24/09/2008
A relação entre comunicação, jornalismo e saúde deve ser vista sempre com espírito crítico porque, quando alguns casos concretos são levantados, aflora uma rede poderosa de interesses, muitas vezes excusos.
É isso que podemos inferir do episódio da quebra de patentes de medicamentos contra Aids no Brasil de que resultou o desenvolvimento, pela Fiocruz, de um genérico para o Efavirenz, anunciado recentemente pelo Ministério da Saúde.
Quem pôde acompanhar o episódio, deve ter percebido com facilidade ( porque o lobby foi agressivo como costuma ser nesses casos) como a Merck, a fabricante do medicamento em questão, pressionou o Governo para que continuasse pagando um preço abusivo para um remédio essencial na campanha (muito bem sucedida) contra a Aids.
Infelizmente, parte da mídia nacional "pagou o mico nesse embate" postando-se ao lado da Big Pharma na tentativa jogar a opinião pública contra o Governo, coerentemente favorecendo os laboratórios farmacêuticos, reconhecidamente grandes anunciantes. Este foi o caso da revista Exame que, na edição de 27 de agosto último, com o título Cadê o remédio? questionava a competência brasileira em fabricar o genérico do Efavirenz. Como vimos, 20 dias depois, a publicação da Abril "quebrava a cara" com o anúncio do Governo, mas havia feito a sua parte: mostrado ao laboratório que estava ao seu lado e que podia contar com ela para novos lobbies via imprensa. A mesma Abril, que tentou em matéria de capa da revista Veja, jogar no lixo o trabalho formidável de Paulo Freire , um dos maiores educadores contemporâneos,e que continua, contraditoriamente, repudiando as ideologias dos outros e expondo, publicamente, as mazelas e as inconsistências das suas próprias ideologias.
Mas voltando aos remédios. Na prática, o Governo já estava adquirindo o genérico do Efavirenz da Índia por 49 centavos de dólar o comprimido, bem menos do que um dólar e 59 centavos, que é o que a Merck queria nos enfiar goela a baixo. Felizmente, o laboratório perdeu, a Exame perdeu, e novamente conseguimos mostrar que, quando há vontade política e recursos disponíveis, nossa competência técnica se manifesta de maneira exuberante. Questionar a competência de Farmanguinhos foi uma tolice editorial da Exame. Mais uma.
Evidentemente, para quem faz leituras regulares da mídia, verá que a Merck já mudou o discurso, abandonando a natural arrogância para praticar o tom da conciliação. Todos nós que sabemos como a Big Pharma atua devemos nos preparar para o próximo episódio porque esse recuo é sempre estratégico, particularmente quando há grana em jogo. Quando a cobra se enrola e aparentemente fica imóvel é porque está concentrando o veneno...
Os laboratórios estão de olho nos chamados países emergentes e buscam agora aproximar-se de universidades, institutos e grupos de pesquisa para se apropriarem de conhecimentos que resultarão em patentes lucrativas. Esta é a disposição , por exemplo, da Pfizer, explicitada em edição recente do Valor Econômico. Foi essa também a intenção da Novartis em sua aproximação com a Fapesp, que lhe havia dedicado reportagem negativa no episódio escandaloso da BioAmazônia (se quiser saber detalhes, coloque BioAmazônia no Google e recuperará a intenção da Novartis nesse caso e o que cientistas - do porte de Isaías Raw - andaram dizendo dela naquele momento). Se você não sabia (é interessante ler o livro de Márcia Angell A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, publicado ano passado pela Editora Record) é bom ter presente que, na prática, boa parte da pesquisa da Big Pharma é feita mesmo pela Academia (não acontece isso ainda no Brasil evidentemente) e que ela investe mais, muito mais, em marketing do que em ciência e tecnologia.
