9.24.2008

SOL, PRAIA E BISTURI

SOL, PRAIA E BISTURI
19/09/2008
O Rio de Janeiro virou a capital mundial das plásticas e hoje é destino até das chamadas cosmetics vacations, turismo que inclui uma passada na sala de cirurgia. Só 10 clínicas, porém, estão devidamente preparadas.

Rio de Janeiro - A exemplo dos erros graves ocorridos em Brasília, no balneário mais famoso do país as mulheres também são vítimas do ideal de beleza projetado pela mídia associado ao boom de clínicas e centros de estética com médicos sem formação adequada para atuar na área de cirurgia plástica. Na cidade das praias paradisíacas e academias gigantescas, isso é acentuado pelo culto ao corpo e pela proximidade com os artistas globais, ícones da estética televisiva. Esse terreno fértil fez do Rio de Janeiro a capital mundial da plástica, com cirurgias parceladas em até 36 vezes e pacotes turísticos, chamados pelos estrangeiros de cosmetic vacation, que incluem uma visita ao bisturi. Só os norte-americanos fazem cerca de 200 visitas por mês aos consultórios cariocas.
No Rio, são feitas, aproximadamente, 50 mil cirurgias estéticas por ano - 30% delas, lipoaspirações. O problema é que o estouro da demanda não é proporcional à formação - e especialização - de profissionais. Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica do Estado do Rio, existem hoje no estado 727 médicos devidamente preparados e somente 10 clínicas credenciadas para atuar como manda a lei - com centros cirúrgicos equipados com material de ressuscitação, a dita RPA (Recuperação Pós-Anestésica).
O mercado real, no entanto, é muito maior e, segundo o presidente da entidade, Sérgio Levy Silva, o número de clínicas e médicos que atuam sem condições legais e, principalmente, sem a fiscalização de órgãos públicos, é incalculável. "O que ocorre é que muitos médicos sem especialização viram na plástica uma mina de ouro e, sem se aperfeiçoar, invadiram essa praia, começando com lipos e depois passando a procedimentos mais complexos. Isso é grave e irresponsável", explica Marcos Badim, especialista em cirurgia plástica reparadora, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e chefe do serviço de cirurgia plástica do Hospital Badim/Rede D'Or . Ele diz que já perdeu a conta de quantas clínicas em bairros como Botafogo e Ipanema, na Zona Sul, e Barra da Tijuca, na Zona Oeste, fazem cirurgias sem ter sequer uma UTI. Para se legitimar, médicos se associaram em entidades à margem da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, como a Sociedade Brasileira de Medicina Estética e a Sociedade Brasileira de Medicina e Cirurgia Plástica Estética. "São clubes, onde qualquer aventureiro pode ser membro", ataca Sérgio Levy. Para ser um cirurgião plástico de fato, são necessários 11 anos de estudo e dedicação - seis anos de faculdade, dois de especialização em cirurgia geral e mais três específicas em cirurgia plástica.
CIRURGIAS CARAS - Quem está decidido a retocar o corpo não costuma se intimidar com os altos preços das cirurgias, que variam de R$ 1,8 mil por uma sessão de aplicações de toxina botulínica (botox) a R$ 6 mil por uma lipoaspiração ou R$ 6,5 mil por uma prótese de glúteo (bumbum). Além de recorrer a clínicas sem especialistas e equipamentos obrigatórios, que fazem preços mais em conta - e elevam muito os riscos de complicações -, costumam usar os cada vez mais freqüentes parcelamentos a perder de vista. Um grupo de médicos de diferentes estados criou a chamada plástica parcelada, em que oferece, segundo seu site, "beleza fácil e acessível" em até 36 vezes, pagando em cheque, via financeira, ou com cartão de crédito. Os juros são extorsivos. Em um consultório chique em Ipanema, na Rua Visconde de Pirajá, um funcionário explica que primeiro o paciente tem que passar no Departamento Financeiro, para ver sua capacidade de endividamento, e só depois no consultório, onde marca a cirurgia. É aí que mora o perigo. Nariz arrebitado, busto pequeno, barriguinha saliente, tudo é motivo para cirurgias, feitas cada vez mais por jovens. Das 700 mil plásticas estéticas realizadas no país no ano passado, 15% foram em jovens até 18 anos de idade - 70% meninas.
