6.02.2012

A babá eletrônica está a um passo da aposentadoria

Com cada vez menos programas voltados ao público infantil, a TV aberta deixa no passado a tradição de entreter crianças. Essa tarefa agora está com os canais pagos

Mariana Zylberkan
Nos últimos anos, a TV aberta brasileira vem mostrando sinais de cansaço numa das funções mais significativas de sua história recente: o entretenimento voltado ao público infantil. Com cada vez menos horas dedicadas às crianças, a televisão, no papel de babá eletrônica, está a um passo de se aposentar. Atualmente, as emissoras exibem cerca de 22 horas diárias de conteúdo infantil, de segunda a sexta. Nos anos 80 e 90, auge da produção televisiva para crianças, a programação tinha até 30 horas diárias reservadas a esse público. E esse tempo tende a diminuir ainda mais em breve. No início do ano, o diretor-geral da Globo Octávio Florisbal anunciou a extinção do TV Globinho. Um dos únicos remanescentes da tradição de reservar  as manhãs para as crianças vai ser substituído pelo novo programa de Fátima Bernardes, com estreia prevista para agosto. “A babá eletrônica teve um curto-circuito”, diz José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, o ex-todo-poderoso da Globo.
A TV aberta voltada para crianças vem sendo substituída, nos últimos 15 anos, pelos canais pagos que hoje detêm 70% do bolo publicitário direcionado ao segmento infantil. Apesar da alardeada popularização da TV paga, impulsionada pelo maior acesso da classe C ao serviço, a programação segmentada atinge apenas 18% da população com idade entre 4 e 11 anos. Isso significa que 19,6 milhões de crianças brasileiras simplesmente não têm o que assistir na TV aberta. A questão é que as crianças, dificilmente, vão deixar de ver televisão. E isso vale inclusive para as famílias em que os pais se esforçam para manter a atenção dos filhos longe da tela. Um mundo em que os meninos e meninas são estimulados exclusivamente por conteúdos educacionais e altamente instrutivos é uma utopia. No mundo real, é mais sensato oferecer uma televisão com opções pensadas para as crianças, ainda que longe do ideal.
Um indício de que existe uma demanda reprimida é o surpreendente sucesso de Carrossel, remake dos anos 90, que estreou no horário nobre do SBT há duas semanas. A média de 15 pontos de audiência, atingida no segundo capítulo, certamente não é mérito da produção. A novela toda se passa em um único cenário, com atores-mirins inseguros e poucas alterações na história, que foi exibida no Brasil pela primeira vez há 20 anos.
Ter uma novela que fez sucesso em 1991 e apela à nostalgia dos adultos como o principal programa infantil no ar é o resultado mais embelmático de uma série de fatores que minaram, ao longo do tempo, a produção voltada para as crianças. A mola propulsora desse movimento foi a perda de receita publicitária do setor e a pulverização do que restou em muitos meios diferentes - internet, TV paga, DVDs. A perda de receita publicitária se deve tanto a fatores objetivos, ligados à economia, quanto a fatores que se pode chamar de culturais. Entre esses últimos, está o cerco à publicidade de diversos produtos de apelo para o público infantil. O desejo de resguardar as crianças de certas "tentações" é legítimo. O problema é vê-lo degenerar em sanha politicamente correta - que transfere à "sociedade" uma tarefa que é dos pais (mas que eles, nessa versão da história, são incapazes de fazer).


O auge e o declínio -  A programação infantil teve sua época de ouro no final dos 80 e começo dos 90, quando chegou a receber em publicidade até 3% do faturamento de 600 milhões de reais da indústria de brinquedos, a maior anunciante. A fartura coincidiu com marcos da TV para crianças, como a estreia do Castelo Rá Tim Bum, na TV Cultura, e o início da era de ouro das "fadinhas loiras". Em 1992, o Xou da Xuxa dava média de 22 pontos na audiência matutina e seus especiais atingiam picos de 40 pontos, na mesma faixa horária. Alguns anos antes, os pequenos já tinham ótimas opçõs de programas.
 

1972 – 'Vila Sésamo'