Pois aqui entra uma outra jogada da indústria da saúde, suficientemente documentada pelas reportagens dos jornais e opinião de especialistas: a criação de uma nova legião de consumidores de medicamentos, os chamados pré-doentes. Sabia da intenção da Big Pharma? Convencer as pessoas que elas devem começar a tomar medicamentos antes mesmo de ficarem doentes, a chamada "síndrome Engov", ou seja, para que você não tenha diabetes, hipertensão, colesterol etc no futuro (ou enxaqueca no dia seguinte), é melhor ir se entupindo antecipadamente de comprimidos .
Puxa, um negócio fabuloso porque, com isso, depois de criar o pânico da doença que um dia poderá chegar, a Big Pharma consegue vender remédio até para quem não vai ficar doente. Denominamos esse processo de "síndrome Engov" porque é assim que funciona: você toma um antes e outro depois e nesse intervalo pode "mandar ver" na caipirinha, na lingüiça calabresa, na feijoada etc. Não estou inventando, isso está na televisão, com a complacência de autoridades que fecham os olhos para uma propaganda nefasta de medicamentos sem qualquer eficácia e para a legitimação de um hábito (alimentação não saudável) que deveria ser desestimulado.
A indústria da saúde está forçando para que os indicadores que denunciam risco potencial de doenças tenham valores menores e vai chegar um dia em que todo mundo, quando fizer exames laboratoriais, se sentirá incluído no rol dos hipertensos, dos diabéticos etc, enfim todos estaremos doentes para alegria dos vendedores das pílulas mágicas.
A imprensa tem um papel importante a desempenhar, desmascarando essas estratégias gananciosas, enxergando além dos releases e das coletivas de imprensa que anunciam soluções milagrosas para problemas que ainda nem existem.
Nesse sentido, é fundamental saudar a cobertura feita pela jornalista Cláudia Colluci, da Folha de S. Paulo, que, embora tenha viajado para Roma para cobrir um congresso médico a convite de um laboratório farmacêutico, produziu uma reportagem correta sobre o lobby dos laboratórios e o envolvimento dos profissionais de saúde (publicada na Folha no último dia 12 de setembro de 2008, p. C4), não poupando ao menos o laboratório que pagou a conta de sua viagem. É isso mesmo que se espera de jornalistas críticos, que mantêm a sua independência apesar do assédio de interesses privados.
Cláudia Collucci não se prendeu às fontes oficiais (certamente comprometidas com o interesse do laboratório) para a cobertura do congresso internacional de diabetes e fez restrições à relação entre a indústria farmacêutica e muitos profissionais de saúde, em alguns casos bastante suspeita para dizer o mínimo.
A Big Pharma tem compromissos majoritariamente com investidores, o que é natural no capitalismo, mas é preciso balizar o comportamento da mídia pelo interesse público. Fora disso, estaremos praticando uma cobertura doente da saúde, comprometida com interesses privados. Olho vivo. Nesta área, não existe mesmo almoço (ou viagem) grátis. É melhor ler direito a bula. Nas letras menores, é que estão descritos os efeitos colaterais. Não esperemos transparência de quem sobrevive de dissimulações.
Em tempo: a indústria da saúde, agroquímica e outras menos votadas tem sistematicamente tentado "queimar" a Anvisa, buscando inibir suas ações identificadas com o interesse público, como a reclassificação de agrotóxicos (tem empresa jogando aqui veneno há muito tempo proibido em outros países), o monitoramento da propaganda de medicamentos (está cada vez mais difícil encontrar propaganda nesta área que respeite a legislação) etc. Urge denunciar esta estratégia não limpa para minar os órgãos de controle e fiscalização, os únicos a quem podemos recorrer para fazer valer os nossos direitos. Não podemos, de forma alguma, deixar que as raposas passem a controlar o galinheiro. E, como diz o caboclo, tem cada raposa peluda no pedaço!
* Wilson da Costa Bueno é jornalista
Fonte: Portal Imprensa
Taís Motta
Assessora de Comunicação
Diretoria
Instituto de Tecnologia em Fármacos
Farmanguinhos/Fiocruz
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