ERROS E MORTES - A designer de jóias Érika Rachel, 22 anos, estava insatisfeita com o tamanho dos seios e fez, há três anos, um procedimento para colocar silicone líquido - mesma cirurgia que grande parte dos travestis fazem. Duas colegas tinham feito e o custo era convidativo: R$ 800. Menos de um ano depois descobriu a loucura que cometera. Sem ser informada dos riscos, teve um distúrbio hormonal e quando o seu corpo cresceu normalmente com a idade, os seios se agigantaram. Pulou do número 36 para 46. A clínica onde fez a cirurgia fechou e ela teve que recorrer a uma punção para tirar 100ml de cada mama. Ela diz já ter gastado mais de R$ 10 mil. E continua insatisfeita. Cirurgia nunca mais, certo? Errado. Erika agora junta dinheiro para fazer uma lipo. Em um hospital credenciado, promete. O problema vem de longe, embora tenha se agravado com a popularização das plásticas. A atriz Helena Ignez, musa do cineasta Glauber Rocha, disse em entrevista recente: "As mulheres da minha geração foram cobaias de cirurgiões plásticos. Existe uma perda horrível para elas. Muitos médicos deveriam ser processados".
VICIADA - Recordista de cirurgias plásticas, todas estéticas, a modelo Angela Bismarchi fez sua primeira visita ao bisturi em 1992. Dezesseis anos depois, já realizou 42 procedimentos, entre broelift (levantamento das sobrancelhas), aumento dos lábios, dimple mentoniano (furo no queixo), subincisões para celulite, blefaroplastia (correção da pálpebra), gluteoplastia com Bioplastic (aumento do bumbum) e rinoplastia (restauração no nariz). Casada pela segunda vez com um cirurgião plástico, Bismarchi parece não ter medo de se submeter ao bisturi, apesar de ter vivido seus tormentos. Após o nascimento do primeiro filho, colocou a primeira prótese mamaria de 200 ml, mas ocorreram complicações que deram origem a uma infecção hospitalar e três meses depois precisou realizar nova cirurgia nas mamas. "Minha próxima cirurgia vai ser de reconstituição do hímen. Perdi a virgindade com um homem que não amava, agora quero dar isso de presente ao meu marido", conta. O que ocorre é que muitos médicos sem especialização viram na plástica uma mina de ouro e, sem se aperfeiçoar, invadiram essa praia, começando com lipos e depois passando a procedimentos mais complexos. Marcos Badim, especialista em cirurgia plástica reparadora e chefe do serviço de cirurgia plástica do Hospital Badim/Rede D'Or.
PROCESSOS AUMENTAM - Segundo o cirurgião plástico Sérgio Levy Silva, existem atualmente denúncias contra 20 profissionais em análise no Conselho Regional de Medicina. Uma das últimas cassações de registros foi da médica Jorama Pinto Zvaig, conhecida por operar famosos como Tônia Carrero e Rosa Maria Murtinho, responsabilizada pela morte da dona-de-casa Lizette Madeira da Silveira, em 1988. A anestesista não teria esterilizado os equipamentos. O Tribunal de Justiça do Rio não dispõe de estatísticas sobre condenações por cirurgias plásticas que terminaram de forma trágica ou com danos permanentes ao paciente. Segundo Lymark Kamaroff, advogado especializado em erro médico, todo ano são abertos cerca de 4 mil processos contra médicos no Rio (em todo o país, 12 mil), o que tem elevado muito o valor dos seguros médicos. Uma ação não sai por menos de R$ 50 mil. Um em cada oito médicos é processado atualmente. A estimativa é de que, em 2010, essa proporção passe a ser de um processo para cada três médicos. Para evitar despesas judiciais elevadas, muitos médicos têm preferido encerrar a polêmica dentro dos consultórios, em acordos amistosos.
RECORDISTA - A classe médica é, de longe, a que mais sofre ações judiciais no Brasil. Kamaroff, que faz gerenciamento de risco para médicos, diz que, quando o paciente processa o médico, costuma fazê-lo em três instâncias: na câmara técnica, buscando a reprovação da conduta médica; na justiça cível para buscar reparação financeira; e na criminal, para penalizar o médico por lesão corporal culposa ou homicídio culposo. Nas varas cíveis, a estimativa é de que 80% dos casos terminam com a absolvição do médico. "Muitos pacientes recorrem até ao Código de Defesa do Consumidor para provar que foram lesados. Existe o mau resultado, a insatisfação do paciente e o erro médico. Os dois primeiros normalmente se resolvem com acordos. O último, não", explica Sérgio Levy. - Ricardo Miranda, da equipe do Correio -
Fonte: Correio Braziliense

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