Baseado na produção norte-americana da Children’s Television
Workshop chamada Sesame Street (1969), a versão brasileira
batizada de Vila Sésamo foi transmitida, simultaneamente,
 pela TV Globo e TV Cultura entre 1972 e 1974.
Com duração de uma hora e meia, Garibaldo e seus
amigos ensinavam noções básicas de alfabeto, número e
cores às crianças  de segunda a sexta, pela manhã e a tarde.
O programa foi criado nos Estados Unidos a partir de uma
orientação pedagógica, baseada na repetição. As esquetes
tiram duração máxima de três minutos, que é o tempo máximo
que crianças de três a cinco anos conseguem prender
 a atenção em algo.
Em meio a toda essa efervescência, surge a primeira
 rachadura na estrutura de financiamento da produção televisiva
infantil. Em 1990,
 o governo Collor tomou medidas para abrir a economia brasileira às
importações. A medidapôs em dificuldades a indústria de brinquedos,
 que se viu obrigada a competir com similares muito mais baratos
 trazidos de países como a China. Essa perda de competitividade
só se acentuou. Nos últimos sete anos, o setor viu seu faturamento
 cair vertiginosamente - e as verbas para publicidade, como consquência,
 foram cortadas pela metade. “O pouco que sobrou é investido na
TV fechada, já que ficou inviável anunciar nos canais abertos”,
 diz Synésio Batista da Costa, presidente da Associação Brasileira
 dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq).  Diz o mesmo o executivo
Rafael Davini, que participou da implantação do canal Cartoon
 Network no Brasil: “Com o valor de uma peça publicitária simples
na TV aberta, é possível anunciar por um ano na TV paga, com
100% de aproveitamento, pois a segmentação desse meio
 permite dialogar exatamente com o público alvo, sem a
dispersão dos canais abertos.”
Os canais pagos -- A entrada da TV por assinatura no
 Brasil ampliou em muito a oferta de programação infantil.
 Mas reduziu em muito as opções das crianças que só têm em
 casa os canais abertos. Atualmente, as operadoras disponibilizam
pacotes com 12 canais infantis diferentes. Está prevista para 15 de
 junho a estreia do Gloob, o primeiro canal do gênero da Globosat.
 Voltado para crianças entre 4 e 9 anos, o Gloob vai ter 24 horas
de programação ininterrupta e apenas uma produção nacional,
 D.P.A. Detetives do Prédio Azul. Mais do que sofrer com o
êxodo publicitário, a TV aberta não tem mais interesse em
 investir nesse público, segundo Fernando Gomes, gerente
do departamento infanto-juvenil da TV Cultura.
“As emissoras não estão preocupadas com a formação da criança,
preferem transferir a missão para a TV paga.”
Junto a isso, percebe-se o loteamento da faixa matutina com programas que prestam serviços à população. Atrações que esclarecem dúvidas sobre saúde, segurança, educação e outros assuntos cotidianos invadiram o tradicional horário dedicado às crianças a partir de 2005, quando estreou o Hoje em Dia, na Record. Além de atrair telespectadores de várias idades, esse formato disponibiliza mais oportunidades de ações de merchandising às emissoras. É essa linha que o novo programa de Fátima Bernardes deve seguir.
Patrulhamento - Não bastasse o enfraquecimento de um dos principais setores que sustentavam a produção infantil e o surgimento da TV paga, existe ainda uma mudança profunda no setor publicitário. A propaganda direcionada às crianças passou a ser vista com fortes ressalvas. Em alguns casos, a restrição partiu dos próprios anunciantes. Em outros, foi imposta pelo estado. Em 2010, as empresas reunidas pela Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Aba) firmaram compromisso público de suprimir a publicidade de produtos alimentícios industrializados a menores de 12 anos, exceto os que obedecem a rígidos critérios nutricionais indicados para o consumo dessa faixa etária. No mesmo ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) instituiu resolução que proíbe o anúncio de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans, sódio e de bebidas com baixo teor nutricional. As medidas foram responsáveis pela queda de 30% da receita publicitária, segundo estimativa da Associação dos Anunciantes.
Entre as mais recentes iniciativas políticas nesse sentido está o projeto de lei estadual de autoria do deputado estadual Rui Falcão (PT), que restringe a publicidade voltada ao público infantil e está prestes a ser votada na Assembleia Legislativa de São Paulo. Se aprovada, a lei vai ser a primeira a regulamentar a publicidade para crianças. Hoje, as agências de propaganda seguem o artigo 37 do Código de Autorregulamentação do Conar para conversar com esse público. O texto do Conar sugere que nenhum anúncio dirija apelo imperativo de consumo diretamente às crianças.



Se aprovadas leis como essa, se tornará ainda mais improvável o surgimento de novos programas infantis nos grandes canais de TV brasileiros. Enquanto o acesso à TV paga não se universalisa, se apresenta uma espécie de vácuo. Uma geração de brasileiros tem hoje o Ilariê de Xuxa incrustado no cérebro, porque cresceu vendo a loirinha na TV. Uma outra talvez cresça com o noticiário policial gravado na memória - para citar um dos tipos de atração que dominam atualmente as manhãs na TV aberta.

Quem faz sucesso entre as crianças

Apesar da escassez de investimentos em programas infantis na TV aberta, há outros segmentos voltados a esse público que têm se mostrado bastante rentáveis. O nicho mais bem-sucedido, nesse momento, é a música para crianças, representado pelo grupo Palavra Encantada. Em segundo lugar, vem a arte circense, capitaneada pela dupla de palhaços Patati e Patatá.
Os músicos Sandra Peres e Paulo Tatit se dedicam, desde 1994, a educar através de canções. Dos 14 discos lançados, seis foram premiados. Ao todo, a dupla vendeu dois milhões de unidades em 18 anos. Os shows da dupla costumam lotar de pais e filhos que participam juntos das brincadeiras musicais propostas por Sandra e Tatit no palco. As duas apresentações mais recentes, realizadas em maio em São Paulo para lançar o disco Só Mais um Minutiiiinho!, tiveram, cada, a lotação de 800 pessoas esgotada no primeiro dia de venda de ingressos.
Considerada um fenômeno do consumo, a dupla Patati e Patatá, formada há 25 anos pelos mineiros Agnaldo Soares e Renato de Oliveira, está à frente de uma verdadeira fábrica de shows infantis e produtos licenciados. São 40 palhaços que rodam o país para interpretar a dupla em apresentações, na maioria, lotadas. Atualmente, a loja on-line soma 122 artigos licenciados à venda, entre material escolar, bonecos e artigos para festas. Desde maio do ano passado, Patati e Patatá comandam o programa diário Carrossel Animado, no SBT, com duração de uma hora e meia.
Mais recentemente, surgiu na internet o fenômeno Galinha Pintadinha. Músicas conhecidas da infância de várias gerações ganharam clipes produzidos para o Youtube e logo viraram uma febre. O canal da Galinha Pintadinha é um dos mais populares do site de compartilhamento de vídeos e acumula, atualmente, mais de 440 milhões de visualizações. O fenômeno na internet se traduziu em apresentações lotadas e venda de CDs e DVDs.

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