mais rigorosa em casos de crime contra o patrimônio do que nos de violência contra a mulher. Ela conta que geralmente o laudo só da conta de analisar a integridade física da vítima e a perícia nem mesmo é enviada ao local do crime.
Teresa também defende a criação de um protocolo de atendimento específico para casos de violência sexual, por conta da natureza emocional desse tipo de crime. "Costumo dizer que quem passa por um roubo ou furto chega na delegacia furioso, com sangue nos olhos. Com as vítimas de estupro é diferente, elas chegam com lágrimas nos olhos", completa a promotora Silvia Chakian.
Tá na hora de quebrar o ciclo! Para um Brasil com menos estupro, é preciso menos culpabilização, menos silenciamento e menos impunidade. É preciso que mais meninos aprendam a não estuprar, para que menos meninas ouçam que deviam ter se dado ao respeito. O respeito é nosso por direito e a culpa NUNCA é da vítima. De burca ou pelada, nenhuma de nós merece ser estuprada!
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